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A violência do Saturno de Goya

Um pai come seu filho. 

Suas proporções são maiores, um gigante animalesco, curvado enquanto devora sua vítima. As mãos agarram o corpo inerte, os dedos tensos estrangulando o abdome, quase partindo as costelas ao meio. A pele é doentia, amarelo ocre, quase esverdeada. Pinceladas de tom mais acinzentado sugerem a cabeleira de um ancião. Sua silhueta é disforme. O sexo é dúbio – a região é insinuada, mas não concreta.

O mais assustador é a sua expressão. A cabeça pende para trás. A boca escancarada, devorando o braço, parece berrar em agonia. Os olhos estão no observador e em lugar nenhum, como um lunático. A sobrancelha completa a sinfonia: há medo, há terror, há desespero, mas não há lucidez. O que teme um monstro?

O corpo desfigurado, no centro da obra, está pendurado como um boneco de pano. Não possui cabeça, e seu membro superior está sendo dilacerado por uma mandíbula. O sangue mancha as extremidades amputadas do filho e os dedos do pai. Ambos estão nus, cruamente criaturas, mas nada humanas. Ao redor, escuridão. A luz exibe apenas a grotesca cena. Nada mais, nada menos. 

Um pai come seu filho. 

Mas por quê? 

Saturno e seus filhos

A obra Teogonia, de Hesíodo, narra a gênese do universo conforme a mitologia grega. Nos primórdios, Gaia, a personificação da terra, uniu-se a Urano, personificação do céu. Juntos, geraram os titãs, seres colossais de natureza devastadora. O mais novo da prole era Cronos (ou, para os romanos, Saturno), a representação do tempo. 

Urano governava o universo e detia muito poder, invejado pelo filho caçula. Ele lançou seus primogênitos no Tártaro – prisão subterrânea análoga ao inferno –, deixando Gaia insatisfeita. Ela, então, forjou uma foice e convenceu Saturno a usá-la para castrar Urano. Com um golpe decidido, o titã decepa os testículos do pai, jogando-os no oceano, e se torna o novo senhor dos céus. 

Cronos casou-se com Reia, sua irmã, com quem teve três homens e três mulheres. Ele recebeu de um oráculo a profecia de que seria destronado por um de seus filhos. Temeroso de perder o trono, passou a engolir seus bebês logo ao nascerem. Reia entristecia-se por não poder cuidar de suas crianças. Num gesto de coragem, consegue salvar uma delas ao entregar uma pedra enrolada num pano para Saturno, que engole o objeto sem notar a troca.

Reia escondeu o sobrevivente, Zeus, numa caverna em Creta. Quando atingiu a maturidade, o deus vingou-se de seu pai. Com a ajuda de Métis, sua então esposa, deu a Cronos uma poção que o fez vomitar os filhos devorados. Esse acontecimento deu início à titanomaquia, uma grande guerra entre os titãs e os deuses. Zeus saiu vitorioso da luta, e tornou-se a nova divindade suprema no lugar de seu pai. O lado derrotado se tornou prisioneiro no Tártaro.

Cronos significa tempo, o imortal, daquilo que ninguém escapa: o destino e a destruição. Sequer o próprio titã escapou da sua ruína. 

A história

Não requer muito esforço notar a intensidade sombria que Saturno devorando um filho exala. Seu criador, Francisco de Goya, foi um grande ícone do Romantismo. Ele imprimiu sua desesperança no ser humano e seu medo da insanidade não só nesta, mas num conjunto de 14 pinturas denominadas Pinturas negras, datadas de 1819-1823. Saturno devorando um filho estava, curiosamente, na sala de jantar. 

Em 1819, Goya se mudou para a Quinta del Sordo (Vila do Homem Surdo), um casarão de dois andares fora de Madri nomeado após seu ex-dono. Coincidentemente, o pintor também estava à beira da surdez na época, devido a uma doença desconhecida que contraiu aos 46 anos. As obras foram feitas como murais nas paredes da casa, de onde foram retiradas e colocadas em telas para exposição. Hoje, encontram-se no Museo del Prado, em Madri.

Saturno devorando um filho, por Francisco de Goya (1823)

Após as Guerras Napoleônicas e o turbilhão sociopolítico que acompanhou a mudança do governo espanhol, Goya adotou uma postura ranzinza em relação à humanidade. De um lado, o homem com seus ideais iluministas de exaltação à razão e à ciência; de outro, o uso deste mesmo conhecimento para arquitetar guerras e aniquilar populações. 

Além disso, ele sobreviveu a duas doenças fatais, após as quais desenvolveu extrema ansiedade por medo de ter um relapso, de perder sua sanidade e da própria morte. A junção desse pavor com o desencanto pela sociedade culminou em sua sombria coleção: o fruto de uma mente descrente no mundo e em si mesma.

As obras não foram comissionadas por ninguém, e muito possivelmente não foram feitas para outros olhos senão os seus. Sequer tinham nomes: historiadores da arte que as batizaram, anos depois. 

"Essas pinturas estão tão próximas de serem hermeticamente privadas quanto qualquer outra já produzida na história da arte ocidental."

(Fred Licht)

O conteúdo dessa coleção revela sentimentos de angústia, medo e obsessões profundamente íntimos. Goya abandona seu estilo refinado do auge de sua carreira e investe nas pinceladas brutais, honestas. A paleta de cores se resume a tons de preto, marrom e ocre.

A obra

Diferentemente do mito grego, o Saturno de Goya não devora um bebê ou uma criança, mas um adulto – uma mulher. As curvas da cintura e o quadril largo sugerem que a figura sendo engolida é feminina. Um tema que permeia as obras de Goya é o embate entre o feminino e o masculino, principalmente a brutalidade deste sobre aquele. Outra pintura da coleção, Judite e Holofernes, parece tocar melhor nessa temática ao recriar a cena bíblica em que a personagem Judite de Betúlia seduz e então decapita o general Holofernes para libertar o seu povo.

O modo como Cronos derrotou seu pai também é aludido. A região da virilha está escurecida, e não se sabe se a figura foi castrada. A retirada do falo simboliza a perda do poder e da virilidade masculinos, o que ocorre, mesmo que metaforicamente, com Saturno. Tzevtan Todorov, em Goya à sombras da luzes, afirma que nas versões mais iniciais ele tinha o sexo em ereção enquanto devorava o filho. 

É indubitável que na obra os dentes inviabilizam a vida da vítima, o que não ocorre no mito. Neste, Cronos devora seus filhos por inteiro ainda crianças, que sobrevivem no seu estômago até serem regurgitados. Para Goya, a paranoia de Saturno ultrapassa sua lucidez – o desmembramento é a expressão máxima disso. Seu frenesi ao devorar os filhos é o mesmo do homem que violenta o seu próximo. Para se manter no poder, não há limites. 

Esse aspecto parece ter forte inspiração na releitura Saturno, de Peter Paul Rubens. Nela, o deus, personificado como um ancião, arranca um pedaço do tórax de sua criança, que se contorce e berra. A composição e estilo suavizam a violência do ato. O corpo do titã é musculoso; as estrelas representam a descoberta do planeta Saturno por Galileu alguns anos antes; as pinceladas são esfumadas e conferem à pintura um ar idílico. 

Saturno devorando um filho, por Peter Paul Rubens (1638)

Saturno devorando um filho não foi a primeira vez que Francisco representou o mito. Em 1797, ele fez um rascunho da cena em giz vermelho com uma atmosfera diferente. Esse Cronos se assemelha ao de Rubens: raivoso, decidido. Não há loucura. Os filhos se assemelham a adolescentes, nem tão adultos e nem tão crianças. Uma transição da representação barroca e bela de Peter para a sua última, chocante e assustadora.

Saturno devorando um filho, por Francisco de Goya (1797)

Outras interpretações derivam da cena: a guerra entre o novo e o velho; a antropofagia como símbolo da autodestruição humana; a ira e a cobiça como propulsores da guerra. Todos refletem a desilusão de um homem que presenciou o ressurgimento do absolutismo, as ruínas da guerra e as dores do adoecimento.

“O propósito de meu trabalho é relatar a realidade dos eventos.” 

(Goya)

Referências




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