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A mão esquerda da escuridão: um olhar antropológico para a ficção científica


“Falo sobre deuses, mas sou ateia. Porém sou artista também e, portanto, mentirosa. Não confie em nada do que digo. Estou dizendo a verdade.”
É dessa forma que, em sua introdução de A mão esquerda da escuridão, Ursula K. Le Guin se impõe. Ela é uma artista, e por isso, uma mentirosa, complementando aquele dito Pessoano de que o poeta é um fingidor, e, assim, Ursula engloba também nesse balaio o artista, o romancista.

Para além de suas próprias palavras, Ursula Kroeber Le Guin foi uma das maiores escritoras, pensando fora da caixinha do “a” como um determinante do feminino e da ficção científica. Ganhou um dos prêmios mais famosos de ficção, como o Nebula e o Hugo, além de ter sido uma figura imaginativa e, para além de tudo, revolucionária. Ensaísta, ficcionista e pensadora da FC (ficção científica) enquanto teoria crítica e filosófica, Le Guin toma verdades absolutas da ficção para si e as desconstrói pedaço a pedaço. Uma demonstração disso é sua introdução de A mão esquerda da escuridão, em que ela confronta o pessimismo atribuído à FC e à própria noção de que esta é apenas extrapolação, ou melhor, a previsão de um futuro muitas vezes cancerígeno, estéril e morto. Ela faz ainda melhor, colocando a FC em uma placa de petri e assume para si e para seus leitores que, na verdade, a FC realiza um trabalho descritivo com um quê de sociológico. Dessa forma, Le Guin leva, para o futuro distante das viagens espaciais, a antropologia. O comportamento humano em um ambiente controlado por ela mesma, futurístico ou não, é o que ela demonstra em uma das suas obras mais célebres, A mão esquerda da escuridão, em que ela descreve não o futuro, mas a sociedade em uma espécie de exercício de alteridade.

“Não faço previsões, nem passo receitas. Descrevo. Descrevo certos aspectos da realidade psicológica à maneira do romancista, que é inventando mentiras elaboradas e circunstanciais."

Nessa espécie de trabalho de um “e se?”, Ursula esbanja metáforas, pois, segundo a autora, “toda ficção é metáfora”, e o leitor vislumbra pela tinta das palavras, ou pelos olhos de Genly Ai, personagem da narrativa que é um viajante em uma terra completamente desconexa da sua realidade, o desenrolar das metáforas e das descrições. Além disso, é perceptível a influência da realidade de uma mulher que viveu os anos 1960, e, diante de seu contexto, produziu um grande clássico do gênero que, apesar das controvérsias, nunca terminou de dizer aquilo que tinha para ser dito.

A metáfora feminista


Ursula K. Le Guin estava completamente imersa em sua época. Diante do contexto dos anos 1960, sentia a necessidade de se posicionar; frente a esse unease (desconforto), como ela mesma classifica, sua forma de se expressar foi pela escrita de um romance: pôr para fora através de palavras todas as ranhuras possíveis que conseguia enxergar na sociedade encarcerada pelo gênero. Depois da publicação do seu livro, em 1969, ela veio também através da escrita se manifestar sobre o que havia posto no mundo, suas ambições com uma arte e um enredo que não eram convencionais, por meio do seu ensaio O gênero é necessário? (Is gender necessary?), no qual elucida o propósito da criação da sociedade Getheniana e de seu visitante, Genly Ai, em A mão esquerda da escuridão.

Mas o objetivo de Ursula não foi o de propor uma saída para a humanidade ou uma nova configuração milagrosa que salvaria o homem de suas próprias opressões, mas, o de um puro experimento científico. A sociedade Getheniana não é a ideal, e sim um exercício que gera perguntas que não necessariamente têm respostas, apenas possibilidades metafóricas.

"Um jovem da terra em uma cultura imaginária totalmente livre de papéis sexuais porque não há, absolutamente nenhuma, distinção fisiológica de sexo. Eliminei o gênero, para descobrir o que restou. E o que restasse seria, presumivelmente, simplesmente humano. Definiria a área que é compartilhada por homens e mulheres."

Então, essa sociedade, controlada como um experimento, foi uma espécie de explanação de um mundo criado à mão, sem guerras, sem a possibilidade de estrupo e assédio sexual, além de uma exemplificação de como o fator sexual não afeta as dinâmicas da vida comum. Com esse novo ponto de vista sobre as relações humanas, Ursula nos convida para um exercício de perguntas e respostas, uma fuga das utopias a partir de uma metáfora feminista.

"Se fôssemos socialmente ambissexuais, se homens e mulheres fossem completa e genuinamente iguais em seus papéis sociais, iguais legal e economicamente, iguais em liberdade, responsabilidade e autoestima, então a sociedade seria uma coisa muito diferente. Quais podem ser nossos problemas, Deus sabe; Só sei que os teríamos. Mas parece provável que nosso problema central não seria aquele que é agora o problema da exploração -exploração da mulher, dos fracos, da terra."

As relações humanas para além dos carros voadores


A narração é masculina. O ponto de vista é masculino. O quão interessante é ter, pelas mãos de uma mulher, uma personagem masculina como Genly Ai? Ursula K. Le Guin dá vida ao grande “centro” do Ocidente; ao homem, ao antropocentrismo, ao sexo e ao falocentristmo de sua sociedade. Ela insere esse elemento tão comum e predatório em um novo planeta, uma nova sociedade que vira Genly Ai de ponta cabeça em suas crenças, costumes e opressões.

O romance de Ursula traz discussões interessantes para sua época e também para a posteridade. É possível identificar críticas nas descrições das personagens e  nas demais características da obra, mas nada disso tira o peso político, social e humano do livro.

Ursula K. Le Guin

A história segue Genly Ai, ou Genry Ai, como é chamado pelos habitantes de Gethen, um humano do sexo masculino, terráqueo, que é enviado para convencer o governante do planeta Gethen, ou Inverno, como também é conhecido, a se unir ao Ekumen - uma espécie de liga de planetas, uma ONU que facilita o comércio e a troca cultural entre planetas diferentes. O objetivo de Genly Ai não é a busca por outras formas de tecnologia, mas sim de descobertas sociais e culturais. Até porque os habitantes de Inverno não enxergam a tecnologia da mesma forma que os terráqueos, já que era como se essa nova civilização não tivesse saído da Idade da Pedra, ou nem mesmo tivesse alcançado a guerra espacial, como se não se encontrasse em pé de igualdade com a Terra, mas tivesse caminhado anos-luz nas relações de gênero e poder. Enquanto a equipe de viajantes fica adormecida na órbita de Gethen, Genly segue em direção ao solo onde se darão não as guerras tecnológicas e científicas, mas as relações humanas, o exercício antropológico de Ursula K. Le Guin. E é a partir dessa imersão que o leitor reconhece a grande chave de leitura da história: essa sociedade é ambisexual, o binarismo tão marcante das nossas relações sociais não existe na convivência do povo do Inverno.

Ser ambisexual acarreta no desenvolvimento dos dois órgãos genitais, mas a preponderância de um sobre o outro só se dá durante o período denominado “Kemmer”, um período de afeto e reprodução. Fora esse momento, os gêneros não significam nada. O jogo de poder começa a mudar para Genly Ai a partir do momento em que ele se torna um estranho no ninho, pois, para os gethenianos, ser tão binário assim é estar eternamente no "Kemmer", ou seja, no período de reprodução e, assim, ele passa a ser considerado um pervertido que está constantemente no “cio”.

“Então todos eles, lá fora nesses planetas, estão em kemmer permanente? Uma sociedade de pervertidos? Bem que o Senhor Tibe me disse; pensei que ele estivesse brincando. Bem, pode ser verdade, mas é uma ideia repulsiva, sr. Ai, e não vejo por que os seres humanos daqui deveriam querer, ou tolerar, qualquer tipo de negociação com criaturas tão monstruosamente diferentes.”

No sistema falocêntrico, a posição de poder pertence ao homem, mas, em sua narrativa, Le Guin insere a figura masculina em um ambiente em que é rejeitado. Nesse novo planeta, Genly Ai não recebe confiança dos superiores; suas ideias de uma aliança interplanetária não são levadas a sério nem pelo rei e nem pelas demais autoridades.

O único que deposita certa disposição a acreditar é o político Therem Hart rem ir Estraven, que, por confiar em Genly Ai, é desprestigiado e exilado de seu próprio país, dando início ao que seria a odisseia das duas personagens. É através dessa jornada que as questões antropológicas do outro são esmiuçadas.

O terráqueo observa os habitantes e principalmente Estraven, tentando compreender por meio de uma ótica de ele e ela esses seres tão diferentes. Por ser um narrador do sexo masculino, as questões das posições de gênero ganham contornos únicos e, por se entender como homem em uma missão política, Genly Ai também entende o outro como homem, tratando, na maioria das vezes, os ghetenianos em posição de poder com pronomes relativos ao sexo masculino; mas, quando demonstram comportamentos mais sensíveis e fracos, o Sr. Ai os percebe como do sexo feminino, como se a divisão sexual fosse uma questão de polos opostos, o positivo e o negativo, reforçando os estereótipos atribuídos aos sexos. Ele se esquece que, no caso do planeta Inverno, tudo isso inexiste.

“Considere: não existe nenhuma divisão da humanidade em metades forte e fraca, protetora/protegida, dominante/submissa, dona/escrava, ativa/passiva. Na verdade, pode-se verificar que toda a tendência ao dualismo que permeia o pensamento humano é muito reduzida, ou alterada, aqui em Inverno.”

Em determinado momento de sua aproximação, torna-se impossível para Estraven tentar fugir daquela realidade, e ele começa a entender as mudanças do outro, percebendo seu próprio companheiro de viagem como ele/ela, dando margem, mais à frente, a uma relação amorosa trágica.

“Vi então novamente, e de uma vez por todas, o que sempre tivera medo de ver e vinha fingindo não ver nele: que ele era uma mulher, assim como era um homem. Qualquer necessidade de explicar as origens desse medo desapareceu junto com o próprio medo; o que me restou, finalmente, foi a aceitação dele tal como era. Até então eu o rejeitara, recusara-lhe sua própria realidade. Ele estava totalmente certo quando disse que era a única pessoa em Gethen que confiava em mim, e o único getheniano de quem eu desconfiava. Pois ele tinha sido o único a me aceitar inteiramente como ser humano: que havia gostado de mim como pessoa, e me oferecera completa lealdade. E que, portanto, exigira de mim o mesmo grau de reconhecimento, de aceitação. Eu não estivera disposto a lhe oferecer isto. Tinha sentido medo de fazê-lo. Não queria oferecer minha confiança, minha amizade a um homem que era mulher, uma mulher que era homem”

É nesse rumo que Ursula K. Le Guin discorre a narrativa, no caminho de uma ficção científica que não se interessa unicamente pelas naves espaciais, invasões e supercomputadores, mas pela psique do homem inserido em suas relações de poder, comportamento e, sobretudo, humanos.

O novum de Le Guin é a alteridade


O crítico e escritor de ficção científica, Adam Roberts, em seu livro Science fiction, faz um passeio pela história da FC, e logo no primeiro capítulo, intitulado Defining Science Fiction, ele nos apresenta conceitos, ideias e paradigmas em torno desta. A sua própria ideia de uma definição é conturbada, e, na maioria das vezes, acaba por depender da visão crítica que se escolhe adotar. Nesse primeiro momento de seu livro, o leitor é apresentado ao termo novum, que vem do latim e pode ser entendido como “algo novo”, ou o ponto de diferença. Aquilo que está presente na premissa da ficção científica, que difere brutalmente da nossa própria realidade, é exatamente esse novum, que cria linhas entre o que é do mundo fantástico e o que está no científico. Em tradução livre da editora: 

“Parece que nesse ponto, a coisa ou coisas que diferenciam o mundo representado na ficção científica daquele que reconhecemos ao nosso redor é a separação crucial entre a FC e outras formas de literatura imaginativa ou fantástica.”

Esse novum na ficção científica não precisa ser necessariamente tecnológico, mas seria fácil encaixar A mão esquerda da escuridão no novum das viagens interestelares, das naves espaciais e dos supercomputadores, mas, mantendo o olhar mais atento, vemos que o novum, o algo novo de Ursula, é a desconstrução do nosso sistema binário, dos papéis de gêneros e, principalmente, da construção da alteridade.

Até os anos 1950, escrever e consumir ficção científica era uma experiência masculina, o construto era do homem e o que sobrava para a experiência feminina era o lugar alienado, a mulher ocupando o papel alien, o ser diferente e monstruoso a ser combatido. A proposta de Le Guin é justamente desmontar esse sistema realocando os seres em um novo universo, uma nova realidade, que é a Gheteniana.

Le Guin insere Genly Ai, o representante de toda experiência masculina, em uma sequência de acontecimentos na qual ele não vê o reflexo de si mesmo e nem de sua própria realidade. É nessa diferença de modelos de gênero que o novum de Ursula K. Le Guin é o exercício da alteridade, da experiência da vida e da realidade de se colocar no lugar do outro.


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Referências



Arte em destaque: Mia Sodré



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