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Lindsay Kemp, o artista que ensinou David Bowie e Kate Bush a se movimentarem

O que torna um mímico célebre? 

Eternizados em preto e branco, os expoentes da arte mímica são aqueles que se expressam apenas por gestos, através do teatro ou da dança. Sem recorrer às palavras, os movimentos do corpo estabelecem a comunicação entre artista e público, transmitindo emoções essenciais para que a performance tenha continuidade.

Com suas raízes no grego mimos – imitador, ator –, a pantomima é tão antiga quanto a própria dramaturgia, por mais que possa parecer perdida no tempo. Muito valorizada na época do cinema mudo, quando atores como Charlie Chaplin precisavam dominar suas técnicas, hoje encontramos na cultura popular sobretudo suas caricaturas, como palhaços que percorrem as mãos por paredes imaginárias. 

Um dos maiores mímicos foi o francês Marcel Marceau, que se apresentava através da persona de Bip, o Palhaço, e definia o seu ofício como “a arte de expressar sentimentos por atitudes, não um meio de expressar palavras por meio de gestos”. Entre seus alunos, estava um que criou a sua própria forma de se expressar: Lindsay Kemp, mímico inglês que se destacou nas décadas de 1960 e 1970, e ensinou artistas, como Kate Bush e David Bowie, a se movimentarem nos palcos. Mas essa é só uma parte da história. 

Da Grécia à Inglaterra 


Em suas origens greco-romanas, a pantomima incluía música e diálogos falados, representando cenas do cotidiano de forma cômica, abordando adultérios e outros vícios. Muitas de suas personagens típicas ficaram para a história por meio da obra de Plauto, grande dramaturgo romano, e ressurgiram modificadas na commedia dell’arte, uma forma de teatro de rua italiano que marcou a época da Renascença.

A commedia dell’arte também representava a vida cotidiana, mas com acrobacias, improvisos, uso de máscaras e exageros cômicos. As personagens típicas se dividiam entre os zanni, ou servos, da classe social mais baixa; os vecchi, de classe social mais abastada; e os innamorati, ou amantes, que desejam se casar. Através de trupes de artistas, esse gênero teatral popular entre os séculos XVI e XVIII se espalhou pela Europa e, ao chegar na França, deu origem à mímica moderna. 

Lindsay Kemp

Foi no início do século XIX que Jean-Gaspard Deburau cativou o público francês sem dizer uma única palavra. Contratado pelo Théâtre des Funambules para realizar atos de comédia e acrobacias, ele usava tinta branca no rosto e um terno abotoado caído: era Pierrot, ou Pedrolino, o palhaço triste, que contracenava com Colombina e Arlequim, formando um triângulo amoroso. Colombina era apaixonada por Arlequim enquanto Pierrot vivia um amor platônico por ela e, sem coragem de se declarar, guardava flores e escrevia cartas que não enviava. 

Porém, na Inglaterra, a história da pantomima seguiu um rumo diferente. A pantomime, comumente chamada de panto, originou-se das arlequinadas (harlequinades) do século XVII, adaptações da commedia dell’arte em que Arlequim desempenhava o papel principal. Eram peças curtas e humorísticas, encenadas ao final das produções teatrais, cujo enredo padrão consistia em uma perseguição dos amantes Arlequim e Colombina pelo pai dela, Pantalone, e seu servo, Pedrolino, ambos atrapalhados. 

Enquanto Arlequim era um malandro habilidoso, Pedrolino fazia tudo errado, provocando risos, o que acabou consolidando-o como a imagem do clown, ou palhaço. A princípio, as arlequinadas não possuíam diálogo devido às restrições impostas pela realeza, e só passou a ser permitido em 1843. Então foram incluídas piadas, trocadilhos e maior participação da audiência, além de comentários sobre eventos e inovações, como as ferrovias, ainda vistas como muito perigosas.

Com maior liberdade de estilo e estrutura, as pantomimas inglesas também se inspiravam nas extravaganzas, produções teatrais que envolviam elementos burlescos, sátiras, música e efeitos especiais. Essas atribuições acabaram elevando o status da panto, antes considerada uma forma de entretenimento baixo, de maneira que, a partir da década de 1860, a atração passou a contar com a participação de estrelas do teatro de revista com números musicais populares.

Por conta disso, ainda na Era Vitoriana tornou-se costume que uma jovem atriz interpretasse o papel de herói, ou mocinho, enquanto um ator cômico interpretava o papel de uma mulher velha, ou dama –  algo não tão surpreendente, já que por séculos as mulheres foram banidas dos palcos, e ao longo da história do teatro era comum homens desempenharem papéis femininos. Já o motivo que levou mulheres à assumirem papéis masculinos foi a necessidade de criar espaço para as cantoras do teatro de revista entrarem na pantomima. Uma controvérsia que só aumentaria a popularidade dos espetáculos, atraindo interessados em ver pernas femininas: o figurino dos mocinhos consistia em shorts e meias, o que era ousado para uma época em que as mulheres cobriam as pernas com vestidos longos e desconfortáveis. 


Até hoje, as performances de panto são uma tradição de entretenimento familiar na Inglaterra, principalmente no Natal. Porém nas décadas de 1960 e 1970, em consonância com os movimentos de liberação sexual, as pantomimas voltariam a gerar controvérsia ao abordar temas adultos. Um dos nomes que ficariam para a história da pantomima inglesa no pós-guerra era Lindsay Kemp.

Uma espécie de transe


Para Lindsay Kemp, dançar era como viver. Natural desde a infância, foi um meio que ele encontrou para lidar com uma juventude difícil: “Eu nunca andei, sempre dancei. Sempre achei dançar muito mais prazeroso do que caminhar”. Antes de nascer, seus pais haviam perdido uma filha de cinco anos, Norma, para a meningite, e desejavam outra menina. Ainda que esse desejo não tenha se realizado, ele acabou se tornando a alegria da sua mãe e herdou os presentes que seu pai, oficial da marinha mercante, havia dado para Norma: leques e mini quimonos japoneses. 

Dois anos depois, outra tragédia: o pai de Kemp morre a bordo de um navio atacado por torpedos alemães, evento que explica símbolos recorrentes em seu trabalho, como marinheiros, ondas, anjos e albatrozes. Marie, sua mãe agora viúva, volta a morar com os pais no norte da Inglaterra, e frequentemente levava o filho para o teatro e ao cinema, que ela adorava. Mas o que realmente impressionava o menino eram as pantomimas de Natal, com seus efeitos especiais e fadas que dançavam. 

No quintal de casa, ele fazia suas próprias pantomimas, reunindo as crianças da vizinhança, dirigindo-as, pintando tecidos para os figurinos e interpretando os papéis principais. Aos oito anos, brincava de fazer maquiagem completa, o que levou Marie a empurrá-lo para o internato, esperando que isso o “corrigisse”. Foi na atmosfera tensa e masculina do Orfanato do Marinheiro Mercante que, segundo relato do próprio Kemp, ele aprendeu a fazer os outros rirem. 

“Eu era tão diferente de todos que precisava encantá-los para salvar minha pele. Foi no internato que aprendi a arte da hipnose, parte essencial da técnica artística."

Aos 16 anos, aplicou para diversas escolas de artes dramáticas, mas foi rejeitado por cada uma delas. Só conseguiu entrar no Ballet Rambert com a condição de completar o serviço nacional por um ano, e, por isso, se juntou à Força Aérea Real, onde permaneceu até ser dispensado depois de aparecer em um desfile usando kohl, uma maquiagem de contorno nos olhos, e sandálias indianas nos pés. 



Já estudante em Londres, teve aulas com o mímico Marcel Marceau e com a expressionista Hilde Holger, uma vienense expatriada que foi responsável pela maior parte de sua educação em dança. Apesar de se destacar mais com suas performances de pantomima do que como coreógrafo, logo ele passou a dar aulas no Dance Center em Covent Garden. 

Ao formar a própria companhia de dança, seu primeiro colaborador foi Jack Birkett, um dançarino cego conhecido como O Incrível Orlando (The Incredible Orlando). Os dois trabalharam em teatros e grupos de dança, além de apresentarem nos clubes de trabalhadores ingleses (working men’s clubs), até o início dos anos 1960, desenvolvendo um estilo único, entre drag, mímica e tradicionais números musicais. De acordo com Kemp, ele se transformava na personagem nos palcos por meio de um processo de transe: “sem transe, não há dança” era uma frase que repetia para seus alunos. 

“Eu entro no processo de transe e me torno qualquer personagem que eu esteja interpretando, as personalidades tomam conta de mim. Chego cedo ao meu camarim e me sento em frente ao espelho, sozinho, meditando sobre o personagem. Toco música para me abandonar a mim mesmo e pinto o que vejo no espelho. Olho para mim até ver o reflexo do personagem e colori-lo. Através desse processo de duas horas sentado no camarim, estou entrando em transe. Quando saio do camarim já estou em transe, estou no personagem; eu entro em outro mundo...”

Extravaganza e glam


Em 1967, a pequena companhia de Lindsay Kemp lançaria um teatro de revista chamado Clowns. Entre os espectadores estava David Bowie, ainda com 19 anos, que, impressionado, quis se tornar estudante do mímico. O cantor estava pensando em desistir da música após o fracasso de seu primeiro LP e, considerando se tornar um monge budista, dedicava-se a ajudar lamas exilados durante o conflito com a China. 

As aulas de Kemp atraíam muitas pessoas por conta da dança, mímica, improvisação e liberação criativa. Nas palavras de Bowie: “Era tão mágico quanto o Budismo e eu me entreguei àquilo, me tornei uma criatura urbana. Acredito que foi assim que o meu interesse por imagens realmente floresceu”. O professor inspirava coragem e, com sua personalidade extravagante e teatral, o incentivou a construir uma persona performática.

“Primeiro, eu lhe disse que queria ver seu espírito dançando. Eu realmente acredito que o movimento é o desejo de a alma ser livre. Então eu começava a libertá-lo da sua timidez. Ele era muito ansioso e tinha ambição – como tinha! – mas demandou muita ginástica, trabalho físico mesmo, para tornar o seu corpo mais flexível. A sua imaginação certamente era a de um dançarino, mas eu o encorajei a ser mais audacioso, sabe, mais experimental. A arriscar-se e tudo o mais.”

Poucos meses depois, Bowie participou do espetáculo Pierrot in Turquoise no papel de um trovador, cantando algumas músicas de autoria própria, enquanto Jack Birkett interpretava Arlequim, e Lindsay Kemp, Pierrot. Mas a peça não reproduzia a pantomima típica, tradicional: no lugar do cômico, havia cenas surreais e trágicas, como a entrada de Pierrot em um espelho para encontrar Colombina em um espaço abstrato, repleto de escadas e manequins. A tensão entre os atores – inclusive, Kemp e Bowie tiveram um caso na época – sugeria ambiguidade sexual em vez do convencional triângulo amoroso. 

Lindsay Kemp e David Bowie

A companhia de Kemp consolidou seu lugar no meio artístico, revolucionando a pantomima inglesa, em 1970. Era domingo quando um vizinho do mímico entregou-lhe uma cópia do escandaloso livro Nossa Senhora das Flores, de Jean Genet. Escrito clandestinamente enquanto o autor estava preso por roubo, ele contava histórias do submundo parisiense, com drag queens, cafetões, assassinos e marinheiros. Após a leitura, Kemp começou a imaginar a sua mais famosa pantomima, Flowers

Lindsay Kemp interpretava a travesti Divine, protagonista da peça que transformava a prosa agressiva de Genet em gestos, silêncio e música. Com temáticas que chocavam o público, o espetáculo era frequentemente invadido pela polícia, o que aumentava a mística em torno dele. Críticos condenavam os critérios de Kemp para a seleção do coro, com jovens sem formação clássica nem técnica de dança, recrutados em um parque urbano de Edimburgo só por terem boa aparência, mente aberta e paixão pela vida. “Eles eram as verdadeiras flores do espetáculo – os garotos que escolhi no parque porque pareciam adequados.”

Iconoclasta, subversiva e com muito glitter, a companhia teatral de Lindsay Kemp também inspirou o glam rock. Assim que Bowie gravou as músicas de Ziggy Stardust, entregou-lhe a Kemp, que as imaginou dentro de um contexto dramático e teve suas ideias aplaudidas pelo cantor e seu agente. Mais uma vez trabalhando juntos, eles moldaram o alienígena andrógino do início dos anos 1970: 

“Ziggy Stardust, como o conhecemos, era um casamento entre rock’n’roll e o meu próprio estilo de teatro, que naquela época era considerado muito de vanguarda, mas na realidade estava ancorado na tradição musical e circense… Eu planejava que fosse uma extravaganza. E, é claro, foi uma extravaganza o que colocou o glam rock no mapa.”

Movimentos da arte mímica, como câmera lenta e empurrar uma parede invisível, estão presentes nos shows dessa era, e até algumas fantasias usadas nos palcos vieram da companhia de dança. Uma delas, com teias de aranhas, aparece no clipe de John, I’m Only Dancing, vestindo as Astronettes – os próprios dançarinos, Lindsay Kemp, Jack Birkett e Annie Stainer –, que nos palcos performavam com a banda Ziggy Stardust and the Spiders from Mars:

Dissolvendo fronteiras


Apaixonado por todos os aspectos da performance, Lindsay Kemp nunca diferenciou dança, mímica, atuação e canto: “O mímico usa gestos para transmitir sua beleza interior. É a sua maneira natural de fazê-lo, e a única maneira de fazê-lo maravilhosamente”

Kate Bush performando em Tour of Life

Em 1976, um anúncio para as suas aulas que prometia ensinar a “viver fabulosamente através dos seus sentidos” chamou a atenção de Kate Bush. Ela estava quase desistindo de usar a dança como extensão da própria música, mas as lições de movimento de Kemp a fizeram mudar de ideia, aproximando-a da mímica:

“Ele me ensinou que você pode se expressar com seu corpo – e quando seu corpo está acordado, a sua mente também está. Ele colocava você em situações emocionais, algumas delas muito pesadas, dizendo: ‘todos vocês vão se tornar marinheiros se afogando, e há ondas ao seu redor’. E todos começariam a gritar. Ou talvez ele transformasse você em uma pequena chama…”

Durante as aulas, o mímico ajudou Kate a desenvolver um estilo de movimento mais enérgico para suas performances. Ele conta que, a princípio, ela era tímida e ocupava um lugar no fundo da classe, mas assim que ganhou coragem para começar a dançar, demonstrou toda a sua força criativa. 

“É isso que procuro ensinar a todos que estudam comigo - libertar o que já está lá. Todo mundo tem uma ave dentro de si, e deixá-la voar é uma experiência fabulosa. É por isso que Isadora Duncan dançou e Pavlova dançou - porque elas adoraram o momento em que realmente se tornaram cisnes, não apenas personificando-os, como atores fazem. Pavlova realmente se tornou um cisne e se divertiu muito enquanto era um. Eu também estou me divertindo..."

Em homenagem ao artista, Kate lhe dedicou a primeira música de seu álbum de estreia, The Kick Inside. A letra de Moving descreve o que ela sentia ao ver suas performances, e a coreografia reproduz gestos da mímica. A extravagante turnê Tour of Life, por mais que Kemp não tenha sido o principal coreógrafo, era uma produção teatral completa. Ao longo de 24 músicas eram realizadas 17 trocas de figurino, e o elenco incluía, além da própria Kate, uma banda de sete homens, duas backing vocals, dois dançarinos e um mímico ilusionista. 

Em sua memória, Kate declarou: "Chamá-lo de mímico é como chamar Mozart de pianista. Ele era muito corajoso, muito divertido e, acima de tudo, surpreendentemente inspirador. Nunca houve ninguém como Lindsay”. Para alguns, pode parecer inusitado que um artista de vanguarda como Kemp cultivasse o gosto pelos clássicos. Mas foi estar situado no cruzamento de tradições diversas o que deu origem à sua arte, tão autêntica, fértil e relevante para a cultura do século XX. 

Em 2018, um mês após seu aniversário de 80 anos, Kemp fez a sua última apresentação. No mesmo ano, confessou em entrevista à amiga Jaq Bessell algo que o entristecia: ver que poucos dançarinos e atores jovens conheciam a história de suas próprias formas artísticas ou exploravam outras artes, como pintura, música, literatura e cinema. 

Em suas próprias palavras: “Se você não explora o que veio antes e aprende com isso, o presente perde profundidade e perspectiva. Vemos tantas coisas hoje que são superficiais, sem raízes no coração, ou paixão”. Ainda assim, o seu legado permanece na obra dos que aprenderam com ele o que é movimentar-se; uma arte silenciosa, extravagante, profunda. Em transe, hipnotizando a plateia, Lindsay Kemp tornou-se um mímico célebre.

Referências



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