O período da ditadura militar consolidou-se em 1964 e perdurou até 1985, momento que censurou a arte em todas as suas feições, esta que era a voz do povo que resistia enquanto o regime autoritário reprimia de forma violenta, silenciava e aprisionava a quem se manifestasse de forma contrária. Foram diversas as restrições e punições, de maneira que as circunstâncias da época exigissem um cuidado maior nas composições dos diversos artistas, os quais necessitaram de artifícios que pudessem driblar a censura, usando metáforas para que suas músicas não fossem vetadas.
A música popular brasileira surgiu com a segunda geração da bossa nova, nascendo em seus tempos mais difíceis; em 1960, a cultura do país era marcada historicamente pela crise política e o golpe militar. O movimento extremista mobilizou, principalmente, artistas vinculados à esquerda política, os quais redigiam protestos em suas letras, ocasionando a censura de diversas composições, o exílio e a prisão dos demais compositores da época. Não havia limites para a arte, e o posicionamento dos artistas atravessa gerações, pois sua manifestação foi bater de frente com as posições contrárias, apresentando seu descontentamento ainda que fossem alvos de perseguição.
Para garantir a aprovação das
canções, os artistas apresentavam as letras de suas músicas ao representante do
governo, o qual diria se estas poderiam ou não serem lançadas. Assim, inúmeras
canções foram impossibilitadas de chegarem à voz do povo; ainda que existissem
de forma maneirada pelas figuras de linguagem, alguns optaram por denunciar de
forma objetiva e direta. Muitos foram os artistas que se
posicionaram, e, sendo intencional ou não, algumas
canções somente tempos depois após uma "revisão" eram interpretadas e
compreendidas pelos militares como uma provocação, visto que a forma como foram "maquiadas" conseguiu driblar a repressão do momento.
Chico Buarque é um nome de grande destaque no mundo da música até os dias de hoje, mas principalmente naquele período autoritário em que o artista usou sua música, sua voz, como um instrumento para contestar a ditatura militar, deixando registrado em suas canções a vivência de sua jornada contra a repressão. O cantor estava na mira da repressão havia anos, por suas obras "subversivas", como a peça Roda Viva e sua participação na Passeata dos Cem Mil. Exilado na França e retornando ao Brasil apenas em 1970, Chico se decepcionou cada vez mais com o cenário, e sua indignação se tornou visível na letra de sua música Apesar de você, na qual o cantor fazia uma critica ao regime militar, mas, de forma acobertada: o artista finge falar sobre a relação de um casal, portanto, a música foi aprovada; porém, após revisões, a canção foi proibida. Em 1973, Buarque e Gilberto Gil escreveram a música Cálice e, devido a explícita crítica ao regime político e o duplo sentido do título ("cálice" e "cale-se"), que ocasionou sua censura, a música foi gravada somente em 1978, na voz de Chico Buarque e Milton Nascimento. Ocorreu uma apresentação de Buarque e Gil no phono 73, mas eles foram impedidos de cantar a letra original e realizaram somente interjeições, o que intensificou a crítica à censura que a letra trazia e, por isso, seus microfones foram silenciados ao vivo.
Igualmente ao cantor Chico
Buarque, outros artistas foram pioneiros no quesito de divulgar canções politicamente
engajadas, para que estas ocupassem novos e devidos espaços de direito.
Artistas como Geraldo Vandré, Nara Leão e Sérgio Ricardo participaram desse movimento. Seus estilos se
centravam na denúncia e no protesto, sendo a essência de suas canções.
O cantor Raul Seixas foi outro nome que teve seu destaque e também foi censurado; em 1973, quando compôs a música Mosca na sopa, usando o termo "mosca" como referência para os revolucionários e "sopa" para os militares, a música foi uma dentre as demais que acabou vetada no período. No ano seguinte, Seixas e Paulo Coelho lançavam a música Sociedade alternativa, sendo vetada principalmente em shows por sua letra que aborda uma crítica à época: "Faça o que tu queres, pois é tudo da lei". O próprio artista realizou um autoexílio, se mudando para Nova York por conta própria, pelo fato de ter sido muito perseguido.
Além da censura nas inúmeras canções que denunciavam o caos da época, músicas que abordassem temas como relações amorosas ou sexuais e destacasse "liberdade", "homossexualismo" e "anistia" seriam alvos de censores, e nomes como Rita Lee e Belchior foram vetados por suas canções possuírem tais trejeitos. O cantor, por sorte, não teve sua música Apenas um rapaz latino-americano vetada, porém, é claro nela as referências ao momento opressivo do país, especialmente quando é falado sobre a repressão da expressividade e no fato de que o cantor não estava de acordo com o interesse dos censores, deixando claro que: "Não me peça que eu lhe faça uma canção como se deve, correta, branca, suave, muito limpa, muito leve". Em 1977, sua canção Pequeno mapa do tempo foi proibida por conter de forma explícita uma referência sobre o exílio, que era o "medo" de muitos artistas naquele período, coisa que o cantor destaca: "Eu tenho medo de que chegue a hora em que eu precise entrar no avião".
Trazendo de volta o nome de
Geraldo Vandré, sabe-se que ainda hoje a sua música Pra não dizer que não
falei das flores é grande referência, pois a canção
foi uma dentre as demais censuradas, deixando visível as claras alusões que feitas à realização de passeatas e às manifestações anti-opressão. Em
1968, a canção participava de um concurso de votação popular, no qual ficara em
segundo lugar por ter sido rebaixada de classificação, quando teria ficado na
primeira colocação. O artista foi obrigado a retirar-se do país em 1968, podendo
retornar somente em 1973.
Caetano Veloso teve algumas de
suas canções censuradas e foi um dos alvos de perseguição do regime autoritário. O artista, junto de Gilberto Gil, foi preso por 3 meses e, logo após, exilado para a Europa no período de um ano. Caetano lançava, em 1968, a canção É proibido
proibir, e Gilberto Gil, a canção Aquele abraço, no ano seguinte, vista como uma
despedida antes de partir do Brasil.
Grande parte desses acontecimentos que se agravavam era devido ao Ato Institucional Número Cinco (AI–5), o qual permitiu à autoridade um poder maior; promulgado em 1968, os militares perseguiram de forma mais violenta os seus opositores, sendo cada vez mais perigoso bater de frente com a ditadura. Qualquer manifestação poderia levar aos caminhos do exílio, morte, tortura e censura - e aos casos de pessoas que eram deportadas e presas. Ainda com inúmeros receios, a esperança era a forma de como as pessoas driblariam esse sistema opressivo. Um exemplo disso foi quando Chico Buarque ousou na tentativa de criar um pseudônimo, Julinho de Adelaide, enviando a letra a Jorge Maravilha, já que o seu próprio nome era visto de forma censurada; a perspicácia e a "malandragem" do artista se fez presente, e ele não mediu esforços para manter a voz diante do poder autoritário.
“Você não gosta de mimMas sua filha gostaEla gosta do tangoDo dengoDo mengoDomingoE de cosca”
A música, ainda que aprovada, foi interpretada como uma provocação ao ex-presidente Ernest Geisel
(1974-1979), já que sua filha, Amália Lucy, de forma contrária, já havia declarado
o fato de gostar das obras do artista, mesmo que este tenha negado que a música tinha sido para ela. E ainda que a canção tivesse tido o seu sucesso, o pseudônimo
que driblou a censura deixara de enganar e passou a fazer com que os censores
da época exigissem RG e CPF dos compositores.
É visível que há muito sobre o
que falar e expor acerca daquele período e a forma como diversos artistas eram a
voz do povo, manifestando seus direitos, ainda que fossem nítido
os perigos naquele momento e o quão maléfico o regime autoritário fora e agiu,
não somente nas censuras de canções, mas em diversos outros setores
socioculturais.
Anos após esse período, nascia a Tropicália e o sucesso da Jovem Guarda logo em seguida, e muitos desses artistas voltavam a fazer suas músicas com um pouco mais de liberdade, acompanhados de outros que viriam a se destacar junto deles, fazendo de suas artes uma revolução, a qual bateu de frente e fez história, revelando clássicos que ainda hoje são presentes e apreciados com admiração.
"Estava à toa na vidaO meu amor me chamouPra ver a banda passarCantando coisas de amorA minha gente sofridaDespediu-se da dorPra ver a banda passarCantando coisas de amor"
Referências
- Histórias do MPB e da censura (Revista Torta)
- Conheça a história da MPB, a Música Popular Brasileira (Uol)
- A música e a censura da ditadura militar (virtualia)
- Passeata dos Cem Mil afronta a ditadura (Memorial da Democracia)
- Música Popular Brasileira: da censura à liberdade (Cursos de Canto)
- De Chico Buarque a Gal Costa: Relembre músicas que combateram a ditadura militar no Brasil (itatiaia)
- Chico Buarque: desde a Bossa Nova até o fim da ditadura no Brasil (Hedflow)
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