A chamada ficção especulativa sempre foi uma área dominada por homens brancos. Por ficção especulativa entende-se ficções cuja narrativa especula sobre outras realidades possíveis, e nisso incluímos gêneros como a ficção científica e a fantasia. A questão é que quando pensamos nesses tipos de texto, as obras que costumam nos vir à mente são, majoritariamente, obras de autoria masculina e branca. Isso parece querer dizer que o direito à imaginação acerca do futuro e do passado parece estar relegado a uma parcela muito pequena e restrita da população mundial. Essa questão acerca da visão que temos do mundo, e como ela é intensamente influenciada por um discurso hegemônico específico, já foi pensada por algumas pessoas ao longo dos anos, levando, por exemplo, ao desenvolvimento da estética que chamamos de Afrofuturismo.
O Afrofuturismo, segundo uma definição proposta pela pesquisadora Ytasha Womack, é uma estética artística e um instrumento de teoria crítica em que combinam-se elementos da ficção científica, da ficção histórica, da ficção especulativa, da fantasia, da afrocentricidade e do realismo mágico com crenças não-ocidentais. Segundo essa pesquisadora, o Afrofuturismo pode incluir também, em alguns casos, uma revisão do passado e uma especulação sobre o futuro através de um ponto de vista crítico cultural. O “Afrofuturismo libera a mente” das convenções que foram normatizadas na nossa sociedade. O Afrofuturismo se propõe a construir narrativas especulativas cujo centro se encontra na experiência de pessoas negras, retratando não apenas a sua realidade dentro da sociedade (mesmo que por meios irreais), mas, além disso, criando a oportunidade de se construir um mundo novo e esperançoso, onde pessoas negras protagonizam histórias em que elas são as encarregados de viver novas tecnologias, novas fantasias. O importante é que podem contar suas próprias histórias, quando muitas vezes foram excluídas da possibilidade de sequer serem mencionadas nas obras.
O Afrofuturismo se faz presente na música, desde Sun Ra até Janelle Monáe, assim como vive até hoje no cinema e na literatura, com filmes como Pantera Negra (2018), e o romance brasileiro do escritor Ale Santos, O último ancestral, no qual temos representadas populações negras cujas tecnologias futuristas e ancestralidades das respectivas culturas se conectam para criar uma realidade em que essas pessoas têm poder e são o centro das narrativas. Com essa definição, trazemos para discussão um romance que é considerado um precursor do Afrofuturismo: Kindred, publicado em 1979 pela escritora afro-estadunidense Octavia Butler, que reelabora tanto alguns preceitos já bem estabelecidos da ficção científica clássica quanto preceitos comumente difundidos acerca das vivências de pessoas negras na história colonial dos Estados Unidos, cuja versão oficial popularmente difundida raramente se importou em dar voz àqueles que eram os oprimidos.
Octavia Butler tem importância singular no campo da ficção científica. Foi agraciada com diversos prêmios como o Hugo, o Nebula e o MacArthur Fellowship, sendo apelidada, consequentemente, de "A Grande Dama da Ficção Científica”. Seu percurso para ingressar na área da escrita não foi fácil, tendo ouvido muitas vezes durante sua juventude que, por ser uma mulher negra e com poucas condições financeiras, ela jamais poderia ser uma escritora. O próprio romance Kindred foi bastante recusado pelas editoras até finalmente conseguir ser publicado. Butler se manteve firme no caminho para se estabelecer nessa profissão, vindo a, eventualmente, produzir inúmeras obras no estilo sci-fi. Ela acabou se tornando a primeira escritora negra a ser reconhecida no campo da ficção especulativa nos Estados Unidos, sendo pioneira, também, na ideia de protagonizar mulheres negras em obras desse gênero. As mulheres negras que adentram esse campo da literatura, assim como ocorre em muitos outros campos, vêm sofrendo um duplo silenciamento, porque quando se trata de escreverem, publicarem e terem lidas as suas obras, essas autoras precisam ultrapassar com muita dificuldade obstáculos relacionados não apenas a seu gênero, mas também à cor que carregam em sua pele.
É interessante pensar em se construir o protagonismo de uma mulher negra no gênero da ficção científica, na medida em que mulheres negras raramente o têm nas grandes obras canônicas dos clássicos. E, se pensarmos na ficção científica, esse gênero não apenas imagina cenários futuristas, tecnológicos e avançados, mas também busca incitar no seu leitor a reflexão acerca de diversas questões que são de extrema importância para a sociedade em que este vive. Apesar disso, sempre costuma ser uma reflexão dos problemas sociais e culturais a partir do ponto de vista do homem branco, o que quer dizer que não vemos a figuração de pessoas não-brancas, ou até mesmo de mulheres que não sejam personagens “de apoio”, com muita frequência nesses clássicos. Isso é bastante curioso, já que uma abordagem que parece muito óbvia a se fazer em uma narrativa que busca tomar como temas invasões e dominações de raças interplanetárias, sentir-se diferente ou deslocado dentro de uma sociedade, discussões sobre quem teria direito à humanidade, poderia ser perfeitamente uma abordagem das narrativas dos grupos que chamamos de minorias sociais. No romance de Octavia Butler, a escritora traz como história central, através de mecanismos narrativos que flutuam entre o sci-fi e a fantasia, a experiência de uma mulher afro-estadunidense dos anos 1970 que é de repente transportada para o passado, mais especificamente para os anos coloniais escravocratas no sul dos Estados Unidos pouco antes de se darem os eventos da Guerra de Secessão.
Octavia Butler traz para sua narrativa um elemento clássico do gênero sci-fi, que é a viagem no tempo. Você pode lembrar de obras muito conhecidas nas quais figuram esse tipo de narrativa, como A máquina do tempo, de H. G. Wells, Matadouro-5, de Kurt Vonnegut, e até mesmo clássicos do cinema, como a aclamada trilogia De volta para o futuro, Exterminador do futuro e, para citar um filme mais recente, Interestelar. A viagem no tempo é tão célebre e tão utilizada que nós a vemos até hoje como pontos centrais de histórias na mídia, sendo fundamental na história de Harry Potter e o prisioneiro de Azkaban e em Vingadores: Ultimato. Entretanto, dificilmente vemos representada uma experiência que não seja a desses típicos heróis da sociedade ocidentalizada que conhecemos. Em sua grande maioria, viaja no tempo aquele homem corajoso, para viver uma aventura fantástica através dos séculos, em que suas grandes preocupações normalmente envolvem cumprir missões e não mexer na sagrada linha do tempo, ver as maravilhas do passado e do futuro e conseguir voltar para casa são e salvo. Costumam ser histórias mais bem-humoradas ou que tendem para o lado do épico. Mas não em Kindred. Acontece que a viagem no tempo, para uma pessoa negra, não pode sempre mimetizar o heroísmo perpetuado pelas narrativas ocidentais mais difundidas. Na obra de Butler, somos confrontadas com a realidade nada heroica de ser uma mulher negra transportada ao passado colonial de seu país.
Octavia Butler (via Wikimedia Commons) |
No romance de Maria Firmina dos Reis, Úrsula, o jovem negro escravizado Túlio salva o herói branco da história, Tancredo, e este, agradecido, reconhece esse ato, criando um vínculo de amizade com seu salvador, dando, inclusive, como um presente de agradecimento, a alforria de seu herói. Esse é um romance romântico, no qual idealizam-se relações coloniais para que os mocinhos da história pareçam ter um coração puro e uma boa moral quando, na realidade, sabemos que esses tipos de situações não eram exatamente comuns ou factuais. No romance de Octavia Butler, quando a protagonista, uma mulher negra chamada Dana, é transportada de repente para salvar seu jovem antepassado branco por diversas vezes, ela não é recompensada. Ao invés disso, Dana é tratada exatamente da mesma forma como qualquer outra mulher negra da época colonial seria tratada em qualquer outra situação. A ficção científica, diferentemente do Romantismo, descreve uma certa sociedade através de mecanismos narrativos ficcionais para escancarar o que ocorre, de fato, na realidade. Ao transportá-la para uma fazenda escravista no período colonial dos Estados Unidos, Octavia Butler põe em colisão duas épocas e escancara a violência e a crueldade vivida pelas pessoas negras que foram escravizadas no sul daquele país, e nós, leitores, somos levados a sentir cada terror e angústia vividos pela protagonista ao testemunhar as marcas que são deixadas no indivíduo por essa vivência. Como diz Ytasha Womack, a sobrevivência é o grande triunfo de Dana.
A mulher negra que foi escravizada no período colonial era terrivelmente oprimida. Uma crença comum acerca desse período é a de que as mulheres escravizadas que trabalhavam dentro das casas coloniais sofriam menos abusos do que as que trabalhavam nos campos. Esse fato não se sustém, considerando que a mulher negra na condição de escravizada da casa de seu senhor está constantemente sendo vigiada por estar mais próxima da família branca para quem trabalha e, por isso, sendo um constante alvo de violências das mais diversas. Por conta dessa condição de trabalho doméstico, aponta-se que as mulheres indicadas para esses trabalhos eram ainda mais aterrorizadas, como forma de garantir que elas, tão próximas fisicamente dos senhores, não pudessem se vingar de alguma forma de seus opressores.
A ameaça de violências físicas e estupro eram uma constante na vida dessas mulheres. O estupro era um método comum de tortura da época, na medida em que era legitimado pelo sistema patriarcal vigente. A famosa teórica feminista bell hooks se refere à habitualidade dessa prática que se criou nesse momento colonial, e indica que a nudez dessa mulher era uma constante lembrança da sua vulnerabilidade sexual naquele lugar. Vemos em Kindred que um dos castigos que Dana recebe em sua estada no passado é ser chicoteada enquanto nua. A protagonista desse romance está a todo momento assustada com a possibilidade de ser estuprada, porque ela tem o conhecimento de que essa era uma prática extremamente regular e cotidiana na vivência que, nesse passado para onde é transportada, ela é obrigada a tomar para si. A violência psicológica a atinge no momento em que se vê como uma mulher negra presa no século XIX, pois ela sabe que seu corpo é totalmente vulnerável à vontade dos brancos ali. bell hooks também lembra de uma fala de Angela Davis acerca da prática do estupro, que é comumente observado como uma questão de satisfação sexual do senhor colonial, mas Davis argumenta que está mais para um “método de terrorismo institucionalizado que tinha como objetivo desmoralizar e desumanizar as mulheres negras”. Da mesma forma, a ameaça de ser vendido era também frequente para as pessoas escravizadas, e vemos retratado em Kindred como isso era também utilizado como forma de ameaça psicológica, visto que, por exemplo, separavam-se famílias inteiras de acordo com a vontade da família dona de escravos. As pessoas negras não eram vistas sequer como humanas no período colonial, portanto, eram manejadas como meras mercadorias segundo os desejos e propósitos do seu senhor.
É importante notar que também não há nem uma possibilidade de existir cumplicidade entre a mulher branca e a mulher negra nesse contexto. A mulher negra que não pode encontrar acolhimento e proteção de nenhum dos homens à sua volta, sendo eles seus carrascos ou em situações tão oprimidas quanto, também não pode recorrer à simpatia das mulheres brancas que habitam a casa colonial e são oprimidas à sua própria maneira. bell hooks escreve que “A maioria das mulheres brancas tratava com hostilidade e raiva as mulheres negras que eram objeto da violência sexual de seu marido”. A verdade é que para muitas esposas de senhores colonos a mulher negra, além de ser um indivíduo de nível inferior, é uma simbolização da maldade e da sedução perversa de que falam nos ensinamentos cristãos. Ela seria a responsável por fazer o marido buscar prazer sexual em outros lugares. Dessa forma, a senhora branca das casas coloniais era também uma opressora nesse contexto. Em Kindred, vemos essa relação entre a sra. Weylin e as mulheres escravizadas que vivem à sua volta. A mulher, enciumada pelo interesse do marido pela personagem escravizada Sarah, vende todos os filhos da mulher, menos uma que teria pouco valor de venda por ser muda. A senhora também, ao se deparar com Dana, uma mulher negra que possuía mais conhecimento e mais agenciamento sobre sua própria vida do que ela mesma, decide fazer da protagonista um bode expiatório para todas as suas angústias. Além disso, o fato de tanto Dana quanto a jovem, também negra, Alice, terem mais a atenção de seu filho do ela própria a faz odiá-las intensamente e torná-las alvo.
Kindred chama a atenção do leitor para todas as dores que Dana sente durante sua história. É sufocante se sentir na pele da personagem que, conforme a história progride, se vê enlouquecida de medo e pavor por estar no perigo de ir e voltar ao passado arbitrariamente, nunca podendo estar preparada para o que vai ter de enfrentar naquela época longínqua, e constantemente ponderando sobre se a sua próxima ação poderá levá-la a ser surrada até a morte.
Essa narrativa afrofuturista atualiza um famoso elemento da ficção científica de forma a trazê-la para a realidade da pessoa negra. A viagem no tempo, como mecanismo, constrói uma conexão mais real entre Dana e o passado de sua ancestralidade. A experiência da mulher negra viajante do tempo é dolorosamente singular e em nada se compara com as aventuras temporais retratadas por autores masculinos brancos. Não é uma leitura tranquila, e definitivamente está carregada de gatilhos, principalmente para aqueles que reconhecem sua própria cor na cor de Dana. É, entretanto, exatamente por isso que é uma leitura tão essencial e marcante para se entender e refletir acerca de uma sociedade como a nossa.
Referências
- Afrofuturism: the world of black sci-fi and fantasy culture (Ytasha L. Womack)
- Distorções e reescritas: o afrofuturismo e a ficção científica distópica em “A parábola do Semeador”, de Octavia Butler (Raissa Lauana Antunes da Silva)
- E eu não sou uma mulher? (bell hooks)
- Ficção especulativa escrita por mulheres negras (Waldson Gomes de Souza e Isadora Maria Santos Dias)
- Kindred — laços de sangue (Octavia Butler)
- Kindred — laços de sangue de Octavia Butler: uma ode à memória sob o manto da ficção (Camile Fernandes Borba)
Que maravilhoso ler essa análise sobre Kindred. Esse livro é maravilhoso e a atuação de Octavia Butler na literatura é extremamente importante!
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