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O Maneirismo e os poetas metafísicos


Os movimentos artísticos mais rememorados que datam o período da Idade Moderna são o Renascimento, em seu início, o Barroco, e até mesmo o início do que se desenvolveria no Romantismo entre os séculos XVIII e XIX. No entanto, um outro movimento igualmente relevante se deu entre o saudosismo clássico e o Rococó: o Maneirismo.

Podemos localizar o Maneirismo entre os séculos XVI e XVII, ou, mais especificamente, entre os anos de 1540 e 1620 – geralmente, considera-se que o período clássico tenha enfrentado seu fim em 1520, com a morte de Rafael. Apesar de sua curta duração, a arte produzida em seu período engloba importantes nomes, como Tasso, Miguel de Cervantes, William Shakespeare, Camões e John Donne. O conceito de Maneirismo surgiu primeiro dentro das discussões da história das artes plásticas, quando Max Dvořák, historiador da arte austríaco (1874–1921), observou que Michelangelo e Tintoretto já não pertenciam mais à Renascença, mas El Greco ainda não era propriamente Barroco.

Cultural e ideologicamente, o Maneirismo foi uma corrente racionalista, fruto de uma generalizada crise renascentista que propôs soluções estéticas encontradas no antinaturalismo e no anticlassicismo. Proveniente da península itálica, essa tendência teve reflexos em toda a Europa Ocidental, e se caracterizou por sua tripla condensação: unindo elementos do espiritualismo medieval, do naturalismo renascentista e dos princípios reformistas e contra reformistas de seu tempo. Em oposição ao conceito renascentista da obra de arte como imitação da natureza, os maneiristas tinham como fundamentação a “ideia” no sentido platônico do termo – ou seja, sua forma pura.

A individualização do artista, a melancolia exacerbada, uma profunda insatisfação e instabilidade emocional no espiritualismo são sintomáticos das mentalidades em crise que compuseram este movimento. Isso reflete e se traduz no rompimento com os excessos e com o estado de falsa harmonia social adotada pelo Renascimento tardio, encarando a contrarreforma e o momento político enfrentado, tornando-se, portanto, o resultado da decadência do Classicismo.

Ao contrário do Impressionismo, que ainda trazia consigo traços profundos do racionalismo e do realismo da arte clássica, sendo, portanto, ainda extremamente vinculado à Renascença, o Maneirismo constituía um afastamento muito mais radical do ideal clássico baseado nos princípios de ordem, proporção e equilíbrio. A beleza e a disciplina já não bastavam, e o equilíbrio e a ordem de outrora pareciam falsos para as novas gerações. Pela primeira vez, a arte divergia da natureza, o que proporcionou a criação de padrões estilísticos e estéticos completamente novos.

Dessa forma, o Maneirismo, enquanto crise renascentista, pode ser observado como o “reflexo mais verdadeiro da arte do que as ostentadas paz, harmonia e beleza dos clássicos”, segundo Arnold Hauser, historiador da arte. Essa busca pela representação da humanidade em seu cerne tem raízes no preceito anti-humanista da Reforma Protestante, coincidindo Lutero, Calvino e Shakespeare em suas concepções sobre o homem enquanto ser social, revelando um pragmatismo em suas filosofias.

Ademais, podemos tratar o espiritualismo maneirista enquanto algo jamais passível de ser totalmente expresso em forma material, estilo advindo da dúvida que gerou a crise renascentista a respeito de se seria possível conciliar o espiritual com o físico, a busca da salvação e a busca da felicidade terrena. Essa reflexão se mostra bastante clara na poesia metafísica do autor inglês John Donne (1572–1631).

Donne foi o maior representante dos chamados metaphysical poets, uma corrente literária que se desenrolou na Inglaterra do século XVII. Esse grupo de artistas tem como marca característica a exploração filosófica e intelectual, a ironia e a escrita coloquial utilizadas para tratar de temas como amor, religião e moralidade. Seu quê de unicidade se dá pelo artifício do uso sagaz de comparações singulares e dos relatos dos avanços tecnológicos em seus poemas.

Nascido em família católica em pleno período da Reforma, Donne converteu-se ao anglicanismo para tentar a sorte na carreira de escritor público. Sua preferência religiosa se mostra presente nos seus poemas, especialmente no “Valediction: Forbidden Mourning”.

A ideia principal do poema está no dualismo e na disparidade entre o amor carnal e o amor espiritual. Nas primeiras duas estrofes, Donne sugere que, embora ele e sua amada estejam fisicamente distantes, suas almas permanecem conectadas, visto que o amor que ambos compartilham é espiritual e transcende, portanto, o corpo.

“But we, by a love so much refined
That ourselves know not what it is,
Inter- assurèd of the mind,
Care less, eyes, lips, and hands to miss.”

“Mas nós, por um amor tão refinado
Que sequer conhecemos os seus imos,
O pensamento mútuo-assegurado,
De olhos, lábios e toque prescindimos.”

Ademais, há uma justaposição entre imagens e palavras, mais bem apresentada na terceira estrofe, que pode ser relacionada com a transição de Donne entre o mundo católico e anglicano. Sabemos que, para o anglicanismo, o culto de imagens (estátuas e pinturas de figuras bíblicas) não tem significado, ao contrário do que ocorre no catolicismo. As palavras e o sentimento espiritual estão acima da imagem, do material e dos sentimentos mundanos. O corpo, nesse poema, é uma alegoria para tais imagens, enquanto o amor espiritual refere-se à esfera das palavras.

As estrofes 4 e 5 dão continuidade à ideia de um amor espiritual elevado que os guiará durante sua separação. A sexta estrofe aborda a ideia de alquimia, pontuando que suas almas estão conectadas como um pedaço de ouro, que se alarga e fica mais fino, mas nunca quebra.

“If they be two, they are two so
As stiff twin compasses are two;
Thy soul, the fixed foot, makes no show
To move, but doth, if th’ other do.”

“Sejam duas, o são à semelhança
Das duas rijas pernas do compasso:
Tua alma, a ponta fixa, não avança,
Porém se move consoante o traço.”

As estrofes 7, 8 e 9, no entanto, apresentam a característica mais distinta da poesia metafísica já citada anteriormente: a comparação com os avanços tecnológicos de sua época. Aqui, Donne compara ele e sua amada com um compasso – ela sendo a parte que se mantém fixa, enquanto ele se torna a parte que desenha, e desenha um círculo. Encontramos aqui uma metáfora para o desenhar do círculo, que representa a distância e ao mesmo tempo o retorno para o local de partida.

A partir desta breve análise, notamos, portanto, as aproximações entre a produção metafísica enquanto corrente proveniente do Maneirismo. Outros poemas de John Donne trazem tais abordagens, como “The Sun Rising”, e outros poetas metafísicos merecem ser citados, como George Herbert, Andrew Marvell, Abraham Crowley e Henry Vaughan.

Embora aclamado em seu tempo dentro do seu círculo de admiradores, posteriormente, entre os séculos XVIII e XIX, Donne e sua produção poética foram cada vez mais deixados de lado. Foi apenas durante o século XX, em 1919, que sua literatura foi retomada, graças ao movimento modernista. Nomes como T. S. Eliot e William Yeats se inspiraram grandemente na poesia de Donne para criar sua própria arte, agregando, por vezes, diversos elementos característicos do poeta.

Esse resgate de Donne entre as décadas de 1920 e 1930 explica a conexão entre o escritor inglês e Ernest Hemingway. Um dos livros mais bem-sucedidos de Hemingway, Por quem os sinos dobram (For whom the bell tolls), publicado em 1940, é um excerto de Devotions upon Emergent Occasions. No final da Meditação XVII, Donne escreveu: "and therefore never send to know for whom the bell tolls; it tolls for thee":

“Nenhum homem é uma ilha, inteiramente isolado, todo homem é um pedaço de um continente, uma parte de um todo. Se um torrão de terra for levado pelas águas até o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse o solar de teus amigos ou o teu próprio; a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntai: Por quem os sinos dobram; eles dobram por vós.”

Existencialismo é, portanto, a palavra-chave que une ambos Donne e Hemingway, ambos modernistas e metafísicos maneiristas.

Em uma perspectiva histórica, não é surpreendente que este movimento tenha se apagado com o passar dos tempos. Contradições a respeito de sua afirmação enquanto movimento propriamente dito devem ser levadas em consideração: no final das contas, o Maneirismo pode ser interpretado como um momento transitório, advindo de um turbulento panorama sociopolítico vivido na Europa naquele tempo. Desse modo, é justificável compreender os autores, pintores e escultores que compuseram-no enquanto fundamentados nos elementos pertinentes à recusa do passado, mas não necessariamente à adoção completa do futuro.

Referências




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Ana Júlia Neves
Pernambucana nascida em 2003, amante dos clássicos da literatura, de todas as vertentes do rock e do cinema como um todo – pura cultura pop. Estudante de História pela Federal da Paraíba, vivendo sua fase "Rory Gilmore em Yale". Obcecada por um artista diferente a cada semana.

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