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A inquilina de Wildfell Hall: o livro mais feminista das Brontë


Anne Brontë
, a irmã mais nova de Charlotte e Emily, nasceu em 1820 e publicou dois livros sob o pseudônimo Acton Bell: Agnes Grey, publicado em 1847, e A inquilina de Wildfell Hall, publicado em 1848.

Anne nunca alcançou o sucesso literário das irmãs mais velhas, embora o fato não se dê de maneira alguma pela falta de talento na escrita, mas sim devido às suas ideias e posições a respeito do lugar da mulher na antiga sociedade Vitoriana. Hoje, Anne é considerada por muitos a mais feminista das irmãs Brontë, e o livro que expõe claramente suas opiniões, A inquilina de Wildfell Hall, foi rechaçado na época em que foi escrito por tratar, dentre outros assuntos, de violência doméstica, divórcio, alcoolismo, independência feminina por meio da arte e papéis de gênero.

Ao analisar a obra em detalhes, é possível perceber os motivos pelos quais o último romance de Anne Brontë escandalizou os críticos do século XIX, tanto a ponto de fazer com que Charlotte também se posicionasse contra a obra da irmã e até impedisse sua republicação nos anos que se seguiram à morte de Anne.

Helen Graham 


A inquilina de Wildfell Hall é um livro contado de duas formas: a primeira, através de cartas de Gilbert Markham para o cunhado John Halford, e a segunda, a partir do diário de Helen que ela entrega a Gilbert em determinada parte da trama.

Nas cartas de Gilbert, ele narra os acontecimentos do outono de 1827, quando Helen Graham, uma viúva com um filho pequeno, se muda de maneira misteriosa para a mansão Wildfell Hall perto dali. Não demora para que Gilbert se sinta atraído pela jovem mulher, mas as circunstâncias de sua chegada naquela região, bem como o seu passado, lançam sombra a respeito de quem ela é e de onde veio.

Por meio do diário de Helen, os acontecimentos da sua vida são revelados ao longo de muitos anos. Quando jovem, ela se apaixonou por Arthur Huntingdon, um homem que embora fosse charmoso por fora, sempre foi cheio de caprichos e obsessões, com uma incapacidade de se importar com quaisquer sentimentos que não fossem os seus próprios. Mesmo assim, Helen acredita que Arthur não é um homem mau, e que com paciência e através do seu bom exemplo de conduta e moral cristã, ela poderia convertê-lo em um marido bom e amoroso.

As esperanças de Helen, no entanto, diminuem a cada dia ao lado de Arthur. Já na lua de mel, ele mostra uma completa falta de sensibilidade ao não deixar que a esposa aproveite sua primeira viagem ao exterior, se mostrando mal-humorado quando ela dava mais atenção às paisagens e coisas belas que via do que a ele. Ele também se incomoda com a religiosidade de Helen, uma vez que ela coloca sua fé e devoção a Deus acima daquela que nutre pelo marido. Quando o primeiro filho deles nasce, Arthur se ressente do bebê pela esposa dar, em sua opinião, muita atenção à criança.

“Helen, definitivamente, vou acabar odiando esse pequeno desgraçado, se você continuar a idolatrá-lo tão desvairadamente! Você está absolutamente apaixonada por esse bebê. [...] Que eu esteja chegando ou saindo, presente ou ausente, alegre ou triste; tudo é indiferente para você. Contanto que tenha essa criaturazinha feia para bajular, você não faz ideia do que se passa comigo.”

Durante o início do matrimônio, Arthur se divertia contando à Helen suas aventuras passadas envolvendo abuso de álcool e mulheres. Ao se mostrar ferida e escandalizada por tais histórias, ele ria dela até chorar, confundindo seu desconforto com ciúme de uma jovem esposa e se sentindo apreciado por isso.

Arthur também começa a passar longos períodos em Londres, deixando Helen sozinha. Por semanas, ela fica sem notícias suas, e quando ele finalmente volta para casa, ela percebe que o marido está se afundando cada vez mais em vícios.

“A julgar pelas aparências, sua ideia de esposa é alguém que ame devotadamente, que fique em casa esperando o marido e que o entretenha e proporcione seu conforto de todos os modos possíveis, enquanto ele quiser ficar com ela. E, quando ele se ausenta, que cuide de seus interesses, domésticos ou não, e pacientemente espere ele voltar, sem se importar com o que ele pode estar fazendo nesse ínterim.”

Conforme os anos passam, Arthur abusa cada vez mais do álcool em casa. Ele incentiva o filho, ainda uma criança pequena, a beber vinho nas refeições e não mede as palavras sujas que usa na frente dele, mesmo aquelas dirigidas a Helen. Aos poucos, ela percebe o quanto o filho vem sendo contaminado pela má influência do pai, corrompendo-no dia a dia e estando decidido a transformá-lo em um homem que seja sua imagem e semelhança.

A situação torna-se ainda mais degradante e insuportável quando Helen descobre a traição de Arthur com Annabella Lowborough, uma jovem casada com um dos melhores amigos do marido e que por isso passava longos períodos na casa dos Huntingdon.

Ao pegar os dois juntos nos jardins de casa, Helen confronta Arthur e lhe pede permissão para ir embora com o filho.

“ — Só vou lhe pedir uma coisa [...] você permite que eu vá embora com o menino e com o que resta da minha fortuna?

— Vá embora para onde?

— Para qualquer lugar, onde ele fique a salvo da contaminação da sua influência, onde eu fique livre da sua presença, e você da minha.

— Não, por Júpiter. Não permitirei.

— Você permite então que eu leve a criança, sem o dinheiro?

— Não, nem que você vá sozinha sem a criança. Você acha que eu vou ficar com má fama no condado por conta dos seus caprichos e exigências?

— Então devo ficar aqui, para ser odiada e desprezada. Mas de agora em diante somos marido e mulher só no papel.”

Ao expulsar Arthur da sua cama, a personagem de Anne Brontë fez algo sem precedentes que chocou a todos. Era inacreditável que Helen tivesse tomado tal decisão dentro do âmbito do seu matrimônio. Era inaceitável que uma esposa privasse o marido dos “direitos” que tinha sobre ela.

A escritora May Sinclair, em 1913, escreveu que “a batida da porta do quarto [de Helen] contra o marido reverberou por toda a sociedade e todas as moralidades e convenções existentes”.

Essa ação seria apenas uma de muitas que Helen tomaria ao longo do livro a fim de se libertar da influência de Arthur e conquistar sua independência.

Libertação por meio da arte 


Apesar da recusa do marido de deixá-la ir embora com o filho, Helen não desiste e está disposta a libertar a criança da influência do pai e viver livre longe de Arthur. Para isso, ela começa a pintar muitos quadros para que possa vendê-los e assim garantir o sustento dela e da criança.

Helen sempre foi uma excelente pintora, mas o que antes era apenas uma maneira de passar o tempo naquelas circunstâncias se torna o único meio pela qual ela pode ganhar algum dinheiro.

Na época em que o livro foi escrito, mulheres artistas não eram bem vistas na sociedade, já que aquele era considerado um trabalho masculino. Embora pudessem desenvolver suas habilidades com pintura e desenho, não era esperado que mulheres usassem seus talentos para fazer dinheiro. Não é difícil imaginar que tal ação era repreendida também como forma de minar a já escassa independência feminina, deixando-as à mercê dos parentes homens e as privando de qualquer liberdade que o dinheiro pudesse oferecer.

Anne Brontë

Mas Helen era uma artista e estava disposta a usar suas habilidades para fugir da casa de Arthur Huntington. O plano estava ajeitado e tudo preparado, porém, quando o marido descobre seus planos de fuga, destrói todo o trabalho de Helen jogando seus materiais no fogo.

“Meu material de pintura estava todo reunido no canto da mesa, pronto para ser usado no dia seguinte e apenas coberto com um pano. Ele logo os encontrou e [...] tranquilamente passou a jogar tudo no fogo: paleta, tintas, bisnagas, lápis, pincéis, verniz: vi tudo ser consumido.”

Não satisfeito, Arthur ainda confisca todo o dinheiro de Helen e suas joias, deixando-na com nada mais que tostões para necessidades básicas. Ele diz que não a deixará administrar nada do dinheiro da casa e que, no futuro, lhe dará uma pequena mesada com a condição de que ela faça um relatório descrevendo com o quê cada centavo foi gasto.

Como marido, Arthur tinha mesmo controle sobre o dinheiro da esposa, inclusive a sua fortuna de solteira, mas a destruição do material de pintura de Helen e a tomada de todos os bens que ela possuía e poderia vender no futuro para comprar sua liberdade a privam de qualquer escolha e a deixam prisioneira naquela casa.

Felizmente, por intermédio do irmão, Helen consegue fugir de Arthur com o filho e vai para Wildfell Hall, onde tenta, a duras penas e com as fofocas cruéis dos vizinhos, construir uma nova vida.

Divórcio 


Apesar de raro, o divórcio era possível na Inglaterra do século XIX. Entretanto, as condições que possibilitavam tal ação eram diferentes para homens e mulheres. Enquanto para os primeiros a alegação de adultério era suficiente para desfazer o vínculo matrimonial, as mulheres, além de precisarem provar que o marido foi adúltero, só poderiam entrar com um pedido de divórcio se comprovassem maus tratos ou deserção por parte do esposo. Como o caso de Arthur com Anabella cumpria só um dos requisitos, Helen não podia ser amparada pela lei. Além disso, a violência psicológica que sofria nas mãos do marido nunca seria categorizada como “maus tratos” naquele período.

O divórcio era algo tão impensável que era de senso comum que um casamento, independentemente de qualquer violência e abuso por parte do marido para com a esposa, duraria para sempre até a morte de um dos parceiros. Por essa natureza indissolúvel e por já sofrer por anos nas mãos de Arthur, Helen sempre aconselhava sua amiga e vizinha, Esther Hargrave, a escolher sabiamente o homem com quem pretendia se casar.

Esther se queixava de estar envelhecendo e por isso cada vez mais se tornar um peso para a sua família, contrariando a mãe que queria se livrar dela através do casamento o mais rápido possível. Em uma conversa com Esther, Helen aconselha:

“ — Bem, Esther, estou com pena de você; mas, ainda assim, repito, permaneça firme. Seria o mesmo que se vender de uma vez como escrava, casar com um homem de que você não gosta. Se sua mãe e seu irmão são cruéis com você, você pode deixá-los, mas lembre-se que estará presa ao seu marido pelo resto da vida.”

A partir do caso de Esther, é possível observar que a pressão da família muitas vezes fazia com que mulheres se casassem às pressas apenas para se livrar do sofrimento e deixarem de ser um fardo para os parentes. Em muitos casos, elas saíam de uma prisão para cair em outra.

A irmã mais velha de Esther, Milicent, também foi vítima de um mau casamento. Esposa de um dos melhores amigos de Arthur, Ralph Hattersley, Milicent era totalmente submissa ao marido e tentava escapar de seus ataques de cólera em silêncio. Em determinada parte do livro, quando ela e Hattersley vão visitar os Huntington, Millicent é sacudida e jogada no chão com brutalidade por um Ralph bêbado e violento durante uma discussão. Quando o irmão de Milicent, a pedido de Helen, tenta interferir e livrar a irmã das mãos do marido, Ralph o empurra e diz:

“ — Tome isso pela sua insolência! E para aprender a não interferir entre mim e o que é meu outra vez.”

Milicent e Helen estavam ambas presas pela impossibilidade do divórcio. E não havia agressões verbais ou físicas que as livrassem daqueles homens odiosos.

Críticas 


Após sua publicação, críticos descreveram o trabalho de Anne como “nojento”, “revoltante” e “brutal”. Apesar da primeira edição do livro ter se equiparado ao aclamado Jane Eyre no que diz respeito ao sucesso de vendas, após a morte da autora, sua irmã, Charlotte, proibiu que novas cópias de A inquilina de Wildfell Hall fossem impressas.

De todas as críticas, talvez nenhuma tenha sido tão dolorosa quanto aquela que Charlotte fez a respeito do livro de Anne na época em que ele saiu. Em uma carta para W. S. Williams em 31 de julho de 1848, Charlotte diz (em tradução livre):

“O fato é que nem ela [Anne] nem nenhum de nós esperávamos que o livro tivesse a mesma visão que foi adotada por alguns críticos: que ele tinha suas falhas de execução, as falhas de arte eram óbvias; mas ninguém que conhecesse a escritora poderia suspeitar de falhas de intenção ou sentimento. De minha parte, considero o assunto infelizmente escolhido – um que a autora não estava qualificada para tratar ao mesmo tempo com vigor e sinceridade; a descrição simples e natural, tranquila, e o páthos simples são, penso eu, o forte de Acton Bell. Gostei mais de Agnes Grey do que do presente trabalho.”

Em tal trecho, Charlotte reprova não só a escolha de Anne de tratar de certos assuntos em seu livro, mas também fala como se fosse fato consumado que a obra tinha sérias “falhas de execução” e “falhas de arte”, criticando também a escrita da irmã.

Em 1850, ela também escreveu:

'Wildfell Hall' dificilmente parece desejável preservar. A escolha do tema naquela obra é um erro – estava muito pouco em consonância com o caráter, os gostos e as ideias da escritora gentil, retraída e inexperiente. Ela o escreveu sob uma noção estranha, conscienciosa e meio ascética de cumprir uma penitência dolorosa e um dever severo.”

A decisão de Charlotte de não publicar novas edições do livro fez com que Anne fosse obscurecida ao longo dos anos, sendo considerada injustamente a menos brilhante e mais esquecida das irmãs Brontë. As hipóteses para a posição de Charlotte a respeito de A inquilina de Wildfell Hall são muitas, desde ciúme pelo trabalho da irmã até a possibilidade de ela realmente achar o trabalho fraco ou controverso, o que seria contraditório para alguém que também escreveu uma obra feminista tão importante - embora bem mais suave nesse quesito se comparada ao livro de Anne - como Jane Eyre. Charlotte amava a irmã, não há dúvidas, mas suas decisões a respeito do trabalho dela prejudicaram a construção de um legado que deveria ser tão grande quanto o seu.

Felizmente, Anne vem sendo mais estudada e comentada ao longo dos anos, assim como suas obras. Seu segundo livro, como muitos críticos já disseram, foi uma bomba jogada no seio da hipócrita sociedade vitoriana. Anne não mediu palavras para descrever os danos profundos e irreversíveis de um casamento abusivo e a maneira como o matrimônio mais se comparava a uma prisão, uma vez que a mulher era impossibilitada de sair dele pelas leis dos homens. Por meio de sua heroína, Anne Brontë mostrou que as mulheres tinham sim o direito de serem respeitadas e bem tratadas pelos maridos, e que, se eles não estavam dispostos a agir como tal, elas também podiam contar com seus talentos e determinação para se livrarem de uma vida infeliz, não importava o que a sociedade fosse dizer delas.

A inquilina de Wildfell Hall é, sem sombra de dúvidas, um livro tão importante quanto os de suas irmãs, sendo ainda mais relevante se analisado pela ótica feminista e levando em conta o período em que foi escrito.


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Referências 




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