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A construção do terror em O iluminado

Dentre os favoritos dos amantes do gênero de terror há quase sempre um dos marcantes filmes lançados nos anos 1980. O iluminado é com certeza um dos mais famosos e mais amados da lista, sendo um dos mais fortes predecessores dos vários clichês que encontramos nos filmes de terror atuais.

Escrito por Stephen King, a adaptação para o cinema lançada em 25 de dezembro de 1980 foi dirigida pelo influente Stanley Kubrick e estrelada por Jack Nicholson. Na passagem da obra à adaptação, embora muito se perca, muito pode ser feito para trazer de volta, ainda que distintivamente, o que foi perdido.

É importante, porém, ressaltar os vários defeitos previamente conhecidos do filme: seu diretor controverso, a falta de nexo da história para quem não leu o livro ou sequer chegou a ver o segundo filme, a transformação total de personagens como Winnifred (ou Wendy) na adaptação, e o fato de o próprio Stephen King não ter gostado do filme. Ainda assim, a obra não deixa de ser repleta de detalhes muito interessantes a serem reparados, especialmente para os fãs de cinema. 

Aqui, partimos para uma análise da construção do terror no filme que, diferentemente do livro, embora tenha escolhido deixar de lado premissas importantíssimas, como um olhar mais profundo ao passado dos personagens, pôde lançar mão de elementos visuais e psicológicos para os substituir. 

A estética de labirinto 

O labirinto seria um dos principais alicerces para a atmosfera do filme, e, de acordo com o documentário O labirinto de Kubrick (Room 237), foi um elemento extremamente pensado pelo diretor, que inclusive incluiu um quadro no Hotel Overlook com a imagem do minotauro. 

Na mitologia grega, o minotauro, metade homem, metade touro, era filho de Pasifae e de um touro dado por Posêidon a seu marido. Após o nascimento do monstro e a completa inaptidão de qualquer um para controlá-lo, Dédalo, famoso arquiteto grego, constrói um labirinto onde a fera pode viver sem machucar ninguém, exceto os 7 homens e 7 mulheres que Atena envia todos os anos para tentar findar a besta até que, finalmente, um alcança esse objetivo. 

A carapuça de minotauro veste Jack Torrance (Jack Nicholson), não só para mostrá-lo como incontrolável e como monstro – ele morre no labirinto assim como o ser mitológico –, mas para dar ao Overlook o aspecto de labirinto. 

De acordo com a arquitetura do hotel, é impossível que todas as inúmeras portas que vemos nos corredores realmente levem a algo, dando ainda mais um aspecto sufocante ao lugar. Não obstante, o hotel possui um labirinto de verdade no lado exterior, cuja miniatura reside na sala onde Jack passa a maior parte do tempo escrevendo; sala esta que, ao olharmos o hotel como labirinto, se torna o centro dele. A ambientação também evoca a ideia de que o hotel parece, como dito pela própria Wendy ao andar por seu interior pela primeira vez, "um navio fantasma". 

A construção enorme, antiga e inabitada, causa no público a mesma sensação de sempre, seja ela verídica ou não, aquela inquietação amedrontadora que temos ao nos depararmos com grandes construções, geralmente vazias, e com um passado questionável por trás. A própria lenda dos navios-fantasma e até mesmo cemitérios de grandes tragédias reais, como o Titanic, mostra como possuímos um certo fascínio por esse tipo de horror. O próprio Titanic é citado por Jack no livro, quando o personagem faz uma comparação entre seu elevador e o do Overlook. 

O hotel não deixa de nos provocar a mesma sensação com sua arquitetura, e até mesmo com sua cor. Em O grande Hotel Budapeste, por exemplo, embora sejamos apresentados a uma contrução tão grande quanto as citadas, a cor utilizada rapidamente nos traz interpretações totalmente opostas ao Overlook, mesmo que o observador não tenha visto ambos os filmes. É então que nos deparamos com outro incrível elemento a ser analisado no filme. 

As cores 

Embora as cores tendam a seguir as ideias e vontades do diretor que as manipula, algumas coisas permanecem as mesmas, salvo poucas exceções. A cor vermelha, por exemplo, é comumente utilizada para expressar sentimentos mais intensos, como poder, ansiedade e violência. No caso de O iluminado, ela é um ótimo parâmetro para o início da análise do filme, especialmente se você não é acostumado a reparar em âmbitos mais visuais do cinema; a cor vermelha segue representando intensidade e, neste filme em questão, também representa perigo, mal, e, mais interessante ainda, a infestação deste. Se você já assistiu ao filme, sabe que as cenas mais violentas são completamente banhadas em sangue, mas o interessante é como essa cor se espalha e se amplifica durante o longa.

Uma destas primeiras cenas sangrentas é a famosa cena do elevador. Filmada originalmente em pequena escala, a cena passa para as telas no formato de dois elevadores com suas portas fortemente vermelhas expelindo sangue de seu interior de maneira abundante, banhando o corredor inteiro. Apenas esse flash já é o bastante para nos passar um pouco a ideia do que Kubrick pretende, um ponto de partida.

De volta ao início do filme, nosso primeiríssimo impacto com a cor se dá nos figurinos de Wendy (Shelley Duvall) e Danny (Danny Lloyd). Ambos usam figurinos azuis e vermelhos, enquanto Jack acabava de ser apresentado em um terno marrom monótono. Até então pode-se questionar o porquê Kubrick decidiu apresentar a cor que representa o mal justamente nos personagens de boa índole, ao passo que o próprio personagem que se torna portador do mal não o foi representado assim. É então que a genialidade dos elementos de O iluminado aparece mais uma vez. Quando Wendy conversa com uma psicóloga no início do filme, ela conta como ela e Danny são “perseguidos” pela embriaguez e índole de Jack, que já se tornara fisicamente violento. Ao passo que Jack, neste mesmo início, está tentando a todo o custo fugir dessa imagem que criou para si de bêbado, violento e péssimo pai; tentando criar uma nova oportunidade para si ao tomar conta do Overlook.

O vermelho nos mostra nitidamente aqui onde a sombra do mal parou na família e não pôde ser desfeita. O figurino de Wendy e Danny também é incorporado com azul na mesma quantidade, que simboliza a tristeza e até mesmo o luto dos personagens, ao passo que o figurino de Jack representa a personalidade que este está tentando adotar naquele momento.

Algumas cenas à frente, quando a família toda está indo para o Overlook, apenas o figurino de Wendy muda também para o marrom, o mesmo de Jack no momento, mostrando que ela decidiu acreditar na mudança do marido e acreditar em um futuro melhor para sua família, elemento que se mostra corroborado por suas ações. Já Danny, que ainda se mostra incomodado com o pai e diz não querer ir para o Hotel de jeito nenhum, segue com o figurino azul.

O vermelho também se apresenta em outras cenas do filme: no chaveiro do perigoso quarto 237, na jaqueta de Jack quando o personagem atinge seu maior ponto de loucura, e até no telefone que Dick utiliza para ligar para o Overlook com emergência nas cenas finais, sendo o único elemento vermelho de sua casa marrom, que agora se encontrava banhada por uma luz azul vinda da janela, representando sua intuição no momento em relação ao perigo que cercava Wendy e Danny. Nota-se que o azul e o marrom mostram-se tão importantes quanto a primeira cor analisada. O azul, por exemplo, constitui inteiramente todos os figurinos dos personagens e até parte do cenário no primeiro mês de estadia da família no hotel, mostrando assim a completude do isolamento deles e a tristeza e a melancolia em decorrência disso. Na roupa utilizada na famosa aparição das gêmeas, o azul contrasta com o rosa para trazer um olhar de tristeza e inocência sobre elas.

Já o marrom segue sendo apresentado como fonte de conforto, proteção, confiança e segurança, ou apenas uma tentativa de tais sentimentos, como na roupa de Wendy quando ela decide terminantemente proteger Danny do pai e, no mesmo momento, coloca um roupão da mesma cor em seu filho. Alguns minutos depois ambas as roupas somem quando Jack começa a perseguir sua família com o característico machado.

O famoso tapete do corredor onde Danny passa seus dias andando com seu triciclo evoca a ideia de labirinto, mas também pinta seus contornos. No exterior, o laranja contrasta com o marrom, provocando uma sensação de falso conforto, ao passo que o meio é vermelho, mostrando que não há saída do labirinto sem que se obrigatoriamente passe pelo meio, o mal.

O verde também possui certa importância. Na roupa marrom de Wendy citada acima vemos por baixo uma blusa verde, indicando o conflito de sentimentos da personagem no momento em que, embora estivesse fugindo e se protegendo do marido, não queria acreditar que ele tinha se transformado naquilo. A cor também aparece no banheiro onde vemos o fantasma da esposa do último zelador, mostrando ambiguidade porque, embora ela seja agora um fantasma do Overlook, tudo o que ela fez foi tentar proteger suas filhas. A presença do verde também é bem marcante no labirinto externo do hotel; o hotel queria que Jack pegasse Danny a todo o custo, mas, quando não consegue, ele fica preso lá dentro, ao passo que Danny não encontrou impedimentos para sair, mesmo o Overlook podendo lançar mão de seus recursos para impedi-lo, como fez tantas outras vezes. O verde se encarrega de transmitir dualidade, ambiguidade, confusão e até dúvida.

A neve 

Se tratando de um dos aspectos visuais mais óbvios do filme, a neve não deixa de ser importante na hora de ressaltar o isolamento dos personagens e a frieza da atmosfera onde se encontram. A neve prolifera junto com o mal. Ela aparece inicialmente apenas no hotel, logo que Jack chega para sua entrevista, e, como se fosse o mal sendo plantado pela primeira vez, cresce com o poder ali encontrado.

Poderia se justificar aqui que sem o inverno o isolamento do hotel não aconteceria, tornando Jack um personagem totalmente desnecessário, e fazendo do clima um fator extremamente importante para a história. Embora essa observação seja factual, o isolamento já estava completo apenas com a chegada do inverno, tornando não o clima, mas apenas o acontecimento da nevasca do fim desnecessário, porém, brilhante ao ser sincronizado com o clímax do filme.

A chegada 

De pouca importância em comparação a um filme tão grande e com cenas mais impactantes, o início do longa não deixa de fazer um ótimo trabalho em preparar o espectador para os eventos a seguir. Não só a demora inicial faz a distância se tornar uma experiência e não um fato, quando vemos Jack dirigindo até o Overlook podemos observar outro carro indo na mesma direção que ele, mas permanecendo totalmente imóvel, parado na estrada, enquanto o resto dos carros em movimento é visto apenas indo na direção contrária do hotel, uumentando a sensação de perigo iminente e isolamento para o telespectador.

A troca de observador 

A troca de narrador e personagem principal em um livro é algo totalmente perceptível, ao passo que em um filme pode ser outro elemento usado para aumentar os efeitos de sua história. Em todo filme de terror, somos apresentados a um contraponto para o vilão violento, e esse personagem geralmente se torna um conforto em meio ao caos do filme, nos vemos apegados a ele e somos levados a ver e compreender o filme do ponto de vista dele.

Em O iluminado, para seu telespectador de primeira viagem, nos apoiamos em Jack primeiramente, acompanhamos toda a sua perspectiva em relação ao hotel que, até então, era a peça mais incomum da cena, nos fazendo usar Jack como um olho mágico para espiar os elementos iniciais do filme. O personagem “olho mágico” geralmente é apresentado no início do filme e contrasta com a assombração, assim trazendo conforto e apego ao público.

Quando, na segunda cena, Wendy aponta um problema seríssimo com o nosso personagem observador, nos vemos inconscientemente buscando por um substituto. Para aqueles que escolhem Wendy, logo nos vemos obrigados a abandonar essa ideia quando é visto que o alicerce da personagem não é tão forte, e que suas cenas não estão, até o momento, inseridas no contexto de perigo, não nos permitindo assim espiar o cenário por trás dela ou confiar nela, até porque, graças à adaptação, a personagem além de tudo parece fraca, fadada a ser uma das primeiras a perecer. Nos voltamos então para Danny, que na primeira cena já mostra certas peculiaridades, seu “brilho” e amigo imaginário Tony são o bastante para que, aos olhos de quem não tem a menor ideia do rumo do filme, não confiemos inteiramente nele também. Tornando assim impossível para o espectador se apoiar em algum personagem, nos deixando ou inteiramente suspensos ou nos fazendo pular de personagem em personagem, causando desconforto e a própria sensação de isolamento do filme no telespectador. Essa é uma das características única e exclusivamente vistas no filme e não em sua obra de inspiração, que deixa claro de antemão quem são os personagens confiáveis.

As aparições 

O timing das aparições no filme também é interessantíssimo.

Nos filmes de terror moderno, tem sido comum utilizar o efeito de suspense no filme inteiro e revelar a causa só no final, visto que a imagem em si das aparições não tem sido mais o suficiente para assustar a maior parte do público. Os poucos filmes atuais que optam por mostrar em algum momento a forma física de suas assombrações, salvo raras, porém, existentes exceções, perdem a graça e a atmosfera de mistério completamente no minuto em que o fazem; isso acontece porque, nesses casos, a assombração em si é o máximo que a história tem a oferecer, e quando aparece no filme, perdemos completamente a vontade de assistir o resto; daí a necessidade dos filmes atuais mostrarem a forma física das aparições apenas no final, quando o fim é iminente e perder a atenção do espectador não é mais um problema.

O poder de King e Kubrick se mostra inigualável em O iluminado quando ainda que os efeitos especiais e maquiagens dos anos 80 mostrem suas assombrações, fantasmas e cenas sanguinolentas no início, meio e fim do filme, não fazem com que o público perca o interesse em momento algum, uma vez que a história é imensamente maior que apenas um par de fantasmas que corre atrás de um protagonista indefeso.

Em convergência com o assunto “fantasmas”, é comum hoje em dia eles serem feitos e vistos pela estética do cristianismo. Assim temos um enorme grupo de escritores e diretores baseando filmes inteiros em uma história pré-existente do mundo real, o que não só facilita e corta o trabalho deles pela metade como vem deixando todos os filmes de terror atuais repetitivos, sem graça e com os finais previsíveis nos primeiros 10 minutos. Não obstante, temos agora grupos utilizando a mesma estética para tratar de assuntos extremamente delicados; em O exorcista do Papa, por exemplo, somos levados especificamente pela ótica cristã a entender como a Inquisição é culpa inteiramente dos demônios de sua egrégora. Esgotando mais uma vez a fonte de filmes de terror com base em demônios – algo que já liquidou a paciência de todos os amantes de terror, independentemente de suas crenças pessoais – e ainda usando isso para justificar assuntos reais e imperdoáveis.

Em O iluminado, Stephen King mais uma vez cria um universo completamente paralelo ao nosso, inovador, e que tem metade de seu mistério alicerçado na nossa ambição e curiosidade em descobrir mais ao decorrer de sua história.

Embora, não possamos deixar passar o fato de a história estar sim levemente contaminada pela mesma ótica dos terrores hodiernos quando vemos o mal do hotel ser justificado pelo fato do local ter sido construído em cima de um cemitério indígena. Entre as belezas de construção do filme, foi uma total falta de noção termos uma justificativa dessas, uma vez que com ela ou não o filme segue sendo confuso em revelar a origem de suas assombrações, e, do contrário, a ausência da justificativa manteria sua atmosfera misteriosa ainda mais.

O terror em Jack Torrance

Os elementos que compõem o personagem cerne do filme abrangem inúmeros assuntos. Quando Kubrick decide elevar a escrita de Jack como uma de suas características mais importantes, ele automaticamente traz a estética do escritor perturbado. Passível de ser encontrada em grande parte dos filmes que abordam o assunto, o escritor é geralmente visto como uma figura solitária, depressiva e geralmente bêbada. A estética do escritor converge perfeitamente com a personalidade lapidada para Jack, com seu psicológico atormentado.

Como bem observado por Mia Sodré em O iluminado: estigmas da saúde mental no terror, o terror e o psicológico andam sempre de mãos dadas. Os filmes sempre fazem questão de apontar como, apesar das representações físicas, a verdadeira porta para o mal geralmente tende a ser a mente depressiva de um dos personagens. No filme em questão, embora o hotel esteja atrás do brilho de Danny, é Jack que se torna a ferramenta para chegar a ele graças a sua pré-disposição mental. Quando Jack entra no Gold Room e o bartender o faz tomar como parte de seu objetivo a punição de sua família, o Overlook e Jack estabelecem uma relação; como em uma possessão demoníaca, é apenas quando Jack aceita a conexão com esse lado espiritual que a fusão entre os dois está completa.

Um tempo depois Wendy encontra Jack na escadaria, onde ele ameaça matá-la; como justificativa ele foca em sua responsabilidade com o hotel, como ela está atrapalhando suas funções e como é inconcebível que a família quebre o contrato feito de cuidar da locação até o fim do inverno. Seria isso o Overlook o cobrando suas responsabilidades ou Jack teria incorporado uma manifestação do hotel ao dizer essas palavras? Independentemente da resposta é visível que o hotel tem vontade própria e que utiliza quem precisar para cumpri-la.

Quando algumas cenas à frente Wendy consegue prender Jack na despensa, é o próprio hotel que o liberta dali, dizendo que ele possui só mais uma chance para provar que consegue punir sua família. No momento em que Jack falha nesta missão não é apenas Danny que o faz se perder no labirinto, mas o próprio hotel, como punição por ele não ter cumprido o que prometeu. Mesmo assim, a relação condutora entre o personagem e o hotel não é desfeita; ele se torna parte do Overlook como sempre foi, como podemos observar no último quadro do filme, no qual vemos uma foto de 1921 com Jack no centro dela.

São inúmeros os elementos que compõem a genialidade de O iluminado, e embora o filme divirja muito de sua fonte original é inegável que fez um bom trabalho ao se tornar um dos filmes de terror mais bem pensados e construídos da nossa época. O que King fez para conseguir um livro tão bem escrito, Kubrick fez para lançar um filme extremamente aclamado, fazendo com que, apesar das discordâncias, ambos entregassem obras-primas à sua maneira.

Referências 




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