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Antes do amanhecer: entre o belo e o real


Antes do amanhecer (Before Sunrise) é o primeiro filme da trilogia Before, a qual nos apresenta, desde o primeiro momento, o encontro de dois personagens que seguiriam caminhos diferentes até se conhecerem a bordo de um trem. Jesse (Ethan Hawke) é um jovem estadunidense que estava voltando para os Estados Unidos, e Celine (Julie Delpy), uma jovem estudante francesa que estava a caminho da França. Inicialmente, o primeiro estágio desse "relacionamento" se baseia apenas em estarem se conhecendo. O primeiro diálogo se inicia a respeito de uma briga interpretada por outro casal presente no trem e, desde então, o tal questionamento se soma a outras questões que logo constroem uma "conexão" entre os personagens, trazendo assuntos que se interligam entre o belo e o real.

O primeiro filme da trilogia foi inspirado em uma história verídica, baseada e vivida pelo próprio cineasta Richard Linklater. Amy Lehraupt fora a musa inspiradora do diretor, que anos depois nos concedeu Antes do amanhecer. Celine e Jesse seguiriam rumos opostos, mas o tempo curto que tiveram não saciou o total anseio por mais daqueles instantes. Sendo ele um jovem texano em um trem na Europa Oriental, e ela uma jovem parisiense voltando pra casa após ter feito uma visita a sua vó em Budapeste, Jesse convence Celine a desembarcar em Viena, para que ambos tivessem um pouco mais de tempo para aproveitar. 

A obra narra o encontro com o inesperado, o descobrimento do outro e o deslumbramento da juventude. O curto período de conversa nos revela uma atração mútua de duas pessoas que se conheceram em apenas algumas horas, porém, pouco se sabia que este primeiro encontro traçaria uma linha do tempo e marcaria a realidade e o futuro de ambos.

"Queria ter te conhecido antes. Gosto de conversar com você."

O filme não segue um roteiro moldado por um padrão já existente em diversos outros clichês românticos. A obra nos apresenta duas pessoas diferentes que em uma única noite deixam notórias suas visões, crenças e, em destaque, suas realidades. Antes do amanhecer é um amontoado de diálogos que abordam uma versatilidade de assuntos, fluindo de forma natural e sem deixar de lado suas visões e o que ambos acreditam. A linha do tempo dos filmes seguintes é proposital, nos mostrando que cada um é uma janela para o palco da vida, incluindo as possibilidades e decepções.

Viena pode ser vista como um terceiro personagem, quando apresentada em grande parte do filme, acompanhando os diálogos do casal e sendo centrada por suas locações e a beleza que as fotografias do cenário entregam. O filme não nos promete o destaque de algo grande, mas sim a entrega de uma simples premissa, engajando apenas na conexão do sentir do público para com o filme, enquanto somos levados juntamente com os personagens de forma quase despretensiosa. O público é visto como outro personagem, quando este se envolve com as conversas narradas e as reflexões que pedem espaço para serem vistas e ouvidas.


A força do filme reside em momentos de calmaria e na troca de olhares entre ambos, mas também alia o ar romântico com a beleza do espaço, abordando com naturalidade e normalidade o tal encontro, como se fosse mais um dia comum. Ao entrar em sintonia com o filme, somos conduzidos por um único anseio: o de não querer chegar ao fim daquela noite. Somos convidados a querer adiar o clímax, sentindo apenas um sofrimento crescente com a ideia da despedida; porém, o que já sabemos desde o início do encontro é que esse romance, que se fortifica em poucas horas, já estava fadado ao fim.

Seguindo "roteiros” diferentes, a realidade do diretor Linklater não fora a mesma do filme. Richard e Amy se conheceram em uma loja de brinquedos no outono de 1989, na Filadélfia; ambos passaram a madrugada juntos e o cineasta dissera a Amy que ainda faria um filme sobre aquele momento e suas sensações. Com o passar dos anos, ele já deixava claro, ao falar sobre a inspiração do filme, que se tratava do que havia vivenciado, o que serviria também como uma forma de entrar em contato com Amy, já que eles não mais se encontraram. Assim sendo, o diretor possuía esperanças de que a obra poderia entregar um reencontro para ambos, mas o tal anseio não se concretizou, pois, pouco antes do lançamento da obra, Amy falecera em decorrência de um acidente de moto aos 24 anos, em 1994.

A obra não deixa de ser lançada no ano seguinte, e então trilogia continua a narrativa e apresenta o casal em décadas e fases diferentes. O impacto que isto nos causa é o de seguirmos com eles através de seus diferentes momentos e caminhos percorridos em três etapas de suas vidas, sendo estas:
  1. O que poderia ter sido;
  2. O que deveria ter sido;
  3. O que é. 
Antes do Amanhacer passa longe de entregar um romance com o tal final “felizes para sempre” e os clichês abordados em tantos outros. A trilogia segue uma linha realista, carregada pelos diálogos existencialistas, filosóficos e poéticos.

A sensação do encontro com o inesperado é o primeiro acerto da obra, entrelaçando nesse momento uma mesma conexão do filme com o público, que se entrega ao anseio de tal possibilidade. A apresentação dos livros que ambos estavam lendo é outro detalhe usado pra naturalizar a situação; os assuntos aparentam mudar juntamente com o cenário. É notório que Celine e Jesse possuem diferenças, mas isso não deixa de lado a entrega de ambos. A presença do diálogo é o que nos aproxima dos personagens, sendo estes projetados e idealizados por eles mesmos e por aqueles que os veem com seus olhares e suas ideias, visando suas semelhanças e diferenças.

Jesse pode ser visto por muitos como um arrogante e cético, enquanto Celine é vista com uma disposição maior para acreditar nas pessoas e no amor. Formamos opiniões que se diversificam, feitas pelos diálogos arquitetados e ditos pelo casal, sendo isso o famoso realismo do cinema, o qual é e deve ser feito de forma natural, em que o público acompanha e se sente parte daquele mesmo universo e o observa junto de sua realidade.


A tensão entre o pouco tempo que lhes restam é o que nos prende ao filme, o querer saber das poucas horas que ainda teriam. Richard não limitou seus personagens com o conceito de que um é bom e o outro ruim, não existe essa polaridade, e sim uma fuga desse “padrão”, abordando apenas um desenvolvimento entre duas pessoas como um casal, mas também no individual de cada um, passando por suas fases de descobertas e mudanças, sendo estas traçadas de forma crua e humanistas no decorrer da trilogia e das etapas do relacionamento. É possível perceber a imersão dos atores em seus personagens, o que torna mais real a química entre o casal que, apesar da beleza e de suas semelhanças, também apresenta discordâncias em temas filosóficos e do cotidiano, nos aproximando de suas essências.

Ao final do primeiro filme, Viena parece se despedir depois de ambos terem seguido rumos diferentes; os ambientes por onde passaram são vistos com outro olhar, atuando como um elemento de despedida e perdendo a magia que ali fora deixada nos caminhos do casal.

“Se existe qualquer tipo de magia neste mundo... deve ser na tentativa de entender alguém, compartilhar algo.”

A idealização é criada no primeiro filme com a visão do que o relacionamento deveria ser. Perto do fim e da despedida, Jesse ressalta: “Estamos de volta ao tempo real”, e então, voltamos com os personagens às experiências da realidade. Antes do amanhecer é o início desse ciclo, o primeiro passo e a primeira etapa para o casal e para a trilogia que se complementam através do tempo.

Uma cabine de escuta ao som de Come here, de Kath Bloom; um parque, um cemitério e tantos outros caminhos por onde passaram, sustentaram a beleza e a verdade de duas pessoas, essas que demonstram que não são os lugares que emprestam a poesia, mas a conversa que envolve cada lugar.

Referências




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Lyriel Damasceno
Amante da arte, cinéfila na maior parte do tempo e leitora assídua nas horas vagas. Aspirante a escritora que transborda na poesia das canções de Taylor Swift e sofre incondicionalmente por Crepúsculo, Antes do Amanhecer e Sociedade dos Poetas Mortos. Suas principais inspirações se fazem presentes nas escritas de Jane Austen, na poesia de Emily Dickinson e na melancolia de Clarice Lispector.

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