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Morte na Mesopotâmia: quando a poesia de John Keats inspirou Agatha Christie


Agatha Christie não é uma autora que levou seu título de “Rainha do crime” em vão. Mesmo com mais de setenta livros livros publicados, toda a sua coleção mantém um grau de suspense e excelência impressionantes, capaz de conquistar qualquer um que leia a uma de suas histórias. Seus conhecimentos em enfermagem, remédios, venenos e diferentes locais do mundo fizeram com que cada narrativa sua tivesse um tom único e muito rico em detalhes.

Em todos os seus livros a morte é executada e explicada por diversas razões, e por mais complexo que o caso pareça ser, a verdade sempre aparece. Em Morte na Mesopotâmia isso se torna um pouco diferente, pois, além da aparição tardia de Hercule Poirot, vários aspectos da trama possuem um ar sobrenatural, no sentido literal da palavra.

Quando Amy Leatheran é contratada para trabalhar como enfermeira para a esposa do chefe de uma escavação no Iraque, ela acreditava que teria pela frente mais um tipo de trabalho cansativo com uma vítima de uso excessivo de álcool ou drogas. Ao chegar em Tell Yarimjah, Amy descobre que seu trabalho vai muito além de simplesmente cuidar da sua paciente. Na verdade, ela também está ali para a segurança de Louise, uma mulher que está passando por um surto nervoso em decorrência de constantes ameaças que vêm sofrendo através das cartas de seu primeiro marido – que foi dado como morto. Nessas cartas, ele a ameaça por ter se casado novamente, e após alguns episódios um tanto irreais para os outros moradores de Tell Yarimjah (aparição de um rosto na janela, barulhos e luzes piscando sem explicação), a Sra. Leidner transforma-se em uma pessoa que teme até sua própria sombra.

Durante a história, muitos pontos autobiográficos são apresentados por Agatha Christie. Assim como Louise, ela também teve dois casamentos e o segundo marido era um arqueólogo que trabalha em terras iraquianas. Entretanto, mesmo que o ponto pessoal chame bastante atenção durante a leitura, são outras situações que se diferenciam dos livros mais conhecidos da autora. Nessa história tudo acontece, todos estão sempre presentes, mas quase ninguém é capaz de explicar as motivações, como e, principalmente, quem seria a pessoa que se beneficiaria com todo esse caos.

Como Amy é a narradora, o leitor consegue conhecer de perto Louise e todos os outros morados de Tell Yarimjah, e passamos a não ter somente a visão do casal Leidner. Logo se notam ações passionais, como se algum envolvimento amoroso secreto pudesse acontecer, fazendo com que o clima no sítio arqueológico seja preenchido por uma cordialidade forçada e inquietante, como se todos estivessem esperando por algo ocorrer, mas ninguém soubesse exatamente o quê; nas palavras de Amy: "Sim, havia algo curioso naquilo... Uma tênue formalidade... Alguém poderia dizer que se tratava de um grupo de estranhos – não pessoas que se conheciam (algumas delas) há vários anos".

Agatha Christie's Poirot: Murder in Mesopotamia (2001)

Apesar das intrigas que rondam o local, quase todos se referem a Sra. Leidner como a “Linda Louise” de forma carinhosa (principalmente pelos homens) ou sarcástica. Parece haver uma dualidade forte sobre aquela mulher, do tipo que ou você a ama ou a odeia, e é através dessa dualidade que alguns personagens mostram a outra faceta dessa figura tão misteriosa.

“A Sra. L. não é bem uma dama, mas é muito bonita. Lembra aquelas mulheres fantásticas que emergem dos pântanos e nos deixam enfeitiçados.”

Para os personagens que não gostavam de Louise, seu charme era algo muito além de uma simples conquista. Para eles, era como se ela soubesse que poderia “enfeitiçar” todos à sua volta. O que não se torna difícil de acreditar, já que em diferentes momentos o Dr. Leidner se mostra completamente devoto e encantado pela mulher com quem se casou, desacreditando também que os outros não a amavam como ele.

Contudo, quando Louise é assassinada sem que haja uma única gota de sangue aparente na cena do crime, o triângulo amoroso entre ela, seu marido e o Sr. Carey (arquiteto da expedição) vem a tona e o leitor entende como esses dois personagens masculinos são exemplos do que John Keats escreveu em seu poema  A Bela Dama sem Piedade.

“Os versos de um poema de Keats que eu aprendera na infância martelavam em minha cabeça. […] 'O que é que você tem, ó cavaleiro? (como era mesmo?) Cavalgando a esmo, pálido e sozinho?' Pela primeira vez, vislumbrei o cavaleiro em minha mente – o rosto do sr. Carey. Sombrio, tenso e bronzeado, como o rosto daqueles pobres soldados que eu lembrava ter visto quando criança durante a guerra… Senti pena dele – então caí no sono outra vez e descobri quem era a Belle Dame sans Merci: a sra. Leidner! Montada a cavalo, inclinava o corpo lateralmente e segurava um bordado florido nas mãos. De repente, o cavalo tropeçou e por todos os lugares havia ossos cobertos de cera.”

Quando escreveu seu poema em 1819, Keats havia perdido seu irmão para a tuberculose e conhecido Fanny Brawne, seu grande amor. O turbilhão de emoções que o cercavam naquela época – amor, luto, desesperança – foram de grande influência para o seu trabalho, trabalho esse dentre o qual encontra-se A Bela Dama sem Piedade (La Belle Dame Sans Merci, no original). O poema conta a história de um cavalheiro que, enquanto vagava pela floresta, encontra uma fada que o enfeitiça. Ao segui-la, o cavalheiro acaba dormindo e sonha com avisos sobre aquela Bela Dama, mas, ao acordar, se vê sozinho. Ele já estava apaixonado demais para conseguir se desvencilhar daquele amor, então, segue vagando sozinho, desesperado para encontrá-la ou se livrar de seu feitiço.

Quando a enfermeira Amy conheceu o Sr. Carey pela primeira vez, o definiu como um homem bonito, mas um tanto cadavérico, e até se perguntou se essa afirmação fazia sentido. Conforme as investigações de Poirot evoluem, o caso entre ele e a falecida Sra. Leidner é descoberto, dando um novo significado para aquela falsa cortesia entre os dois.

Richard Carey a princípio ignorava Louise, mas ela não aceitava tal falta de atenção e buscou fazer com que ele se apaixonasse por ela de qualquer forma. Essa paixão entre os dois o transformara naquele cavalheiro de Keats, que mesmo sem uma certeza sobre a eficácia, passou a seguir sua vida longe do amor daquela que o encantou, porém, continua com o feitiço dela em si, como dito por Poirot ao concluir qual a real intenção de Carey:

“ – Ele realmente odiava a sra. Leidner. Mas por que a odiava?

– Já falei de mulheres que possuem magia catastrófica. [...] E ele... não foi capaz de resistir a ela. Essa é a verdade sobre o terrível estado de tensão nervosa que ele tem suportado. É um homem dilacerado por duas paixões contrárias. Amava Louise Leidner... sim, mas ele também a odiava. Odiava-a por acabar sua lealdade para com o amigo. Não há maior ódio do que o de um homem induzido a amar uma mulher contra a sua vontade.”

La Belle Dame Sans Merci, de John William Waterhouse (1893)

A Bela Dama sem Piedade é um trabalho diferente de todos os outros de John Keats, remetendo o leitor às antigas baladas medievais. Porém mesmo tão distinto, não deixa de possuir os elementos tão presentes nas obras do poeta, como amor, beleza e solidão. 

Criando um tipo de femme fatale que se tornou inspiração para a literatura e pintura, e apesar da clara inspiração de Christie na criação de Louise Leidner, ao final do livro o leitor pode interpretar que o verdadeiro ser mítico que enfeitiçou alguém até a morte não foi aquela mulher definida como tal, e sim seu marido, pois mesmo depois de anos e com uma nova identidade, ele manteve aquela jovem mulher junto de si, a ponto de literalmente enlouquecê-la. Louise não era nenhuma santa, provocava intrigas desnecessárias entre os moradores, cutucava as pessoas para entenderem que ela era quem estava no comando de todos ali e, como a fada do poema, encantava a algumas pessoas apenas porque queria. Mas como em muitos outros cenários, se tornou a principal culpada de um destino trágico que não desejava. Louise esperou anos até encontrar um novo amor depois do seu primeiro casamento. Teve medo das ameaças, mas acreditava que talvez dessa vez fosse diferente. Porém, assim como o final que John Keats criou, já era tarde demais.

Referências 




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Carolina Pereira
Santista, 20 anos, estudante de psicologia e de filosofia. Amante de idiomas, café, mar e tudo o que Edgar Allan Poe tenha colocado no mundo. De vez em quando tem vontade de fugir e viver como um hobbit.

Comentários

  1. Que costura curiosa! Muito legal. Acho que esse foi o primeiro Agatha que li há mais de 20 anos então lembro pouco da história em si, mas o clima da trama ficou na minha memória. Deu vontade de reler!

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