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O papel da mulher e a mulher no papel de parede amarelo


“Nunca na vida vi um papel tão feio. [...] É esmaecido o bastante para confundir o olho que o segue, intenso o bastante para o tempo todo irritar e incitar o seu exame, e, quando seguimos por um tempo suas curvas imperfeitas e duvidosas, elas de súbito cometem suicídio- afundam-se em ângulos deploráveis, aniquilam-se em contradições inconcebíveis.”

Bastaria um pequeno conto de 112 páginas, O papel de parede amarelo, para eternizar Charlotte Perkins Gilman no rol de grandes escritoras do século 19. O enredo é aparentemente simples: uma mulher flerta com a loucura numa casa mal-assombrada. Seu colapso mental envolve um papel de parede que forra o quarto. O emblemático elemento da loucura, o papel de parede, ganharia interpretações variadas ao longo do tempo, reafirmando a genialidade de Perkins. O que há nesse pequeno conto que o fez tão grande?

O papel de parede amarelo foi publicado pela primeira vez em 1852. Charlotte encontrou grande resistência na publicação, recebendo várias negativas naquela época. No entanto, o tempo fez justiça ao seu livro. O conto de Charlotte entraria para o cânone literário no gênero de terror e seria comparado a Edgar Allan Poe. Redescoberto pelo feminismo estadunidense na década de 1970, a obra, hoje, é considerada um clássico da literatura feminista.

A historia é narrada através do diário da protagonista, uma mulher “doente dos nervos”(que, diga-se de passagem, não tem nome, ao contrário dos outros personagens). Ela se muda para uma casa de verão, daquelas casas de campo, afastadas da cidade, por recomendação de seu médico, que por acaso também é seu marido. Em seu quarto há um horripilante papel de parede amarelo, com o qual ela desenvolve uma relação complexa que a conduz em queda livre à loucura. A narradora, que recentemente deu à luz, é confinada num antigo berçário no último andar dessa casa. O tratamento para a sua “enfermidade dos nervos” é o confinamento e a inatividade total, o que na época se convencionou chamar de “cura pelo repouso”.

A prescrição médica da “cura pelo repouso” era comum para mulheres que apresentavam os sintomas categorizados como histéricos. A medicina passava então por um processo de patologização da mulher, justificado pela ciência vigente com base em características fisiológicas do corpo feminino. Era a naturalização do binômio mulher/loucura pelos discursos psiquiátricos e ginecológicos, como se o corpo feminino apresentasse uma natural propensão à loucura e à insanidade, o que na época era chamado de histeria ou, eufemisticamente, de “doenças dos nervos”.

O processo de patologização da condição feminina também decorria da crescente valorização da racionalidade pela cultura ocidental, que estabelecera um binômio artificial entre razão/emoção. Nesse binômio, o homem era o lado da razão e a mulher, da emoção. Esses processos também se repetiriam com a infância e a velhice, pois o que não era masculino ou alinhado ao padrão patriarcal era desviante da normalidade médica.

O tema predominante no conto de Charlotte é a loucura. A interseção entre ser mulher e ser louca foi uma dimensão importante da subjetividade feminina no final do século 19. O estereótipo feminino da época era o de louca e histérica. No século da razão, a loucura ganhara protagonismo, representando a antítese de tudo o que era então valorizado. A loucura era o bode expiatório da sociedade racional e a principal forma de silenciamento do indivíduo. Não por acaso, foi nessa época que a loucura passou a ser tratada de forma segredada da sociedade, em hospitais e clínicas, assim como a protagonista do conto é apartada da vida doméstica e social num quarto no último andar da casa. Foucault discorreu acerca do silenciamento do louco em A ordem do discurso:

“Desde a alta Idade Média, o louco é aquele cujo discurso não pode circular como o dos outros: pode ocorrer que sua palavra seja considerada nula e não seja acolhida, não tendo verdade nem importância, não podendo testemunhar na justiça, não podendo autenticar um ato ou um contrato, não podendo nem mesmo, no sacrifício da missa, permitir a transubstanciação e fazer do pão um corpo; pode ocorrer também, em contrapartida, que se lhe atribua, por oposição a todas as outras, estranhos poderes, o de dizer uma verdade escondida, o de pronunciar o futuro, o de enxergar com toda ingenuidade aquilo que a sabedoria dos outros não pode perceber. [...] De qualquer modo, excluída ou secretamente investida pela razão, no sentido restrito, ela não existia.”

No período que Charlotte escreveu O papel de parede amarelo, o silenciamento do louco e da mulher se mesclaram, transformando-se numa só coisa. Temos, então, o silenciamento da mulher através da loucura. O apagamento da mulher segue um roteiro histórico: na antiguidade, desde Cassandra, a grega, à judaica Lilith, mulheres criativas e possuidoras de vontade, passando pelas bruxas dos séculos 15 a 17, mulheres que dominavam os poderes instintivos da natureza, chegamos às histéricas e às loucas do século 19. A estigmatização do corpo feminino como aquilo que é incompreensível e não dominável, portanto, indesejável.

Em um grande número de romances de horror escritos por mulheres nos séculos 19 e 20, os elementos marcantes de O papel de parede amarelo se repetiriam: casa mal-assombrada e loucura. Citaremos alguns: Laura Purcell em The silent companions, publicado no Brasil pela editora DarkSide como O silêncio da casa fria; Shirley Jackson em A assombração da Casa da Colina; Jane Eyre, de Charlotte Brontë, ou ainda Rebbeca, de Daphne du Maurier. Não foi ao acaso que citamos primeiro o nome da autora e depois o do livro, dessa forma buscamos ressaltar que as narrativas são uma forma compartilhada de experienciar a mesma questão: a questão de gênero. Não é banal que esses temas tenham se repetido tantas vezes ao longo da história literária.

Desde a invenção da novela gótica no século 18, o espaço da casa evoca violência e misteriosas passagens atrás de portas. Mas foi através das mulheres-escritoras que a casa alcançou um sentido mais profundo enquanto espaço de terror. Shirley Samuels pergunta em “How Turn of the Century Feminism Finds Charlotte Perkins Gilman’s “The Yellow Wallpaper”: qual é a configuração que faz com que as paredes de um lar se transformem nesse lugar permeável onde estranhos habitantes entram e saem? 

Ocorre que a vida da mulher era absolutamente estruturada ao redor da família e da maternidade, ou seja, da casa. A casa é a experiência feminina por definição. O único espaço social e político que lhe é reservado, portanto, ela está aprisionada a um papel específico que lhe cabe exercer. Caso não o exerça, não há outro possível, logo, não há existência. Eis porque Charlotte escolheu o papel de parede como elemento do terror. É o papel da mulher, e não a mulher no papel de parede, que assombra a protagonista.

Nesse sentido, a ameaça à individualidade da mulher é o aprisionamento na função doméstica, como a função doméstica é representada pela casa, esta vai ganhando contornos assustadores. Os cantos escuros são os cantos da mente. Pensamentos indesejados e repetitivos são as entidades que se esgueiram pela casa e, nesse caso, pelo papel de parede.

A história reflete acerca do lugar da mulher e a experiência subjetiva engendrada nos processos de gênero. A mulher adoece por ter negada sua existência enquanto ser político. Por definição, o ser político é aquele que pode influir na vida coletiva, que faz parte do tecido social, o que é negado taxativamente à mulher, assim como ao louco. Seu espaço de direito é dentro das quatro paredes de uma casa.

O enredo de Charlotte é simples, mas a execução é complexa. A autora domina um tipo de estrutura narrativa nada trivial, na qual o leitor não sabe em quem pode confiar. A voz narradora pede ao leitor confiança, ao mesmo tempo em que parece omitir muitas informações. Assim, o leitor experimenta o estado do terror que é basicamente o desconhecimento. O leitor não possui a onisciência diante da narrativa. Poucos autores dominaram essa arte tão bem (me recuso a chamar de técnica), tendo um grande expoente em Machado de Assis com o seu Dom Casmurro.

A ambiguidade é o que faz de O papel de parede amarelo uma experiência de terror tão única. Porque nós, leitores, participamos da experiência do desconhecido. Aquilo que não é dito é preenchido pela nossa imaginação.

Por tudo que temos dito, concluímos que os elementos de terror no conto são usados como metáfora para a vida doméstica e para a relação matrimonial. A escrita de horror foi uma forma de denúncia e resistência às condições compartilhadas pelas mulheres. Os temas da loucura e da assombração, que se repetiriam em muitos outros escritos, eram a forma como a mulher nos séculos 19 e 20 experienciavam a própria saúde mental.

O comentário de Elaine R. Hedges atesta a genialidade feminista de Perkins em O papel de parede amarelo:

“A história foi lida basicamente com um conto de terror na tradição de Poe- e também como uma narrativa de aberração mental. É ambas as coisas. Mas é mais do que isso. Trata-se de um documento feminista que discorre sobre a politica sexual numa época em que poucos escritores ousavam abordar o tema, pelo menos não com tanta franqueza.”

O desfecho do conto é a loucura consolidada. Talvez essa seja a única forma de transgredir às normas de gênero impostas, a única maneira de subverter a lógica de gênero vigente. Essa é uma leitura possível, fortalecida pela imagem final do conto: a protagonista finalmente “passa em cima de John”:

Ainda rastejando, olhei para ele por cima do ombro.

“Finalmente consegui sair”, respondi, “apesar de você e de Jane! E arranquei a maior parte do papel, então você não vai poder me colocar de volta!”

Ora, que razão teria aquele homem para desmaiar? Mas o fato é que desmaiou, e bem ao lado da parede, no meio do meu caminho, de modo que tive que rastejar por cima dele todas as vezes!

Qualquer pessoa que queira entender a opressão feminina precisa ler esse conto e experimentar o crescente desespero da protagonista ao ser completamente silenciada. Desespero que cresce como uma sinfonia funesta até atingir o clímax na mais pura loucura. E então, habitando o lugar da loucura, a mulher pode experimentar algum tipo de libertação. É certo que essa libertação chega tardiamente, de forma irônica e amarga, mas, ainda assim, é uma forma de libertação.

Referências




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