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Bartleby, aquele que "prefere não fazer"


Um trabalho solitário, enclausurante, burocrático e com poucos estímulos. Colegas de trabalho presos em suas próprias manias e contradições. Um chefe que repete o discurso da ordem, civilização e conquista de uma vida boa através do trabalho honesto. Apesar de tudo, não há o que reclamar, certo? Existem condições de vida bem piores por aí. O melhor é fazer o que tiver que ser feito para sobreviver e manter o emprego que paga o suficiente para a subsistência sem ter de empregar trabalho braçal e em regime análogo à escravidão. De modo geral, essa é a rotina de um trabalho no escritório, uma rotina que boa parte de nós já internalizamos como comum. E este é, também, o cenário desolador de uma história escrita há pouco menos de cento e setenta anos.

Bartleby, o escrivão (1853) é um conto do estadunidense Herman Melville (1819-1891), autor de Moby Dick (1851). Bartleby, do título, é o personagem central da história, ainda que a narrativa seja feita em primeira pessoa pelo seu chefe, que sequer tem seu nome citado. Aliás, o tal chefe, mesmo sendo o dono do escritório de advocacia em Wall Street, onde Bartleby trabalha como escrivão, limita-se a um papel de observador dos movimentos de seu empregado, quase sem qualquer medida imperativa. Acontece que Bartleby é o seu contratado mais recente que poderia até ser chamado de exemplar no início de sua atuação: não se atrasava, não se distraía do trabalho, não reclamava. Apenas sentava em seu cubículo solitário e copiava os inúmeros documentos que chegavam à sua mesa. Ao contrário de seus colegas de trabalho - Peru, Alicate e Bolinho de Gengibre -, não tinha algum traço de excentricidade que perturbasse o ritmo da firma.

Esse clima pacato e satisfatório passa a ser perturbado quando Bartleby começa a se recusar a fazer as tarefas solicitadas pelo chefe. As recusas começam suaves, embora exasperantes. Em um primeiro momento, Bartleby se nega a cumprir o rotineiro protocolo de reler as cópias e conferir se estão corretas “em uma voz suave, mas firme”, com a emblemática frase: “Prefiro não fazer” - sentença que cumpre boa parte das falas do personagem durante todo o conto. Ele não concede qualquer explicação, tampouco cede aos pedidos categóricos do chefe. Atordoado, o chefe não consegue dissuadi-lo e nem repreendê-lo por seu comportamento, tamanha a sua surpresa. Ele ainda tenta em outros dias e momentos fazê-lo cumprir a tal tarefa, mas sem qualquer sucesso. Com o tempo, o enigmático escrivão começa a se recusar a fazer outras atividades e, mais tarde, o chefe descobre que ele está morando no escritório sem o seu consentimento e que se alimenta apenas de bolinhos de gengibre. O extremo da inatividade de Bartleby chega quando ele deixa - ou, em suas palavras, “desiste” - de copiar. Como as tentativas de demiti-lo e de fazê-lo ir embora falham, o chefe decide ele mesmo sair daquele prédio, mudar seu escritório de lugar e deixar Bartleby para trás.

Acompanhamos por páginas e mais páginas as tentativas do chefe de compreender aquele homem que havia contratado. De certo modo, a história só se prolonga e as situações só acontecem porque o chefe permite. Ele, orgulhoso de ser um cavalheiro educado e cristão, não agrediu Bartleby de nenhuma forma, nem mesmo em seus momentos de maior fúria. Acreditava que seu funcionário sofria de alguma perturbação “na alma”, que sua solidão era um sintoma digno de compaixão. Ele chega a deixar algum dinheiro com Bartleby ao partir, na esperança de que o utilizasse para começar uma nova vida. As esperanças, no entanto, se provaram vãs. Bartleby não usa nada da quantia e continua a morar no prédio, mesmo quando o dono do imóvel aluga o local para outro escritório. Como sua presença ali não era bem vista, e como ele não dava qualquer sinal de que cumpriria com as ordens de sair, a polícia é acionada e ele acaba preso. Mesmo dotado de um humor peculiar, o texto não escapa de ser trágico: Bartleby passa seus dias na prisão sem comer nem beber e acaba morrendo, provavelmente de desnutrição.

“ - Bartleby, não precisa me contar sua história, mas me permita lhe suplicar, como amigo, a seguir, o quanto for possível, os hábitos deste escritório. Prometa que ajudará a examinar os papéis amanhã ou no dia seguinte: em resumo, garanta que daqui um dia ou dois você começará a ser mais sensato. Vamos, Bartleby.

- No momento, prefiro não ser um pouco mais sensato - foi sua resposta suavemente cadavérica.”

Bartleby, o homem de seu tempo


O texto de Melville data do comecinho da segunda metade do século XIX, período que já consta na divisão que o historiador Eric Hobsbawm (1917-2012) chama de “era do capital” (entre 1848 e 1875). O nome é emblemático do período em que a Europa e os Estados Unidos buscavam superar de vez os “atrasos” do medievo e já consolidavam os princípios do liberalismo e do progresso. No entanto, como 1853 se encontra ainda muito no começo dessa citada era, talvez seja necessário recuar um pouquinho mais no tempo para compreender o que se passava no período em que Bartleby, o escrivão veio ao mundo. Voltemos brevemente ao que Hobsbawm chamou de era das revoluções (1789-1848).

Herman Melville

Segundo o historiador, na década de 1840, os Estados Unidos já passavam pela Revolução Industrial e se apresentavam como um forte concorrente comercial e industrial da Inglaterra - a maior potência do momento. Com exceção de períodos de colheitas ruins, a fome e a miséria já não eram tão generalizadas quanto antes e a população crescia vertiginosamente também pela imigração - facilitada pelas ferrovias e outros métodos de transportes. Diversas invenções aconteciam de acordo com a necessidade cada vez mais acelerada por tecnologias que facilitassem os processos e criassem novos meios de obter lucro - da máquina de fazer parafusos até as máquinas agrícolas. Os recursos naturais do território estadunidense eram o bastante para manter as atividades funcionando a todo vapor internamente. Hobsbawm afirma que “Nenhuma economia se expandiu mais rapidamente neste período que a americana, embora sua arrancada realmente decisiva só viesse a ocorrer depois de 1860”.

Quanto ao mundo do trabalho, é comum que recordemos das revoltantes condições nas fábricas e nos campos. Ao contrário de uma minoria que enriquecia nos campos e nas cidades, “havia muito mais pobres que, diante da catástrofe social que não conseguiam compreender, empobrecidos, explorados, jogados em cortiços onde se misturavam o frio e a imundície, ou nos extensos complexos de aldeias industriais de pequena escala, mergulhavam na total desmoralização”. Era precisamente essa desmoralização que o chefe de Bartleby abominava, pois, ele mesmo não sendo dono dos meios de produção, pertencia a outra camada da sociedade que crescia ainda que timidamente: a classe média instruída, por sua vez, muito influenciada pela “literatura moral” e “os movimentos de moderação e o esforço protestante”.

Além desses dados explicarem o comportamento aparentemente sensato do chefe, também são indícios primordiais para compreender a atmosfera que a história propõe montar - e ela o faz com muito louvor. O pequeno universo do conto é delimitado a um escritório e, mais tarde, a um presídio - e esse é só o começo dessa associação. Embora, obviamente, esse modelo de trabalho não se compare de nenhum modo à escravização a qual eram submetidas as classes mais empobrecidas, a verdade é que o ambiente e, principalmente, a burocracia das atividades de um escritório como o que Bartleby trabalhava pode ser sombrio e opressor de um jeito particular. Bartleby é testemunha da triste verdade de que - diferente da liberdade que ambicionavam e propunham os liberais da época - a vida ia tornando-se uma cela cada vez menor, embora mais sofisticada.

“Lembro-me com clareza dele: palidamente engomado, lamentavelmente respeitável, incuravelmente desamparado! Era Bartleby.”

Bartleby, apenas


No final da história, o narrador revela um rumor de que Bartleby, antes de ser empregado do escritório, trabalhava também de escrivão no departamento de cartas extraviadas de Washington, e que fora demitido em razão de uma troca de administração. Não há como saber se esse passado é real ou não, mas o fato é que tudo o que sabemos sobre Bartleby é mediado pelo relato de seu chefe ou de outros personagens que falam dele, e que tudo tem a ver com seu trabalho. Ele não revela nada sobre si. Nem seus gostos, sua idade, sua formação ou aspirações pessoais. Não há cenários além do escritório ou da prisão. Na história, Bartleby é descrito em uma dimensão só: um escrivão. Um empregado. Assim, quando deixa de copiar e fica sem emprego, Bartleby passa a não ser nada. E então, ele morre.

Mas não é só Bartleby que carece de aprofundamento, todos os personagens relevantes da história são definidos pelas suas atividades profissionais e como elas os afetam. O chefe é o chefe, não são necessárias apresentações. O office boy é chamado de Bolinho de Gengibre, pois esse é o lanche que ele busca para os outros empregados. Peru - escrivão - tem esse apelido, aparentemente, por ser baixo e gordo, além de sofrer de episódios diários de raiva após o meio-dia que fazem com que seu rosto brilhe “como uma lareira cheia de brasas de Natal”. Alicate - o segundo escrivão citado no conto - carrega o apelido por constantemente usar suas habilidades mecânicas para melhorar sua mesa de trabalho, que nunca ficava adequada o suficiente. Além dessas características, o chefe da empresa faz algumas observações sobre sua índole: “Sempre o considerei vítima de dois poderes malignos - ambição e indigestão [...] Para resumir, a verdade é que Alicate não sabia o que queria. Ou, se queria algo, era se livrar da mesa de copista de uma vez”. Fica evidente aqui que o narrador condena a ambição de Alicate, talvez por puritanismo da literatura moral mencionada por Hobsbawm ou por se sentir ameaçado por um jovem aparentemente talentoso que tinha menos da metade da sua idade.

A pretensão de Alicate e o comportamento irado de Peru representam incômodos para o chefe, que deixa clara a sua desaprovação. Mas por que, então, ele os suporta? Ele mesmo responde essa pergunta: “Mas mesmo com todas suas falhas e irritação que me causava, Alicate, assim como seu compatriota Peru, era muito útil para mim”. Ou seja: no mundo dos negócios, (quase) qualquer excentricidade é superada pela demanda da produção.

Existem diversas análises válidas sobre o conto de Melville. Muitos linguistas, filósofos e críticos literários já se debruçaram sobre o protagonista, suas motivações e seu icônico bordão "Prefiro não fazer" (“I would prefer not to”). Para o leitor despretensioso, porém, talvez a chave de leitura mais interessante do texto e do próprio personagem principal é o grau de identificação que qualquer trabalhador - principalmente o que lida com burocracias - pode sentir. Bartleby é complexo ao ponto de causar sentimentos como compaixão e ainda suscitar pensamentos do tipo: “como pode ser tão insubordinado? Todos temos de fazer o que manda o patrão!”. Essa antipatia é sintomática do quão naturalizada é a postura de subserviência e do quão estranha se tornou a ideia de um indivíduo que pode simplesmente expor sua falta de disposição para fazer alguma tarefa ordenada.

Bartleby é o único no escritório que, além de ter um nome, tem nome de pessoa, não de uma coisa. Mesmo que o tempo todo exista o esforço de tentar realoca-lo ao seu posto profissional, ele resiste, e a alcunha de “o escrivão” vem só depois de seu nome próprio. No fundo, provavelmente Bartleby é tão fascinante e intrigante porque todos os que vendem sua força de trabalho gostariam de olhar para as atividades enfadonhas, as quais são obrigados a cumprir por horas a fio, com um honesto: “prefiro não fazer”.


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