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Janis Joplin: entre a transgressão e a adequação

"Não traia a si próprio, é tudo que você tem."

(Janis Joplin)

Nascida em 19 de janeiro de 1943, sob o signo de capricórnio, Janis Joplin, por mais que tentasse esconder, carregava toda a determinação e resiliência de seu sol, e junto disso toda uma transgressão. Por não conseguir pertencer à ordem abominava-a e, assim, criou a grande persona deusa do Rock’n Roll, a de quem não temia a vida e de para quem o seu sucesso era algo despretensioso, em que o sofrimento era só diversão, quando na verdade a potência de sua voz, a rouquidão e os gritos nos palcos eram a queima viva da artista. Era essa mulher que estava há anos em uma jornada para encontrar seu lugar no mundo e pôr para fora toda a sua kozmic Blues.

Janis nasceu em uma cidadezinha no interior do Texas chamada Port Arthur. Um lugar enfadonho demais para dar conta da personalidade transgressora que viria a surgir. Desde a infância era considerada uma moleca, sempre vestida como uma boneca pela mãe, mas carregando um comportamento de rapazinho que tentava suprir a todo tempo a necessidade de um filho que seu pai tanto queria. Foi na infância que começou a descobrir um dos sentimentos que viria a rondar toda a sua vida, a solidão. Ao ocupar o lugar de irmã mais velha, a atenção de que tanto necessitava fora direcionada aos mais novos e seu senso de rebeldia só aumentava. Seu primeiro despertencer fora em seu próprio lar.

Por conta da sua aparência masculina, por não se desenvolver como as meninas de sua classe, Janis começou a sofrer bullying no ônibus escolar e, principalmente, na escola. Aos 11 anos já era a outsider dos espaços que ocupava. Com o tempo e com o boom do rock nos Estados Unidos, tornou-se uma protagonista ideal para a juventude transviada. Seu primeiro talento artístico foi refletido na pintura, já despontando como uma possível artista plástica; Janis, apesar da paixão, não havia descoberto seu talento musical ainda.

Nos anos 1950, um movimento literário tomou conta dos Estados Unidos, a geração beat; esses artistas produziam toda a literatura que o grupo de Janis Joplin precisava, a discussão sobre a libertação moral, a contracultura, o prazer das viagens, do sexo, da loucura e das experiências pessoais eram temas abordados por eles. Assim, Janis abraçou o movimento nos comportamentos, na vestimenta e nos pensamentos, ela se autodenominava a beatnik de sua cidade, a outsider. Aos 14, já era uma revolucionária.

O sentimento daquele microcosmo social em relação a Janis era de repúdio e apreensão, não só pelo seu comportamento desordeiro ou seu grupo de amigos beatniks, mas pelo desprezo que ela nutria pelas leis da segregação racial. Janis não se importava, mais precisamente, abominava o costume, mantinha amizades e uma paixão pela música negra. Frequentava festas e bares segregados e cantava a plenos pulmões as músicas das suas grandes divas, Etta James, Bessie Smith e Big Mama Thornton. Janis foi eleita então a pária da cidade.

"Não havia ninguém como eu em Port Arthur [...] Sentia-me solitária. Tantos sentimentos aflorando, sem ter com quem conversar. Eu lia. Pintava. Não odiava os negros."

A essa altura fora apelidada de “amante de crioulos”, frequentava boates de strip, seu consumo de álcool crescia e sua fama só piorava. A menina tão idealizada pela mãe na infância não conseguia ser aceita em sua cidade texana, queria sair de carro pelos EUA como um personagem de Kerouac, mas encontrou sua primeira parada na universidade, desestimulada pela pintura e sem perspectiva na música, Janis tinha 18 anos e nenhuma casa com cerca branca para idealizar.

Entretanto, diferentemente do que essa personalidade rebelde parecia revelar, Janis era extremamente sensível e o fato de não pertencer a feria profundamente. Em suas entrevistas, suas mágoas em relação a sua cidade natal pareciam só motivo de piada, mas toda a rejeição à sua personalidade ajudou a consolidar a sua tristeza cósmica. Ela tinha, antes de tudo, uma vontade enorme de pertencer e ser amada, contudo, Port Arthur não poderia fazer isso por ela. Sua história foi uma busca incessante pelo amor e pelo pertencimento, seja através da música, dos fãs ou dos homens, estes que sempre partiam seu coração e a deixavam para trás. 

A fuga

Rebelde demais para permanecer em seu círculo familiar, Janis é vista como um mau exemplo para os irmãos mais novos; a ovelha negra da família, uma classificação que parece comum às rainhas do rock. Apesar disso, tentava sempre agradar a mãe, assim enveredou-se na datilografia e como recompensa foi morar com a sua tia em Los Angeles; a costa oeste finalmente seria sua.

A sua fuga de Port Arthur abriu os olhos de Janis para seu próprio talento, encarnou sua persona beatnik em Venice Beach, explorou sua liberdade sexual, consumia jazz em todos os cantos, junto disso acabou explorando as drogas e o seu consumo de álcool estava cada vez mais excessivo. Assim, teve início seu ciclo de idas e vindas; no fundo do poço, como o filho pródigo, retorna ao lar em busca de perdão e amor. Essa relação viria a se repetir por anos em sua vida.

A essa altura, Janis já cantava o blues e o jazz à la Bessie Smith, abalando os bares e clubes texanos. Além de lutar a todo tempo pelos seus gostos musicais e literários, pela sua personalidade, Janis, com a recém liberdade adquirida, fazia o que queria e com quem queria, dormia com diversos homens e mulheres, assunto problemático em sua época e em seu estado. Em sua necessidade de aceitação, mesmo com o visual despreocupado, temia sentir os próprios sentimentos, carregava uma tristeza unida a frustração; sua única forma de canalizar esses sentimentos conflitantes era através de sua voz e suas músicas, o que levou tudo dela no caminho da sua descoberta musical.

“O álcool faz a gente fazer coisas estranhas. Será que isso me torna uma má pessoa? Como você se sente a meu respeito agora?

Regada a tristeza e ao blues, ela compôs suas primeiras músicas “What good can drinkin’ do” e “Daddy, Daddy, Daddy,”. Composições diferentes do que a levou ao sucesso estrondoso em 1968 com o álbum Cheap Thrills, eram canções mais antigas, mas que demonstravam o poder de sua voz. Como cantora de Blues, reconhecia naquelas antigas letras os sentimentos que rondavam sua vida, uma outra face feminina, a da solidão. Para manter essa constante tristeza controlada recorria à uma espécie de jogo “up and down”, as anfetaminas elevavam seu espírito e humor, o álcool controlava as pílulas. No meio desse devaneio, a constância era a sua música.  

Janis Joplin (reprodução)

Grande parte do pessimismo de Janis, pessimismo esse que permeia seu primeiro álbum solo de estúdio I Got Dem Ol' Kozmic Blues Again Mama!, vem dos ensinamentos de seu próprio pai, Seth Joplin, um pseudo-pensador da porta de casa para dentro que ensinou a Janis que a tristeza e decepção são sentimentos permanentes, o que se pode fazer é apenas aceitá-los.

“Seth não conseguiu tranquilizar a filha, dizendo que as coisas iam melhorar, e da mesma forma foi incapaz de reagir emocionalmente ao desespero dela. Em vez disso, ele confirmou que ela havia descoberto o que, na cabeça dele, era o segredo sombrio da vida. Ele chamava aquela verdade de "a grande Farsa do Sábado à Noite": as pessoas se enganando, achando que, se trabalhassem duro a semana toda, poderiam se divertir no fim de semana - que haveria uma compensação pelo tédio e pelas dificuldades da vida diária. Mas o que na verdade acontece é que essa recompensa nunca se materializa; você é enganado pelas vicissitudes da vida - a Farsa do Sábado à Noite, em suas palavras -, o que leva a uma vida de decepções e infelicidade. Seth somente pôde aconselhar Janis a aceitar intelectualmente esse fato deprimente, como ele fizera, e aguentar.”

Entretanto, aguentar não cabia a Janis Joplin; a descoberta da farsa do sábado à noite serviu como um catalisador aos seus impulsos mais nocivos, o vício no álcool e nas metanfetaminas. O início do fim foi seu relacionamento com Peter de Blanc, um charlatão que a enganou com a promessa de um sonho que Janis mantinha escondido, o do casamento, da casa no subúrbio com cerca branca. Abalada com sua experiência de quase-morte com as metanfetaminas e feliz com o seu relacionamento com de Blanc, Janis abandonou as drogas, decidiu mais uma vez regressar à casa dos pais. Ficando limpa adquiriu todo um enxoval de noiva, criou planos e vivia à espera de seu noivo que nunca veio. Peter pegou o dinheiro de sua família e deixou para trás uma Janis ainda mais despedaçada.

“Toda noite, tento adormecer, mas minha cabeça fica cheia das tristezas do passado - será que estou obcecada, e por quê? Por que fico pensando sobre tanta merda? [...] Acho que nós dois conseguimos superar um monte de merda. [...] Foi o suficiente para que eu desenvolvesse a determinação quase fanática de fazer a coisa certa ao menos uma vez, e é o que estamos fazendo, certo? [..] Queria que pudéssemos estar juntos, puta merda, quero tanto ser feliz.”

A fama

Após as perdas que sofreu, Janis decide dar outra chance ao Rock 'N Roll, o parceiro que nunca a abandonou. Sua nova família seria a banda Big Brother and the Holding Company e seu novo lar, San Francisco, local em que a cena musical dominava e onde o verão do amor mudaria toda a trajetória de Janis Joplin. Em uma banda com quatro caras, a voz potente de Janis começou a chamar a atenção. Em sua noite de estreia com roupas de colegial e ao som de Down On Me, Janis Joplin colocou o Avalon Ballroom abaixo; foi ali que seu nome ecoou pela primeira vez, nada havia soado como ela antes.

"'Que viagem, cara! Uma viagem como a da droga, mais verdadeira ainda', Janis recordava vividamente o momento. 'Tudo de que me lembro é a sensação - que puta gás, cara! A música ecoava bum, bum, bum, e o povo todo dançando, e as luzes, e eu estava lá cantando ao microfone e mandando ver, e uau! Eu curti! Então disse: Acho que vou ficar, rapazes'."

Durante suas apresentações com o Big Brother, ela começou a amar a sensação de ser alguém aos olhos do público, sentia que começava a pertencer e ser amada, tudo que sempre buscou em sua vida, o amor puro cujo elo era a música. Adotou seu famoso visual marcante, com plumas, miçangas, brilho, mangas enormes e roupas coloridas. A vida na estrada virou sua realidade; sua família recebia um novo e amado membro, George, um cachorro adotado e alguns outros bichinhos. Com o tempo, ficou claro que o pilar da banda era Janis e era ela a responsável por atrair tamanha fama ao grupo, que crescia rapidamente. 

Foi no verão de 1967, o verão do amor, que Janis Joplin brilhou incandescente no palco do festival Monterey pop. A banda já tinha certa fama no cenário da contracultura, mas não era tão conhecida quanto os outros grupos que se apresentaram no festival. Na última música, Ball and Chain, Janis cantou como se estivesse só, soltou toda a força e a tristeza que a fazem única, gritando os versos “Tell me why” e “I’m gonna love you 'till the day I die” e batendo os pés, foi como se tivesse explodido aquele local. Na filmagem da apresentação é possível ver o rosto de Cass Elliot, vocalista do The Mamas & The Papas, de boca aberta em estado de choque com a presença de Janis.

Mesmo com uma base de fãs consolidada e com seu sucesso crescente, Janis ainda sentia a necessidade de aprovação de seus pais e irmãos. Em uma última tentativa tentou se reaproximar de seus pais, mostrar a sua realidade de sucesso para eles e, por fim, conseguir a aceitação que tanto queria. Entretanto, a reação de seus pais não foi o que ela esperava e isso foi o fim para Janis; sua família nunca voltou a visitá-la em San Francisco.

Junto a essa sensação de abandono e sua aproximação de James Gurley, membro do Big Brother, Janis começou a fazer uso da heroína como tentativa de fuga à farsa do sábado à noite e a sua Kozmic Blues.

“Janis havia encontrado um refúgio no entorpecimento [...] melhor do que qualquer outra coisa, a heroína curava temporariamente sua solidão, ansiedade, insegurança e o senso de deslocamento - tudo de uma vez.”

O amor

Com sua fama superando a de seus colegas de banda, Janis decide sair do grupo a fim de evitar as tantas brigas de ego que vinham acontecendo. Surge então uma nova jornada, novos músicos para a construção de seu primeiro álbum, I Got Dem Ol' Kozmic Blues Again Mama!, seria a vez então da Kozmic Blues band no palco do Woodstock e demais festivais. O vício e sua exaustão aumentavam junto à sua fama. Com a dissolução da banda e os preparativos para seu novo álbum, Pearl, ela finalmente tira suas primeiras férias desde sua entrada no Big Brother

Os três meses de pausa iniciaram-se de forma tranquila, curtindo sua nova casa e a sensação de estar em paz. Após isso, Janis embarcou para o Brasil, queria livrar-se da heroína e curtir o Carnaval carioca que tanto admirava. Nesse período de tempo ela conhece o amor através de David Niehaus, estadunidense, voluntário do corpo da paz e mochileiro. Este viria a tornar-se o romance mais significativo da vida de Janis e que inspiraria uma interpretação de uma de suas canções mais famosas Cry baby.

Mesmo com o fim do Carnaval, o casal permaneceu no Brasil, o estoque de drogas havia acabado e David a ajudou em seu processo de abstinência e reabilitação; ela estava genuinamente feliz.

“Sou a Janis verdadeira [...] tão Janis de novo, e tão feliz por ora, ou para sempre,”

Do Rio de Janeiro a Salvador, Piece of My Heart saindo das caixas de sons em rodoviárias, Janis foi o primeiro amor de David e ele o mais feliz que ela já teve. Entretanto, ambos eram almas passageiras, não conseguiam permanecer nos mesmos lugares, mas mantinham a promessa de se reencontrar em breve.

“David realmente a amava. Janis o amava também. [...] Ela estava dizendo ‘Fique comigo’, e ele estava dizendo ‘Venha comigo’. Ela não podia, e ele também não. Niehaus disse a ela: 'Vá me encontrar nos himalaias, e começaremos a partir daí'. [...] Ambos concordaram em seguir caminhos separados, mas prometeram um ao outro encontrarem-se dali um ano e meio.”

Essa relação gerou a dedicatória mais famosa em uma de suas apresentações da música Cry Baby. No trecho adicionado à música, ela apresentava seu amor por um homem que a deixou para viajar o mundo e buscar a si mesmo. Esse homem se daria conta, então, de que deixou o que realmente importava para trás, a mulher que o amava, e essa mulher, como boa capricorniana que era, estaria esperando pelo seu retorno. Um monólogo em que Janis abria-se para o seu público.

Assim, ela continuou suas composições e gravações, e por fim voltou à sua cidade natal, Port Arthur. Janis esperava ser recebida com admiração por aqueles que a desprezavam na adolescência, mas, ao contrário disso, acumulou mais decepções com os antigos conhecidos e com a própria família, que ainda não a redimia pelo seu passado e não a aceitava como era.

“Eu era uma verdadeira pessimista, bem cínica. Então li em algum lugar uma definição que dizia: ‘Um pessimista nunca fica desapontado, e um otimista decepciona-se o tempo todo’. Assim, por essa definição, eu seria uma otimista."

Com seu último disco finalizado, Janis não conseguiu ver seu lançamento. Pearl foi lançado 3 meses após seu falecimento; o disco foi um verdadeiro sucesso e carregava como singles Me and Bobby McGee, Cry baby e Get it While You Can. A voz de Janis ecoou pelo mundo.

O presente texto não tem o objetivo de debruçar-se sobre os detalhes da morte de Janis Joplin, muito menos deixar como sua marca o fim pela heroína. O legado de Janis Joplin foi o amor, a sua transgressão às normas de uma época que normatizava a segregação racial. Sua memória deve ser guardada como a da mulher que popularizou as tatuagens, por exemplo. A primeira mulher superstar do rock que viria a influenciar diversas gerações. Janis Joplin deixou marcas por onde passou, como uma fagulha, incendiava o público com a força de sua voz; dessa forma, sucumbiu à sua própria chama. Sua vida e sua música são unas, uma carreira bela e potente. É essa a memória que pertence a Janis e que merece ser lembrada com gratidão por todas as gerações.

“As pessoas me perguntam: ‘Como você aprendeu a cantar o blues desse jeito?'. Foi como a discussão começou. Eu simplesmente abri a boca, e foi assim que saiu. Você não pode fingir algo que não sente. [...] Você abre mão de todas as constantes do mundo, exceto a música. É a única coisa que você tem no mundo.”


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Comentários

  1. Evelyn, xará da minha irmã: estou com lágrimas nos olhos. Acho que não existe mulher nesse mundo que eu diga "este é meu exemplo de mulher" além de Janis Joplin. Minha rainha do rock, do blues e jazz, do choro e do coração partido, sem dúvida. Ela cantou chorando, e eu a danço chorando. Que mulher. Sempre linda, linda, uma estrela preciosa. Uma verdadeira pérola. Parabéns pelo texto e pela opção de jorrar amor. Precisamos voltar a acreditar no amor... Mas com a potência da Janis e não com otimismos plásticos; tem que ser amor que vem das profundezas da terra e floresce na primavera, mesmo que nas frestas das pedras dessa selva que é o mundo.

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