Luz, câmera... Ação! Houve um tempo em que essas três palavras eram o que apenas bastava dentro de um set de filmagens ao sinal de um diretor. E elas ainda são as palavras a que mais estamos acostumados a ouvir associadas a esse contexto. Mas depois do lançamento transformador de um filme chamado O Cantor de Jazz, em 1927, a clássica frase "Luz, câmera... Ação!" passaria a ser adaptada para "Luz, câmera... Som!" - e só enfim poderia vir a "Ação".
Talvez seja difícil imaginar hoje em dia, especialmente para as novas gerações, um mundo onde os filmes não tinham som. Entretanto, de pelo menos 1894 até meados de 1929, o período hoje conhecido como o da "era do cinema mudo", os filmes eram assim. E, na verdade, não é que os filmes eram "mudos" de fato ou que "não havia som". Eles até tinham, mas... De outras formas. Uma delas era através de música tocada ao vivo como trilha sonora nas exibições desses filmes dentro das salas de cinema. Outra, era com a presença eventual de artistas ou apresentadores contratados para lerem as cartelas de texto dos filmes em voz alta para o público naquelas mesmas salas. E nas gravações dessas produções cinematográficas, os atores em tela nunca faziam as suas performances realmente em silêncio. A questão é que, durante essa época, os aparatos tecnológicos necessários para que a sincronização de som com vídeo fosse possível ainda não existiam.
A tentativa dessa sincronização já era estudada praticamente desde a invenção do próprio cinema. Até mesmo Thomas Edison chegou a se envolver em experimentos relacionados e diversos testes foram feitos ao longo dos anos, muitos deles financiados por grandes estúdios, como a Warner Bros, que chegou a desenvolver um dispositivo chamado Vitaphone especificamente com o objetivo sonoro em mente, e que foi usado com muito sucesso na gravação daquele que é considerado oficialmente o primeiro filme com falas e efeitos sonoros sincronizados da história: o já previamente citado O Cantor de Jazz.
A partir daí, a transição dos filmes mudos para os filmes falados (ou "talkies", como eram apelidados em inglês na época, e que é uma espécie de diminutivo da palavra "talk", que significa "falar") foi gradual, porém, rápida o suficiente para que já em 1930 os filmes com som dominassem os cinemas, e que a ausência de som deixasse de ser o normal para se tornar uma escolha narrativa e estética intencional. No entanto, ainda que o avanço técnológico do advento do som tenha sido glorioso, o processo de adaptação da indústria cinematográfica para esse "novo normal" na prática foi drástico, devastador, e, literalmente, barulhento para muitos.
Da necessidade das salas de cinema terem de ser equipadas para a projeção do áudio, levando à demissão em massa daqueles que antes eram os responsáveis por trazer o som ao vivo para os filmes, até ao sumiço e ostracismo de centenas de artistas uma vez considerados astros e fenômenos de bilheteria, mas que não conseguiram fazer o mesmo sucesso de antes na era do som, as consequências dessa transição mudaram o cenário da sétima arte para sempre.
Como o cinema está sempre refletindo a sua própria história de uma forma ou de outra de tempos em tempos, e filmes que fazem algum tipo de homenagem estão mais em alta do que nunca nos últimos anos, este período específico da transição do mudo para o falado já foi retratado algumas vezes nas telonas, seja como pano de fundo ou como o ponto central de um roteiro.
Sendo assim, separamos aqui uma lista especial de indicações de filmes que falam sobre tal transição para os cinéfilos de plantão que tiverem interesse em saber um pouco mais sobre o assunto.
Cantando na chuva (1952)
Provavelmente o filme mais conhecido a abordar este tema, e também um dos musicais mais icônicos de todos os tempos, Cantando na chuva é estrelado por Gene Kelly, Donald O'Connor e Debbie Reynolds, e conta a história de Don Lockwood, um astro do cinema mudo que é surpreendido pela chegada do som aos filmes durante a produção de um de seus longas-metragens, que agora precisará ser adaptado para a nova tecnologia. O problema é que sua parceira de cena usual, Lina Lamont, além de não ser alguém com quem Don se dá muito bem pessoalmente, tem muitas dificuldades com a sua atuação no novo método de filmagens, e, principalmente, com a sua voz esganiçada. Em meio ao risco de ambos perderem o seu prestígio como artistas em Hollywood e da possibilidade do filme se tornar um desastre, Don acaba conhecendo sem querer a jovem Kathy Selden, uma atriz aspirante talentosa pela qual se apaixona, e com quem, ao lado também de seu grande amigo, Cosmo Brown, bola um plano para fazer com que seu filme seja um sucesso ao transformá-lo em um musical que irá salvar a sua carreira.
Além de contar com algumas cenas e números musicais inesquecíveis, como a sequência em que Gene Kelly dança ao som da canção que dá nome ao filme, Cantando na chuva retrata o período da transição do cinema mudo para o falado de uma forma bem divertida, apresentando alguns dos vários obstáculos pelos quais artistas e produtores tiveram de passar para fazerem seus filmes e não serem esquecidos na nova era do som, de um jeito fácil de acompanhar mesmo em seus momentos mais lúdicos. Tudo isso em tons saturados de technicolor e com um teor de comédia delicioso que consegue elevar os níveis de serotonina de qualquer pessoa que assistir a esse filme (e eu te desafio a não ficar com vontade de sair correndo para fazer uma aula de sapateado logo em seguida)!
O artista (2011)
Apenas o segundo filme mudo da história a vencer o Oscar de Melhor Filme desde a vitória de Asas (1927) na edição inaugural do prêmio em 1929, O artista é um filme francês que faz um pastiche dos clássicos filmes da era do cinema mudo, simulando-os desde a sua estilização visual em preto e branco até à interpretação propositalmente exagerada dos atores e a inserção das cartelas de texto ao longo das cenas para conduzirem a narrativa e suprirem a falta de diálogos falados dos personagens.
Começando com um pano de fundo muito semelhante ao de Cantando na chuva (o contexto das sequências de abertura dos dois filmes é, inclusive, quase idêntico, mostrando os eventos de lançamento de um filme estrelado por seus protagonistas), O artista acompanha a história de George Valentin, um galã de cinema vivido por Jean Dujardin (aqui também muito parecido fisicamente com Gene Kelly), que, ao posar para alguns fotógrafos, acaba por esbarrar por acaso em Peppy Miller, uma jovem fã. Após uma foto sua com George nesse breve momento ser publicada nos jornais, pouco tempo depois ela tenta a sua sorte como atriz em Hollywood, contando com a ajuda do próprio George para isso, e os dois se apaixonam um pelo outro. Porém, enquanto a carreira de Peppy decola, a de George passa a decair com a introdução do som nos filmes, o que a leva a uma crise existencial que só se resolve quando Peppy lhe dá uma mão, assim como George lhe deu no início de sua carreira.
Tecnicamente, o filme não é completamente mudo de fato, pois ele não só possui uma trilha sonora que o acompanha ao longo de toda a sua duração, como também conta com alguns efeitos sonoros especiais e diálogos falados. No entanto, esses diálogos são pontuais e aparecem somente em momentos-chave do enredo e que fazem ligação direta com a questão da adesão do som no cinema. Em uma determinada cena, por exemplo, George tem um pesadelo no qual todas as pessoas e objetos ao seu redor são capazes de fazer som - exceto ele, que segue incapaz de falar.
Crepúsculo dos deuses (1950)
Outro dos maiores clássicos do cinema, Crepúsculo dos deuses nos apresenta a Joe Gillis, um roteirista que é encontrado morto (isso não é um spoiler!) na piscina de uma mansão na Sunset Boulevard, uma das mais famosas avenidas de Los Angeles, e que começa o filme recontando os passos de sua vida em cerca de 6 meses antes de chegar ao derradeiro momento fatal de seu fim. Apesar de seu ofício como escritor, Joe revela que já não conseguia vender nenhum roteiro há muito tempo, e que por isso se afundava em cada vez mais dívidas. Numa tentativa de fugir de um de seus credores, ele se depara com uma propriedade aparentemente abandonada. É quando então conhece a excêntrica dona do local: Norma Desmond, uma ex-atriz esquecida da época do cinema mudo, e que divide a habitação com seu mordomo, Max. Assim que ela descobre que Joe é um roteirista, ela propõe que ele permaneça em sua morada e a ajude a finalizar o roteiro de um projeto passional que já idealizava há anos, com a intenção de fazer com que este seja o grande filme responsável pelo seu sonhado retorno triunfante às telas de cinema. Daí em diante, os dois passam a construir uma relação complexa de desdobramentos bem surpreendentes.
No tempo presente em que Crepúsculo dos deuses é ambientado, a transição do cinema mudo para o falado já acontecera há alguns bons anos. Entretanto, é exatamente este o evento fatídico que leva à decadência da antiga carreira artística de Norma Desmond, que alega nunca ter deixado de ser uma grande estrela, mas sim que os filmes haviam ficado pequenos demais para ela com a chegada do som. Embora Norma seja uma personagem fictícia moldada em torno de certos exageros, ela é um retrato das centenas de atores reais que ficaram para trás ao não conseguirem efetuar a transição, dentre eles Gloria Swanson, sua intérprete, também uma atriz que teve sua carreira inicialmente consolidada na época do cinema mudo e que precisou encontrar outras formas de seguir atuando até ser convidada para protagonizar Crepúsculo dos deuses.
Downton Abbey: uma nova era (2022)
Continuação de Downton Abbey - O Filme (2019) e da aclamada série de TV britânica de mesmo título, os fãs de carteirinha da família Crawley (um deles sendo a redatora deste artigo!) puderam vê-la aqui em uma "aventura" bem inusitada e razoavelmente metalinguística: quando um produtor de filmes sai em busca de locações para a gravação de seu mais novo longa, Downton se torna o principal cenário de seu interesse. Igualmente interessados no dinheiro que o produtor pode lhes providenciar, os Crawley aceitam a oferta com a expectativa de que o projeto possa ajudá-los no financiamento de uma reforma da propriedade de Downton que tem gradualmente começado a cair aos pedaços. Enfim com o acordo selado, Downton começa a ser preenchida por câmeras, artistas, assistentes e todo tipo de bugigangas para a realização do filme, que originalmente seria mudo, mas que de repente precisa ter os seus planos alterados do dia para a noite quando a produção fica ameaçada pelo sucesso dos filmes falados, o que passa a exigir também uma participação maior - e ocasionalmente inesperada - de alguns dos membros e criados da família Crawley para a sua concretização.
Este enredo em específico não é o único presente no filme, que acaba por dividir seus personagens entre vários núcleos distintos (todos bem gostosinhos de assistir, diga-se de passagem), mas ele é uma de suas tramas principais, e que se amarra até de forma um pouco mais profunda nos temas gerais que o longa propõe discutir, já que o filme faz um interessante paralelo entre a transição dos filmes mudos para os falados com a própria transição e passagem de bastão de figuras de autoridade dentro da família Crawley, com as gerações dos filhos e netos de Lord Grantham sendo oficialmente lideradas agora por Lady Mary.
Aqui, o "Uma nova era" do subtítulo é duplamente representativo: é sobre uma (até então) nova fase do cinema, mas também sobre uma nova fase para Downton.
Hollywood em desfile (1939)
Seguindo um pouco da mesma dinâmica de outros filmes desta lista, em Hollywood em desfile conhecemos Michael Connors, um diretor de cinema que descobre uma jovem atriz chamada Molly Adair após assisti-la em uma peça de teatro na Broadway. Impressionado com seu talento, ele lhe oferece um contrato de um ano para fazer filmes em Hollywood, ao que ela inicialmente recusa, mas depois muda de ideia. O já manjado clichê dos dois se apaixonarem acontece aqui novamente, mas, ao ter a impressão de que Michael não corresponde aos seus sentimentos, Molly, que passa a fazer cada vez mais sucesso como estrela de cinema, segue em frente e se envolve com um ator de quem fica noiva, o que fere o orgulho de Michael, levando-o a demiti-los de sua produtora de filmes (a famosa masculinidade frágil, não é mesmo?). Porém, ao abrir mão de Molly, a carreira de Michael começa a entrar em crise, uma situação que se acentua com a chegada do som aos filmes. Anos depois, ao saber das circunstâncias atuais de Michael, Molly fica comovida pela lembrança da relação de trabalho que uma vez tiveram apesar de tudo. Agora uma das mais famosas atrizes de sua geração, ela decide convidá-lo para dirigir seu próximo filme: o primeiro falado de suas carreiras.
Acredita-se que esse filme tenha sido inspirado na inflamada relação real entre o produtor Mack Sennett e a atriz Mabel Normand, duas figuras expressivas da era do cinema mudo, o que torna ainda mais legal um dos melhores pontos de Hollywood em desfile, que é a participação de algumas personalidades que realmente foram astros da época do cinema mudo interpretando a si mesmos, como Buster Keaton e Al Jonson, o protagonista de O Cantor de Jazz.
The talk of Hollywood (1929)
Feito ao mesmo tempo em que a transição acontecia na vida real, The talk of Hollywood é mais interessante por ser praticamente um registro histórico do período em si, contando a história fictícia de um rico produtor de cinema que decide investir toda a sua fortuna na gravação de filmes falados, transformando-os em musicais grandiosos estrelados por uma promissora atriz parisiente. Daí em diante, várias das possíveis dificuldades da produção de um filme com som são apresentadas, mas o produtor segue sem medir seus esforços para fazer com que a sua empreitada valha a pena.
Ao refletir esse momento específico de sua época, o filme prevê a tendência que viria com força nos anos seguintes da produção em massa de filmes musicais. Muitos deles não tinham um roteiro propriamente construído para ser desenvolvido narrativamente através de canções, e eram mais uma compilação de esquetes de shows de vaudeville, mas isso não importava muito. O objetivo era o de demonstrar a maravilha da nova tecnologia sonora.
Babilônia (2022)
O mais novo filme de Damien Chazelle, diretor Whiplash: em busca da perfeição e La La Land: cantando estações, é um épico de 3 horas (!) a respeito da loucura e dos excessos da Hollywood das décadas de 1920 e 1930, e a ascensão e queda de personagens diversos em meio à transição do cinema mudo para o falado.
Estrelado por Brad Pitt e Margot Robbie, aqui eles interpretam, respectivamente, Jack Conrad e Nellie LaRoy. O primeiro é o maior astro de cinema de sua geração e que teve o auge de sua carreira justamente com os filmes mudos; já a segunda é uma aspirante a atriz que tem muita confiança em seu talento e que chega a Los Angeles com a certeza de que também será uma estrela de cinema. Ao longo de suas trajetórias, os dois acabam por conhecer Manny Torres, um imigrante mexicano que também sonha em encontrar um espaço para si dentro da máquina hollywoodiana. Juntos, os três navegam ao lado de outros artistas os altos e baixos de uma efervescente indústria cinematográfica em transformação, com direito a muito sexo, drogas e jazz.
O filme dividiu opiniões entre público e crítica e foi uma das produções que mais deu o que falar na temporada de premiações deste ano, seja pelo seu conteúdo explícito ou por algumas cenas mais chocantes que expõem uma Hollywood bem diferente da qual estamos mais acostumados a ver em filmes que buscam fazer uma homenagem à sétima arte. Pegando emprestado diversos elementos de Cantando na chuva (incluindo até mesmo várias referências bem diretas ao filme, como uma cena curta em que Margot Robbie está vestida praticamente igual à personagem de Lina Lamont em seu papel de dama francesa no filme com Don Lockwood, entre outras surpresas...), Babilônia mostra o lado mais sujo daquilo que vimos no clássico com Gene Kelly, mas a sua mensagem final é a de uma celebração da magia indelével que só o cinema pode nos proporcionar através dos tempos.
Menções honrosas: Chaplin (1992) e O aviador (2004)
Nestas duas cinebiografias, a transição é mais uma menção que dá pano de fundo a alguns trechos específicos de cada filme do que um contexto inteiro que se estende ao longo de suas projeções. De qualquer forma, fica aqui a indicação de ambos os filmes, por eles fazerem o retrato de duas pessoas que tiveram carreiras bem relevantes nas épocas pré e pós transição, e que foram profundamente afetadas por ela de algumas formas: Charles Chaplin, intepretado no primeiro filme por Robert Downey Jr., e Howard Hughes, vivido por Leonardo DiCaprio no segundo.
Enquanto Chaplin reagiu com muita resistência ao processo de transição, não vendo sentido em fazer a si mesmo e a seu personagem mais famoso, Carlitos, falarem em seus filmes (com exceção de alguns muito pontuais, nos quais ele sentia que havia algo de fato a dizer com o som, como em O grande ditador, de 1940), Hughes abraçou a nova tecnologia a ponto de regravar quase inteiramente aquele se tornaria o filme mais caro e ambicioso já feito na época, Anjos do inferno (1930), uma produção que seria originalmente muda.
Referências
- A maior revolução de Hollywood | Babilônia e o fim dos “filmes mudos” (Mikannn)
- Films exploring the transition to talkies (Letterboxd)
- Singin' in the Rain (IMDB)
- The Artist (IMDB)
- Sunset Boulevard (IMDB)
- Downton Abbey: A New Era (IMDB)
- Hollywood Cavalcade (IMDB)
- The Talk of Hollywood (IMDB)
- Chaplin (IMDB)
- The Aviator (IMDB)
Quando pequeno sempre pedia para minha mãe comprar os DVDs de Charles Chaplin no mercado. Sempre me sentia estranho em gostar dos filmes sem som, hoje sinto um enorme privilégio:)
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