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Água Viva: Clarice Lispector, o instante-já e o descobrir de si mesmo


Costuma-se dizer que através dos livros de ficção também é possível viajar. Viaja-se a lugares tanto existentes quanto inexistentes; através das páginas, pode-se chegar à Terra Brasilis que conheceu Hans Staden; ou ao País das Maravilhas que Alice encontrou ao acaso. Todos esses lugares possuem algo de nós mesmos, algo por vezes oculto pelas brumas do tempo ou do inconsciente. Contudo, poucos são os livros que carregam o leitor ao longo da viagem; que o fazem experienciar o ato de viajar em si mesmo, e todas as proporções que essa palavra pode trazer, quanto Água viva, de Clarice Lispector

Na língua italiana, dizemos que a maioria dos verbos que exprimem deslocamento (“spostamento”) são acompanhados do verbo auxiliar “essere” (ser), quando escritos no passado. Por isso, não podemos dizer “ho uscito” (tinha saído), como normalmente costumamos usar em nosso português cotidiano, mas sim, “sono uscito”, algo que ao pé da letra poderia ser traduzido como “sou saído” — mas que simplesmente significa “saí”. De modo semelhante, podemos interpretar que essa obra de Clarice não significa apenas uma viagem espaço-temporal, mas também de mente-essência. O eu que viaja, que vai a outros lugares dentro de si, é o mesmo que sofre a ação de ser transportado; que sofre todas as felicidades e agruras que carregam a árdua tarefa que é conhecer a si mesmo. 

Antes de ser publicado em 1973, o livro passou por um longo processo de amadurecimento até a sua versão final. Segundo Alexandrino Severino, em As duas versões de Água Viva, esta obra inicialmente se chamava “Atrás do Pensamento: Monólogo com a Vida” e, posteriormente, “Objeto”. Entretanto, após sofrer diversas alterações que retiraram do livro, o então nomeado “Objeto Gritante”, seu aspecto autobiográfico, Clarice finalmente apresentou o manuscrito final, o qual das 150 páginas escritas, 50 foram cortadas, e o título final da obra foi decidido: Água viva

Não se pode dizer que essa obra possui um enredo ou uma história, mas um fio condutor que perpassa todas as páginas em que flui o discurso de um “eu” que é universal. O tema da obra, o que guiará este “eu” ao longo de sua viagem transformadora, é a busca pelo instante-já, a essência da vida. Segundo  Hélène Cixous, citada no artigo de Anderson Matos, Água viva é  “um  livro  de  instantes,  um  livro  em  que  cada  página  pode  ser  isolada  como  um  quadro”. E, de fato, é isso que acontece. Por não possuir uma história propriamente dita, as imagens nessa obra se deslindam conforme o fluxo de pensamento da escritora e se formam das mais variadas fontes, cada uma possuindo não exatamente um início ou fim, mas que, interligadas, formam um todo que é orgânico. Segundo Anderson Matos, em seu artigo “‘Romance sem romance’: o caso de Água viva de Clarice Lispector”, essas imagens são diversas, “mas  engajam-se  num  todo sucessivo,  de  tal  forma  que  uma  imagem  leva  a  outra  e  cada  uma  participa  da  outra.  Os conceitos de início e fim se confundem, pois cada uma das imagens contém, de certa maneira, a  obra  inteira  e  a  revela  de  uma  determinada  perspectiva”

Clarice Lispector

Sendo assim, essa obra de Clarice Lispector é uma viagem na qual a própria personagem é modificada, pois precisa desfazer-se e refazer-se — se deseja continuar nessa busca. Podemos dizer que o “eu” de Água viva é a voz que descreve os efeitos da viagem interna e pessoal à procura do instante da vida, mas que também ela mesma se transforma nesse processo. 

O instante-já e o refazer-se


“Eu te digo: estou tentando captar a quarta dimensão do instante-já que de tão fugidio não é mais porque agora tornou-se um novo instante-já que também não é mais. Cada coisa tem um instante em que ela é. Quero apossar-me do é da coisa. Esses instantes decorrem no ar que respiro: em fogos de artifício eles espocam mudos no espaço. Quero possuir os átomos do tempo. E quero capturar o presente que pela sua própria natureza me é interdito: o presente me foge, a atualidade me escapa, a atualidade sou eu sempre no já.”

Como conseguir captar a essência primeva do mundo? Essa é a tarefa árdua desse “eu” que nos narra uma história que não possui muito bem um enredo. Seguindo a linha de raciocínio da narradora, conseguimos entender que somos cercados por quintessências, que de tão mínimas são incapazes de serem alcançadas. 

Segundo Eduardo Horta Nassif Veras, em seu artigo “A escrita automática em Água Viva, de Clarice Lispector”, a protagonista dessa história está em busca de uma experiência do presente vivo, que não é rememorado. Esse presente vivo, para a narradora, coincidiria com a essência de todas as coisas. O instante-já, portanto, está intimamente ligado ao Ser, que existe independente de causa alguma. Poderíamos até mesmo dizer que a narradora estaria em busca do Primeiro Motor Imóvel de Aristóteles: aquele que deu início a tudo, mas não ele próprio, não possui um começo, nem um fim. 

Entretanto, essa procura não se encontra em um plano intelectual, mas é orgânica, instantânea, instintiva. Como água que é elétrica, vai a protagonista tateando, sem ter noção de como encontrará esse instante, mas mesmo assim caminha e corre, incessantemente, mirando o que está além do pensamento. E, nesse processo, refaz-se a si mesma. 

“Criar de si próprio um ser é muito grave. Estou me criando. E andar na escuridão completa à procura de nós mesmos é o que fazemos. Dói. Mas é dor de parto: nasce uma coisa que se é. É-se.”

A busca em que mergulha a protagonista a faz descobrir diversas dimensões de si mesma que até então lhe eram ocultas. Ao tentar ir além do pensamento, ela também vai além daquilo que conhecia de si mesma. Adentra grutas escuras, bosques densos, até o ponto em que afirma: “Estou me criando”. E mesmo essa afirmação não é livre de movimento, o que nos mostra que Água viva também é um livro sobre resiliência. Clarice Lispector deixa claro que este recriar-se não é livre de sofrimento, mas que o resultado é o contentamento vindo de um ser que verdadeiramente entende quem é. 


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Referências




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Rebeca Pereira
É estudante de Letras e apaixonada por literatura fantástica e maravilhosa, fantasia, contos de fadas, folclore e mitologia.

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