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A retratista da rainha: a trajetória da artista Élisabeth Louise Vigée Le Brun

Em 2019, o quadro Mahomet Dervisch-Kam, premier ambassadeur de Typpo-Sultan, de autoria de Élisabeth Louise Vigée Le Brun, foi vendido pela Sotheby's por mais de 7 milhões de dólares. O valor, extremamente significativo, não só se estabeleceu como um novo recorde mundial de leilão para artistas femininas pré-modernas como fez com que muitos olhassem com mais atenção para o trabalho da retratista francesa, popularmente conhecida como a artista oficial de Maria Antonietta, uma alcunha que tanto lhe aumentou a fama quanto lhe rendeu o exílio ainda em vida. Sua história e receptividade ao longo do tempo foram tão complexas que só em 2015 a França organizou uma primeira exposição de seus trabalhos, reconhecendo para o mundo que Madame Le Brun foi uma das maiores e mais prolíficas artistas de todos os tempos, além de uma excelente mulher de negócios. 

Nascida em Paris em 1755, Elisabeth pertencia a uma família de recursos modestos, e o pai, Louis Vigée, era um retratista especializado em técnica de tinta pastel, além de membro da Académie de Saint-Luc, uma guilda que reunia os artistas de sua época. Foi ele o primeiro a inspirar nela o gosto pela arte, e, através de lições privadas, incentivou-a a trabalhar com a pintura desde cedo. O contato entre os dois, infelizmente, não foi longo, pois Louis faleceu quando a menina tinha apenas 12 anos. Impossibilitada de buscar uma formação acadêmica por ser mulher, a pequena Elisabeth se tornou autodidata, copiando os grandes mestres como Rubens, Rembrandt e Van Dyck durante visitas à Salões como o do Palácio de Luxemburgo, acompanhada sempre pela mãe, Jeanne Maissin. O incentivo da mãe não tinha a ver apenas com sua vontade de apoiar incondicionalmente o talento da filha, mas também com a necessidade financeira. Após a morte de Louis, a família precisava de rendimentos extras, e aos 14 anos, Elisabeth passou a atuar profissionalmente e construir uma clientela fiel ao seu estilo para ajudar no orçamento de casa.  

Sua ascensão precoce, rápida e consistente pode ser explicada por duas razões pertinentes: a primeira foi o meteórico crescimento da burguesia francesa que, dentre os luxos que se permitia ter, um dos mais cobiçados era o de ser eternizado em um quadro. A segunda foi o talento nato de Elisabeth em entender e saber transpor para as telas o melhor de seus clientes. Observadora inteligente e muito atenta aos desejos dessa classe emergente ela sabia que, para além da transposição dos rostos da realidade para a  tela, os clientes buscavam uma propaganda positiva de si mesmos para expor nos salões e casas privadas. Dessa forma, ela aperfeiçoou a arte de retratar e operar significativas, mas leves, cirurgias plásticas com o pincel, tão sutis que nem sempre o cliente percebia, porém, aprovava com louvor o ar suave e emocional que ela inseria nos retratos.  Esse estilo fresco, suave e vibrante logo se tornou uma marca registrada da artista, que passou a ser requisitada por membros da nobreza e de alto poder aquisitivo. 

Aos 20 anos, Elisabeth já ganhava bem o suficiente para se sustentar sozinha e manter um ateliê de fama considerável. O sucesso também permitiu que ela criasse uma escola de arte para moças, onde instruía jovens que buscavam construir carreira como ela. Foi nessa época que ela conheceu o negociante de arte Jean-Baptiste Pierre Le Brun, com quem se casou em 1776. A união foi, de início, benéfica para ambos. Jean-Baptiste ampliou o acesso dela aos mestres antigos, Salões e coleções particulares. Em contrapartida, o sucesso de Elisabeth rendeu a ele novos clientes e encomendas ao longo dos anos. O casamento, porém, frustrou ainda mais a tentativa de Elisabeth de  ter acesso à Académie royale de peinture et de sculpture, pois, se antes ela não podia ser membro da Académie em virtude de seu sexo, depois de casada o ingresso também lhe foi negado porque havia o entendimento social de que a esposa compartilhava da profissão do marido, e negociantes de arte eram proibidos de se tornarem membros da Académie. 

Autorretrato de Élisabeth Louise Vigée Le Brun (1781)

A única forma de Vigée Le Brun conseguir se tornar um dos artistas da instituição seria através da indicação direta de alguém muito poderoso. O caminho para o sucesso profissional absoluto passava por Versalhes e seus moradores, e foi para lá que Le Brun se dirigiu em 1778 em busca das graças do rei e da rainha da França.

A retratista da rainha: o encontro de Le Brun com a Madame la Dauphine

Aos 23 anos de idade e já estabelecida como uma das mais conceituadas retratistas de Paris, Le Brun finalmente teve acesso à corte de Versalhes e conheceu a rainha, Maria Antonieta, através da indicação da sua já cliente, a Duquesa de Chartress. Na época, a consorte da França estava imensamente insatisfeita com os retratistas da corte que falhavam em capturar a imagem que ela tinha de si mesma e o glamour que pairava ao redor de sua figura e sua posição social. Em uma carta para a mãe em 1774, ela inclusive registrou que “the painters kill me and make me despair”

Le Brun, que há anos entendia os desejos de seus clientes ricos, logo compreendeu o que precisava ser registrado e o que precisava ser mudado nos retratos da rainha, e, desde o primeiro teste, logo suavizou o queixo dos Habsburgos (que outros retratistas evidenciavam), tornando as feições de Maria Antonieta mais agradáveis e tranquilas. Além disso, Le Brun tinha noção de que retratos eram mensagens muitas vezes políticas e seus quadros da rainha comunicariam poderes e ideias. Desta forma, ela reforçou os contornos leves e delicados, além de exaltar a maternidade e a feminilidade exigida da mulher-símbolo da monarquia. A Maria Antonieta dos quadros de Le Brun se impunha como mãe da França, uma imagética necessária para tentar acalmar os ânimos de uma França em ebulição. 

“o facto de Elisabeth a retratar de uma forma mais calorosa que transmitia ao observador uma certa aproximação da figura ajudou-a com a sua posição perante o povo francês, apesar de não ter o poder de acalmar o espírito revolucionário que já fervilhava entre os franceses”

(Catarina Mateus)

Maria Antonieta gostou tanto do trabalho de Le Brun que ela passou a ser figura constante dentro da corte de Versalhes. Ao longo de seis anos, Elisabeth produziu cerca de trinta retratos, tornando-se assim a artista oficial da rainha, além de uma amiga próxima da monarca. O favoritismo também ajudou Elisabeth a realizar o sonho que nutria desde jovem: em 1783, ela finalmente foi admitida por solicitação Real na Académie Royale. E sua estreia no desejado Salão da Académie causou sensação imensa ao redor de seu nome e resultou em  um escândalo junto à classe artística quando ela revelou uma de suas peças: o quadro La Reine en gaulle. A imagem, que apresentava Maria Antonieta vestindo apenas um vestido leve de musselina, buscava mostrar, através da interpretação da artista, uma monarquia mais moderna e elegante, mas a crítica tachou a obra de ousada, inapropriada e imoral. O fato de a rainha da França ser representada em chemise (visto por muitos como uma peça íntima) causou um furor negativo tão evidente que Le Brun precisou retirar o retrato do Salão de Paris e substituí-lo por outro, Marie-Antoinette à la rose, no qual a monarca aparecia vestida com trajes mais formais. 

La Reine en gaulle, por Élisabeth Louise Vigée Le Brun (1783)

Por essa época, a política desastrosa e as dívidas do país acentuavam cada vez mais a crise financeira na qual a França estava mergulhada, o que, por sua vez, causava insatisfação entre o povo e a eclosão frequente de motins e rebeliões. Impopular desde sua chegada à corte, Maria Antonieta, pejorativamente chamada de “a austríaca” pela população, era alvo frequente de ataques dos que viam nela a representação de tudo que havia de nocivo na monarquia. Não foi uma surpresa o fato de que com o tempo todas as pessoas do seu círculo pessoal também se tornassem alvo de ataques parecidos, dentre elas Madame Le Brun. 

Como amiga da rainha e aliada do Regime, a reputação da retratista passou a ser objeto constante de boatos e panfletos que diziam, dentre outras coisas, que ela só havia subido na carreira através de favores sexuais e que seus retratos não eram inteiramente pintados por ela, mas sim por artistas homens. Em 1789, quando a crise francesa se agravou, Elisabeth percebeu que estar associada à corte de Luís XVI não era mais uma vantagem imediata e sim uma ameaça direta à sua vida e da filha (Julie, nascida em 1780). Desta forma, no dia 06 de outubro de 1789, disfarçada de criada, ela saiu de Paris com destino à Itália, deixando para trás muitos de seus trabalhos. Seu nome logo foi incluído na lista dos exilados políticos e suas propriedades, confiscadas, forçando-a a repensar a própria carreira longe de Paris. 

Felizmente para ela, seu talento havia ultrapassado fronteiras e àquela altura a fama de Le Brun já era conhecida em outras cortes europeias. Por anos ela percorreu cidades na Itália, Áustria e Rússia pintando nobres, reis e artistas que admiravam o estilo francês de retratos. Foi na Rússia, porém, que ela se fixou por mais tempo e onde seu trabalho alcançou maior prestígio. Ela se beneficiou da cultura local que, no século XVIII, considerava a França a epítome da classe e elegância e buscava emular tudo que vinha de lá, como a música, a dança, a moda e a arte. Quando Elisabeth chegou à corte russa, ela trouxe consigo a aura francesa que eles tanto buscavam e isso logo lhe rendeu encomendas o suficiente para viver bem e sustentar a si e a filha ao longo dos anos. 

Madame Vigée Le Brun et sa fille, por Élisabeth Louise Vigée Le Brun (1786)

Depois de quase 13 anos de exílio, finalmente lhe foi permitido retornar a Paris, o que ela fez em 1802. Ansiosa para voltar para a cidade que chamava de lar, Elisabeth sofreu um choque de tempos, pois, ao adentrar na França, naquele momento sob o jugo de Napoleão Bonaparte, ela percebeu que a sociedade da qual ela se lembrava obviamente não existia mais. A França napoleônica lembrava pouco a corte da qual Le Brun fizera parte durante anos. Mesmo apegada emocionalmente a um passado que não voltaria mais e amigos que há muito tinham perdido suas vidas na Revolução, ela continuou produzindo seus retratos, inclusive, por um curto período de tempo, na Inglaterra. Le Brun teve tempo também de escrever as próprias memórias entre 1825 e 1837, em que registrou sua carreira, seu tempo como retratista de Maria Antonieta, além de falar do exilio e sua relação com as demais cortes europeias. Morreu aos 86 anos, ainda ativa e cercada de pessoas ligadas à arte, deixando como legado mais de mil obras espalhadas pelo mundo em coleções públicas e privadas. 

É curioso, então, pensar que alguém tão influente e prolífica tenha passado despercebida dos salões e exposições por tanto tempo. A resposta talvez esteja no sexismo da crítica de arte de seu próprio tempo (sua fama lhe rendeu inimigos ávidos) e a óbvia ligação dela com o Antigo Regime. Apesar de sua técnica perfeita, o uso imaculado de cores vibrantes e resistentes e o desenvolvimento de um estilo pessoal, a associação de Le Brun com a corte de Maria Antonieta colocou a artista no grupo de personae non gratae que deviam ser deixadas de lado em virtude dos novos tempos. O preconceito dentro das artes também contribuiu para que sua reputação fosse vilipendiada ainda em vida por pessoas que consideravam seu talento fruto de possíveis casos amorosos ou fraudes, e não produto de uma mente perspicaz, atenta e brilhante. 

O reconhecimento da trajetória de Le Brun, mesmo que tardio, evidencia a necessidade de se olhar para o passado e reconhecer a agência e o pioneirismo de mulheres em períodos que lhes eram desfavoráveis ou poucos receptivos. Como bem apontou em entrevista Joseph Baillio, curador de uma das exposições sobre Elisabeth, "You don't paint with your sex. You paint with your hand, your mind and your intelligence”. E inteligência era algo que Elisabeth Le Brun tinha de sobra e usou para construir uma arte digna de atenção e apreciação.

Referências



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Comentários

  1. Que texto belíssimo! Adoro conhecer mulheres que foram apagadas pelos livros de História redigidos por homens. Pelo machismo.

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    1. Obrigada! Ainda temos muitas histórias para redescobrir e contar.

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