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O Renascimento nórdico e a caça às bruxas

O Renascimento é conhecido como um período de grande complexidade e descobertas, em especial no âmbito das artes, e conta com representantes talentosos e mundialmente conhecidos que criaram obras-primas que permanecem até os dias de hoje. Porém o movimento que conhecemos como Renascimento, cunhado nas primeiras décadas do século XV, em Florença, entre o final da Idade Média e o afloramento do Maneirismo, também tem lados obscuros que precisam ser debatidos; dentre eles vale destacar a Caça às Bruxas.

Ao contrário do que possa parecer, o Renascimento não existiu apenas na Itália e a Caça às Bruxas não é puramente um acontecimento da Idade Média. Grande parte dos acusados de bruxaria foram perseguidos, torturados e mortos durante o período conhecido como de alto conhecimento artístico e científico, mas que também passava pela Reforma Protestante liderada pelo monge Martinho Lutero. Sua influência — principalmente na Europa setentrional — coincidiu com a época em que grandes artistas do norte começaram a entrar em contato com a arte italiana e vice-versa.

Durante esse mesmo período, a invenção da máquina de prensa de Johannes Gutenberg no Sacro Império Romano-Germânico, região que hoje conhecemos como Alemanha, abriu caminho para grandes mestres gravuristas, como Albrecht Dürer, e também para a publicação de livros e disseminação de ideias. A Alemanha não apenas foi o berço da imprensa, fundamental para a Reforma Protestante, local de nascimento do grande artista conhecido como o precursor do Renascimento Alemão, mas também o local de publicação da primeira edição do Malleus Maleficarum, conhecido como O Martelo das Feiticeiras, escrito por Heinrich Kraemer e James Sprenger, instrumento utilizado para perseguir sobretudo mulheres acusadas de bruxaria durante a Inquisição.

O Renascimento fora da Itália

O chamado Renascimento Nórdico é o movimento renascentista fora da Península Itálica e Ibérica, em países como Alemanha, França e Holanda. O humanismo continuava sendo um ponto importante, mas os ideais do Renascimento Nórdico também estavam ligados à sua própria mitologia, cultura e aos ideais da Reforma Protestante. Por conta disso, as obras produzidas durante o Renascimento nos países do norte são muito autorais; os artistas representam a imagem humana e o mundo de forma realista, sem idealização, com muitos detalhes, informações e significados.

Durante os séculos XV e XVI, muitas dessas obras marcaram o início da expansão do estereótipo da bruxa por toda a Europa. O Renascimento no norte contou com grandes nomes, como Jan Van Eyck na Bélgica e Hieronymus Bosch na Holanda, que, inclusive, vieram antes de Albrecht Dürer, mas é este que é reconhecido até hoje como o precursor do movimento nos territórios germânicos da Europa no período do Renascimento.

Albrecht Dürer

Albrecht Dürer nasceu em 21 de maio de 1471, na cidade de Nuremberg, Alemanha. Conhecido por muitos como o "Leonardo do Norte", Dürer foi um precursor em sua área e teve diversos seguidores tanto em vida quanto em morte. Não era apenas um artista altamente talentoso, mas também um homem muito curioso que possuía uma imaginação única para criar e disseminar suas ideias. Dürer viajou por diversos países, dentre eles a Itália, lugar que visitou muitas vezes e onde absorveu muito da arte renascentista italiana e também inspirou artistas italianos.

"Seus contemporâneos italianos opuseram-se à sua manipulação de cor, aos seus anacronismos em cenários e figurinos e à sua falta de verdadeiro espírito 'clássico', mas eles o admiravam como um técnico supremo no campo da xilogravura e gravura e elogiavam sua inventividade abundante; com o despertar de um forte patriotismo regional no norte da Itália ele se tornou, para Lomazzo, o 'grande druida' da arte; e em Bolonha foi creditado com contribuições mais importantes para o Renascimento do que Rafael e Michelangelo."

(Erwin Panofsky)

Não foi por acaso que Albrecht Dürer se tornou um dos maiores gravuristas da história: sua cidade natal, Nuremberg, foi um dos principais eixos de difusão da imprensa. A junção da facilidade de impressão com os movimentos sociais e religiosos que aconteciam nos territórios germânicos naquele período facilitou o desenvolvimento do mito da bruxaria, e Albrecht Dürer foi um dos primeiros artistas responsáveis pela disseminação da imagem da bruxa com suas famosas gravuras As quatro feiticeiras, de 1497, e A bruxa, de 1500.

As quatro feiticeiras, por Albrecht Dürer (1497)

O Renascimento e a caça às bruxas

A junção de vários fatores, como a Reforma Protestante e a publicação do Malleus Maleficarum, tornaram a caça às bruxas um produto da Renascença. Grandes pensadores do período eram ferrenhos defensores da perseguição à bruxaria e os protestantes perseguiam as bruxas tão ou com mais crueldade que os católicos. A partir daquele momento, as bruxas, que eram conhecidas como mulheres com poderes mágicos, agora eram vistas como as próprias agentes do diabo. Mulheres cruéis que se deitavam com o demônio, voavam pela noite, castravam homens, destruíam plantações e matavam crianças. Muitos desses estereótipos da bruxaria diabólica provêm da tradição nórdica, e o local com mais mortes de pessoas acusadas de bruxaria encontra-se na região que hoje conhecemos como Alemanha.

"A extensão da caça às bruxas é espantosa. No fim do século XV e no começo do século XVI, houve milhares e milhares de execuções – usualmente eram queimadas vivas na fogueira – na Alemanha, na Itália e em outros países. A partir de meados do século XVI, o terror se espalhou por toda a Europa, começando pela França e pela Inglaterra. [...] Só faz sentido denominar a Idade Média de 'idade das trevas' se quisermos dizer que é na escuridão que se fabrica a luz. [...] Mas, na medida em que o Renascimento dava à luz o padrão de alteridade como raiz das ciências e das transformações sociopolíticas modernas, não eram seus expoentes perseguidos e sua criatividade cerceada pela Inquisição? Se a luz do novo humanismo era excluída de Cristo por sua própria Igreja, a quem seria ela atribuída? O Malleus engrandece tanto o Demônio e as bruxas que declara textualmente ter sido ele criado especialmente por Deus para exercer o pecado através delas."

Não coincidentemente, o crescimento das perseguições contra mulheres nesse território ocorreu durante a época em que a imagem e o estereótipo da bruxa eram determinados, fosse na literatura ou na arte. Logo se tornou natural e cotidiano enxergar tudo o que se relacionava ao feminino, fosse seu corpo, sexualidade, seus pensamentos e sua autonomia, ao demoníaco. Mulheres passaram a ser apenas um significado de destruição, um castigo, uma tentação e um mal necessário. A bruxa logo se tornou um sinônimo de desordem e transgressão e a arte passou a representá-la assim também. O olhar masculino sobre o corpo feminino cria narrativas desde o início dos tempos, quando esses artistas produziam imagens sobre bruxas, tendo conhecimento do que estava escrito no Malleus Maleficarum, querendo ou não, criaram narrativas e suas obras se tornam documentos de uma época.

Albrecht Dürer não foi o primeiro a representar a imagem da bruxa em suas obras; de fato, ele apenas produziu duas gravuras sobre o assunto. Mas elas foram muito importantes para a história, não apenas por serem obras de grande qualidade técnica e estética, mas também para perpetuar imagens dos mais famosos estereótipos de bruxas que conhecemos hoje.

As quatro feiticeiras, famosa gravura em metal de Dürer, foi criada em 1497. A gravura foi produzida após a primeira viagem de Dürer à Itália, e é possível notar a inspiração nas Três Graças, mas agora não três, porém, quatro mulheres estão em cena, todas nuas, parecendo estar conversando. A nudez relacionada ao feminino naquela época já era o bastante para ser associada ao perigo, ao mal, à selvageria, a um ser que corrompe o espectador. Mas esse não é o único motivo para pensar que a imagem alerta para um perigo: o crânio nos pés de uma das mulheres, os ossos espalhados e, à esquerda da imagem, uma figura obscura que parece sair de uma porta secreta com o possíveis chamas ao seu redor. Como se aquelas mulheres estivessem em um ambiente privado, tramando algo, com a presença de um ser demoníaco vindo do submundo.

"Mas a razão natural está em que a mulher é mais carnal do que o homem, o que se evidencia pelas suas muitas abominações carnais. E convém observar que houve uma falha na formação da primeira mulher, por ter sido ela criada a partir de uma costela recursiva, ou seja, uma costela do peito, cuja curvatura é, por assim dizer, contrária à retidão do homem. E como, em virtude dessa falha, a mulher é um animal imperfeito, sempre decepciona e mente. [...] Portanto, a mulher perversa é, por natureza, mais propensa a hesitar na sua fé e, consequentemente, mais propensa a abjurar-lá – fenômeno que conforma a raiz da bruxaria."

(O Martelo das Feiticeiras)

Em 1500, Dürer fez uma nova gravura com a temática de bruxaria, dessa vez de uma mulher mais velha, com os cabelos ao vento, com as mãos numa espécie de vassoura ou um fuso e uma roca, montada para trás em um bode e segurando um de seus chifres. A anciã parece voar em cima do animal, e abaixo dela quatro querubins parecem tentar se esconder. Grande parte das acusações contra bruxas foram relacionadas a mulheres mais velhas, como viúvas e "solteironas". Acreditava-se que essas mulheres, que não mais eram consideradas perigosas pelos seus desejos carnais e beleza demoníaca, agora eram perigosas justamente por isso: por não conseguirem gerar uma criança, pelos seus corpos "grotescos" e principalmente por não terem um homem para obedecer, seguir ou cuidar. Essas mulheres eram temidas, inclusive por outras mulheres, e isso ecoava também um problema social. Afinal, o que fazer com essas mulheres mais velhas que aparentemente não têm mais condições de servir a sociedade? Mulheres maduras, que não respondiam a homem nenhum, eram tão ou mais perigosas que as jovens bruxas que seduziam homens inocentes.

A bruxa, por Albrecht Dürer (1500)

Vale destacar também as famosas gravuras do artista Hans Baldung Grien, pupilo de Albrecht Dürer, mas que, ao contrário de seu mestre, não apenas usou como protagonistas de suas obras por muitos anos a figura da bruxa, como também explorou a sexualidade da feiticeira não necessariamente de forma benéfica. As bruxas de Dürer parecem nunca escapar de um limite, talvez traçado por ele próprio de não expor de fato a sexualidade vista como monstruosa a respeito das mulheres em suas gravuras; tudo parecia ocorrer no privado, fora dos olhos humanos. Baldung não parecia ter essa preocupação. O desenvolvimento do seu trabalho sobre o corpo feminino produziu diversas gravuras ligadas ao tema da bruxaria, expondo a sexualidade feminina e seus corpos nus como algo animalesco, canibal e demoníaco, retratando livremente a masturbação feminina e relações sexuais não apenas com demônios, mas também animais, até mesmo com dragões.

Albrecht Dürer estava ciente não apenas da existência do Malleus Maleficarum quando gravou suas duas bruxas em metal, como também estava inserido em um momento crítico da história durante um dos movimentos artísticos mais famosos da humanidade. Assim como diversos outros artistas, muitas de suas obras são relatos da época em que foram produzidas. Mas a verdade é que a produção artística de Dürer foi tão grande e tão diversa que suas bruxas se tornaram apenas grãos de areia em sua história e carreira. 

É importante observar que muitas vezes há muito mais por trás de uma famosa obra-de-arte ou período da história visto por muitos apenas como o suprassumo da humanidade. A caça às bruxas matou milhares de pessoas, principalmente mulheres, em diversos países do mundo e em cada um deles a forma de perseguição e execução era diferente, mas em todos com requintes de crueldade. A caça às bruxas não foi um período de empoderamento feminino e as vítimas não tinham orgulho nenhum de serem acusadas de bruxaria, não apenas porque provavelmente essa acusação as levaria à morte, mas também porque a imagem da bruxa foi distorcida, a ponto se transformar em um tipo de outro feminino transgressor.

Referências 



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Babi Moerbeck
Carioca nascida no outono de 1996, com a personalidade baseada no clipe de Wuthering Heights, da Kate Bush. Historiadora, escritora e pesquisadora com ênfase no período do Renascimento, caça às bruxas e iconografia do terror. Integrande perdida do grupo dos Românticos do século XIX e defensora de Percy Shelley. Louca dos gatos, rainha de maio e Barbie Mermaidia.

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