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O que lia Vincent van Gogh?


Vincent van Gogh (1853-1890), nascido na aldeia holandesa de Groot Zundert, no dia 30 de março de 1853 e primogênito dentre seis filhos, desde o século passado figura na lista dos grandes gênios da arte ocidental, título que o confere como um daqueles nomes que dispensam apresentações. Seus trabalhos já fizeram parte de transações milionárias e hoje encontram-se nos museus mais conceituados da Europa e América do Norte. Dentre suas obras mais conhecidas e reproduzidas, destacam-se A noite estrelada (1889), Os girassóis (1888) e Amendoeira em flor (1890), além das dezenas de autorretratos. Apesar de tudo isso, é fato conhecido que vendeu apenas uma obra em vida.

Brigas familiares, decepções amorosas e angústias infinitas marcaram os curtos anos de vida do pintor maldito, porém, para muito além disso, boa parte de sua existência foi totalmente dedicada ao seu lado artístico, já que desenhava e consumia arte desde muito jovem. Após a desilusão de não ter se encontrado na profissão de professor (experiência que teve brevemente em Ramsgate, Inglaterra) e ter ainda menos sucesso no sagrado ofício da Igreja (uma influência que provavelmente vinha da admiração que tinha pelo seu pai, que era pastor), decide finalmente assumir-se como o artista que almejava ser, e seria essa decisão que guiaria todos os rumos da sua vida dali em diante. Sua emocionada entrega, expressa em uma carta enviada em 1880 ao irmão mais novo, Theodorus van Gogh, foi o suficiente para fazer Théo - apelido carinhoso do irmão - apostar toda a sua confiança na habilidade de Vincent. Théo era comerciante de arte - legado da ligação da família Van Gogh com o ramo - e apoiou financeiramente Vincent durante toda a sua carreira como artista. Esse laço de confiança e amor os aproximou e suas correspondências se tornaram ainda mais frequentes.

“Estava abstraído, preocupado, inquieto por uma ou outra razão, mas a gente se refaz! O sonhador às vezes cai num poço, mas dizem que logo ele se reergue.”

Tais correspondências foram reunidas em algumas coletâneas famosas. A que temos no Brasil é distribuída pela editora L&PM sob o título Cartas a Théo, que conta com as duzentas cartas mais importantes enviadas ao irmão, de acordo com os editores da edição publicada em 2002. Os escritos são profundamente íntimos. Neles, conhecemos particularidades que emocionam e trazem maior compreensão sobre sua própria personalidade e visão de mundo. No decorrer das páginas, acompanhamos Van Gogh tomar gosto pela pintura ao ar livre, falar sobre os grandes impressionistas - os quais admirava grandemente - e muitos outros artistas, o desenvolvimento de suas paixões e frustrações, suas amizades, o encanto pelas cores e, ao que interessa a este texto, suas leituras.

Vincent era um leitor voraz, e essa é uma característica que merece o devido reconhecimento. Isso porque, tanto em vida quanto depois de sua morte, o artista foi sistematicamente desumanizado. Além da beleza de suas obras e da falta de sucesso durante sua passagem na terra, o terceiro “fato” mais difundido é de que era louco e perigoso, o que dá a entender que seus episódios criativos vinham de um lugar misterioso e talvez até transcendental. Isso não é verdade. Vincent estudava (e muito), observava e tinha opiniões sobre as coisas que o cercavam. Em meio aos vários episódios de humilhação e hostilização por parte das pessoas com quem convivia, ele encontrava algum consolo na arte plástica e na literatura, duas coisas que considerava igualmente importantes, opinião registrada em uma das cartas ao irmão:

“[...] admita também que o amor aos livros é tão sagrado quanto o amor a Rembrandt, e inclusive acredito que os dois se completam.”

Assim sendo, trazemos aqui alguns títulos e autores citados por Vincent nas cartas que temos acesso no citado livro da L&PM. De acordo com a nota dos editores, nas correspondências são citados “quase duzentos pintores, arquitetos, escritores e filósofos importantes na sua formação”, o que torna provável que algumas obras e autores fiquem de fora neste texto.

Dentro da biblioteca de Vincent


Já foi dito que Vincent era um pintor extremamente prolífero - alguns sites falam em mais de duas mil obras produzidas. Daí poderia se tirar uma conclusão do porquê era tão talentoso, já que, segundo o ditado popular, a prática leva à perfeição. Mas esse não foi o único dos elementos responsáveis pela notável habilidade do artista. Entre as suas leituras rotineiras, ele cita algumas de críticas de arte.

Charles Blanc (1813-1882) é um dos nomes citados repetidas vezes em suas cartas ao irmão. O glossário do livro traz o dado de que Blanc produziu “inúmeros livros sobre arte”. Na primeira vez que foi citado, Vincent fazia referência a um trecho de uma de suas obras, Os artistas de meu tempo, enquanto refletia sobre o uso de cores numa composição, dando especial ênfase no uso de “cores pobres”, expressão encontrada no trecho que transcreveu. Sua posição é de crítica, mesmo que breve e reticente - adjetivos que são bem característicos de sua escrita.

Autorretrato de Van Gogh 

Eugène Fromentin (1820-1876), por outro lado, é citado pelo menos quatro vezes por Vincent e parece ter sido uma grande referência para ele na teoria artística, além de figurar em uma curiosa lista de nomes de artistas que ele particularmente admirava em 1874. Em 1885, Vincent informa ao irmão que leu “com muito prazer” a obra Os mestres de outrora, de Fromentin, informação que é seguida de uma longa reflexão sobre questões técnicas de apreciação da arte e os seus dilemas internos sobre pintores específicos. Ademais, essa obra é citada parágrafos depois de ter mencionado Blanc.

História e filosofia também eram temas que interessavam a Vincent. Um dos nomes mais citados em suas cartas é o de Jules Michelet (1798-1874), um historiador liberal que carregava os ideais da Revolução Francesa. A primeira menção a ele se encontra em uma carta muito breve e direta de 1875. Nela diz: “Vou me separar de todos os meus livros de Michelet, etc., etc. Faça o mesmo”. E esse é todo o texto, sem tirar nem pôr. O pedido de Vincent ao irmão é reforçado na carta que vem logo em seguida, enviada no mês seguinte, que começa com a seguinte indagação: “Você seguiu meu conselho, separou-se dos livros de Michelet, Renan etc.? Acho que isto o deixará mais tranquilo”.

Apesar desse conselho um tanto imperativo, o remetente segue mencionando Michelet em diversas cartas subsequentes, chegando a descrever suas obras como aquelas que causam encanto e que são escritas “de coração, na simplicidade e na pobreza de espírito''. Isso indica que, primeiro, Vincent não detestava o autor. Pelo contrário, o admirava e estudava seriamente seus escritos. Segundo, a relação com esse autor é, portanto, conflituosa. Ele o admira, mas, por algum motivo, se viu diante da necessidade de se afastar temporariamente.

Essa segunda observação pode encontrar alguma justificativa no fato de que Vincent nasceu em um lar protestante, e essa fé o levaria a tentar a vida como missionário - o que já vimos que não deu certo. Michelet, por sua vez, como um intelectual gestado sob a filosofia iluminista, fazia críticas bastante severas à Igreja. Um bom exemplo é sua obra A feiticeira (1862), no qual o pesquisador analisa a situação da mulher julgada por feitiçaria como vítima de um sistema de opressão investido pela Igreja medieval. Vale lembrar que os intelectuais europeus da chamada Era Contemporânea - com início marcado pela própria Revolução Francesa - foram os responsáveis por denominar todas as “eras” e “idades” que conhecemos na historiografia ensinada a nós. Aliás, eles foram os únicos que deram nome à própria época em que viviam. Viam a si mesmos como os representantes de uma era de rompimento com antigas tradições definidas como atrasadas e supersticiosas, daí a necessidade de se chamarem de “contemporâneos” - o estágio mais avançado de “evolução”.

“Tenho uma paixão mais ou menos irresistível pelos livros e preciso me instruir continuamente, estudar, se você quiser, assim como preciso comer meu pão.”

Vincent, enquanto homem de seu tempo, parece compartilhar de alguns desses ideais. Há uma passagem na qual ele diz estar estudando livros que estão ao seu alcance. Dentre os nomes dos livros, encontram-se a Bíblia e A revolução francesa, obra de Michelet, sem ordem de importância. Em outro momento, ele faz uma afirmação bastante humanista sobre a ideia de Deus: 

Mas involuntariamente sou levado a crer que a melhor maneira de conhecer Deus é amar muito. Ame tal amigo, tal pessoa, tal coisa, o que quiser, e você estará no bom caminho para depois saber mais, eis o que eu digo a mim mesmo. Mas é preciso amar com uma grande e séria simpatia íntima, com vontade, com inteligência, e é preciso sempre procurar saber mais, melhor e mais. Isto conduz a Deus [...] Procure entender a fundo o que dizem os grandes artistas, os verdadeiros artistas, em suas obras-primas, e encontrará Deus nelas. [...] Depois, leia simplesmente a Bíblia e o Evangelho: isso dá o que pensar, muito em que pensar, tudo em que pensar.

É evidente também que Vincent lia obras consideradas “progressistas”, no sentido localizado em sua época. Além de Michelet, Vincent menciona (embora apenas duas vezes e muito rapidamente) ter lido algo da escritora estadunidense Beecher Stowe (1811-1896) que, aliás, é erroneamente tratada no masculino no glossário do livro. Vincent não cita qual ou quais das obras ele leu, mas Stowe é mundialmente conhecida por A cabana do pai Tomás (1852), livro bastante influente no movimento abolicionista. Embora não elabore as ideias, em uma carta escrita no período entre 1885 e 1886, ele demonstra esperança em um futuro melhor: “Estamos no último quarto de um século que terminará numa colossal revolução. Certamente não conheceremos os tempos melhores de ar puro e de renovação de toda a sociedade após estas grandes tempestades. [...] E que digamos: vivemos na angústia, mas as gerações futuras poderão respirar mais livremente". Nesse mesmo trecho, ele cita (no contexto de autores que, em sua opinião, são precisos em suas respectivas análises da realidade) Émile Zola (1840-1902), um romancista que denunciou em suas obras - sendo Germinal (1885) a mais conhecida e consagrada - a exploração vivida pela classe trabalhadora no período.

Jules Michelet

Aproveitando a deixa de Zola, outro escritor querido por Vincent que também tratou de expor as misérias vividas pelos proletários foi Victor Hugo (1802-1885), o republicano estadista responsável pelo célebre Os miseráveis (1862). Vincent, em suas cartas, menciona a obra O ano terrível (1872) e O último dia de um condenado à morte (1829), do mesmo autor.

O Naturalismo e o Realismo, afinal, ganham destaque na prateleira de romances. A obra O imortal (1889) do francês Alphonse Daudet (1840-1897), é descrita como um texto “muito bonito, mas bem pouco consolador”. Guy de Maupassant (1850-1893) é bastante citado nas reflexões do remetente, que descreve as paisagens criadas pelo autor como “ricas e geniais”. Segundo suas cartas, deste mesmo autor ele leu Pierre e Jean (1888) e Senhor Parent (1885), além de demonstrar interesse no então recém lançado Forte como a morte (1889). Outros como Gustave Flaubert (1821-1880), Èmile Souvester (1806-1854), Honoré de Balzac (1799-1850), e os russos Ivan Turguêniev (1818-1883) e Leon Tolstói (1828-1910) são também devidamente mencionados nas longas listas de leituras favoritas localizadas nas citadas correntes.

Se você passou por todas essas indicações que Vincent provavelmente lhe faria e sentiu falta do romântico e da poesia, fique tranquila. O que não falta nas cartas de Vincent são nomes de poetas, dramaturgos e cronistas. Se pretende ler Um conto de Natal em homenagem ao fim do ano, saiba que Charles Dickens (1812-1870) também encantou Vincent em diversas partes de sua vida. Já lá por 1883, o pintor maldito lia os versos ingênuos e parnasianos de François Coppée (1842-1908) o qual ele descreveu como um “destes verdadeiros artistas que dão o sangue”. Provavelmente essa descrição vinha do fato de que os poetas parnasianos se importavam muito com as formas e métricas de um poema, visando a perfeição muito mais que os sentimentos e as subjetividades.

“Sempre me parece que a poesia é mais terrível que a pintura, embora a pintura seja mais baça e afinal mais chata. E o pintor, afinal, não diz nada, ele se cala, e eu ainda prefiro isto.”

Em 1888, ele conta empolgado que leu um artigo sobre figuras italianas importantes do Renascentismo do século XIV, dentre eles, os célebres poetas Dante, Petrarca e Boccaccio. Mas suas opiniões mais fortes estão com o dramaturgo inglês William Shakespeare (1564-1616). Em Rei Lear (1606), Vincent defende o personagem Kent como “nobre e distinto”, e logo em seguida tece elogios ao autor: "Meu Deus, como é belo Shakespeare. Quem é misterioso como ele? Sua palavra e sua maneira de fazer equivalem a um pincel fremente de febre e emoção. Mas é preciso aprender a ler, como é preciso aprender a ver e aprender a viver”. Ao refletir sobre a luta entre a natureza manifesta no mundo e o pintor que quer representá-la e encontra resistência no processo, ele usa o termo shakespeariano Taming the shrew que, segundo ele, significa "vencer quem resiste, pela tenacidade, por bem ou por mal". Mais adiante, ele reconhece, através do mesmo escritor, a atemporalidade que transforma uma obra em um clássico: “Mas o que me toca, assim como certos romancistas de nossa época, é que as vozes dessas pessoas, que no caso de Shakespeare nos chegam de uma distância de vários séculos, não nos pareçam desconhecidas. É tão vivo que acreditamos conhecê-las e vê-las”.

Muito além da tragédia


O amor pela arte e pela literatura não seriam o suficiente para apagar todas as angústias de Vincent. Próximo ao Natal de 1888, ocorreu o infeliz episódio de automutilação que o levou a um hospital, onde pintou e pintou freneticamente. Depois, seguiu atormentado por alucinações e angústias psíquicas, o que o obrigou novamente a se instalar em uma instituição, o asilo Saint-Paul de Mausole, em Saint-Rémy. Ao sair de lá, reencontra Théo, então casado e pai de uma menina. Essa pequena passagem de alegria não poderia prever a tragédia final de Vincent: dia 27 de julho de 1890, nos trigais de Auvers, ele decide tirar sua própria vida.

A bala alojou-se na virilha, fazendo-o se arrastar em silencioso sofrimento até a pensão onde se instalava. Percebendo que havia algo de errado, um médico - Dr. Gachet - foi chamado, mas o cenário não era favorável: a bala não poderia ser retirada. Théo o encontra mais de um dia depois já muito debilitado e decidido a partir. A noite chega após um dia inteiro de conversa entre os irmãos. Théo - recusando-se a sair de perto de Vincent - deita ao seu lado e o vê murmurar "Quero ir embora" às uma e meia da manhã. Vincent partiu logo em seguida. Théo morreria alguns meses depois, tomado pela dor do luto e por uma paralisia.

Esses acontecimentos, apesar de tristes e desoladores, precisam ser recordados. Não pelo simples apelo emocional, mas para refletir que tipo de imagem construímos e reproduzimos de pessoas que foram descritas como “excêntricas”, “loucas” e “melancólicas” no passado e no presente e suas potencialidades. O objetivo aqui não é de promover algum diagnóstico - Vincent com certeza não precisa de mais um rótulo depois de morto -, mas sim de reforçar que ele precisava de uma ajuda que não foi possível em seu tempo. Théo foi, provavelmente, seu único confidente, o único que via o irmão como ele era: um ser humano. Que trabalhava - e muito -, tinha gostos, sentimentos e necessidades. Que amava os livros, assim como eu e você. Essa conexão deve servir como um dos espaços de potências que aproximam e criam novas formas de existir, em contraponto às sucetivas tentativas de apagamento e exclusão.

Referências




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Comentários

  1. lindo texto <3 trouxe detalhes muito importantes da vida do pintor que até então desconhecia. muito bom saber que além de ótimo artista tinha um excelente gosto para a literatura.

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