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Tenente Ripley e o protagonismo feminino em Alien


Apesar de ser reconhecido majoritariamente como ficção científica, Alien, o Oitavo Passageiro (1979) é também um dos grandes clássicos do cinema de terror. Diferentemente dos predecessores de ambos os gêneros, o filme ganhou notoriedade por inovar o protagonismo feminino através da personagem Ellen Ripley, interpretada na franquia por Sigourney Weaver.

À base da estação espacial Nostromo, sete tripulantes viajam de volta à Terra com um imenso carregamento de minério quando identificam sinais de rádio enviados de um planeta ainda não mapeado. Sob ordens da companhia a qual estão vinculados, a Weyland-Yutani, o capitão os lidera até a superfície do pequeno LV-426, cujo diâmetro é de cerca de 1.200km, a fim de atender ao chamado. A aventura começa a partir do momento em que um dos tripulantes entra em contato com uma criatura alienígena desconhecida e, desrespeitando todos os protocolos, retorna à nave sem passar pelos procedimentos de quarentena. A criatura desconhecida, posteriormente denominada por Ripley de xenomorfo, se instala pelos dutos de ar e pouco a pouco vai aniquilando toda a tripulação, com exceção, é claro, de Ellen.

Grande parte dos filmes de terror e ficção científica concebidos até então raramente trazia personagens femininas que apresentassem destaque ou sequer alguma autonomia, em geral, ocupando espaços de subserviência, fragilidade e subalternidade, essencialmente dependentes de uma figura masculina que se projeta sobre elas como uma autoridade ou uma espécie de salvador. Nesse cenário, Ellen Ripley surge como uma grande potência, carregada de coragem e determinação. Ripley não é uma donzela em perigo no espaço, mas uma sobrevivente, uma guerreira.

Quando concebeu a personagem, o diretor Ridley Scott, a idealizou como um homem, de forma que a troca por uma mulher foi uma escolha pensada não para que a protagonista se tornasse um ícone feminista, mas propositalmente para que o filme se consagrasse como um marco na história cinematográfica ⎯ objetivo que de fato se concretizou.

Alien: o oitavo passageiro (1979)

Como uma mulher altiva e sagaz, ela lida com as adversidades de forma magistral, lutando todo o tempo para salvar a si mesma e tentando, bravamente, tirar a todos daquela situação crítica. É uma protagonista excepcional, uma mulher de muita valentia que em nenhum momento visa ocupar um espaço masculino ou se parecer com a versão feminina de um herói viril, demonstrando ao espectador, aos poucos, sua própria capacidade de sobrevivência de forma autônoma, ou seja, sem a dependência de qualquer figura masculina.

Essa emancipação ocorre de forma gradual, especialmente no primeiro filme. Ao contrário do que muitos pensam, é importante lembrar que Ripley não é apenas uma mera tripulante, ela ocupa uma posição de comando na hierarquia da nave, regularmente sendo referenciada por seus colegas como Tenente Ripley. Vale reforçar sua posição, por mais que muitas vezes ela seja esquecida ou ignorada, pois lembrá-la é essencial para viabilizar o reconhecimento de sua ascensão como protagonista feminina. Mais de uma vez é desautorizada ou tem suas ordens desacatadas por ser mulher, o que ocasiona, inclusive, a entrada do ser que dizima a tripulação a bordo da Nostromo.

Ripley é uma protagonista forte e inteligente e, apesar de ser mulher, em nenhum momento sua força ou ações caem no estereótipo da protagonista hipersexualizada, um arquétipo largamente difundido no cinema até então. Ripley apresenta uma força que não é, de forma alguma, vinculada a sua sexualidade. Em momento algum há provocação ou apelação sexual para que sua persona se estabeleça como uma figura central de liderança e poder e, ainda assim, é corajosa e firme sem comprometer sua feminilidade.

No segundo filme da franquia, Aliens, O Resgate (1986), o espectador tem a chance de conhecer um pouco mais sobre essa mulher, sobre como costumava ser sua vida pessoal e o que sacrificou dela, tirando-a da posição de tripulante e a apresentando ao público de forma mais humana. Ela é encontrada vagando pelo espaço no único módulo que restou da Nostromo e, logo após finalmente acordar, descobre ter passado cerca de 57 anos nesse estado. É quando se toma conhecimento também de que Ripley deixou para trás uma filha de 10 anos, já falecida, com a qual ela jamais conseguirá retomar contato.

Na ocasião, Ripley passa por um inquérito para esclarecer à Companhia, afinal, o que aconteceu à Nostromo, destruída por uma ordem executada por ela mesma. A Weyland-Yutani não consegue compreender as motivações da Tenente para destruir um equipamento tão valioso como aquele, incluindo todo o carregamento de minério que trazia à Terra. Após diversas tentativas de esclarecer o ocorrido, Ellen acaba injustiçada, perdendo seu direito de executar suas funções como comandante de voo e descobrindo, com assombro, que o pequeno LV-426 agora é uma colônia que abriga cerca de vinte famílias. Quando as coisas começam a dar errado por lá, ela então é a primeira pessoa cogitada para compor uma expedição ao local, e por mais que tente violentamente se opor, acaba se propondo a ir, sobretudo porque além de contar com seu instinto de sobrevivência e os conhecimentos técnicos de sua função, agora Ripley carrega uma bagagem extraordinária, que supera qualquer treinamento: o fato de ter combatido e sobrevivido a uma daquelas terríveis criaturas.

Alien: O Resgate (1986)

Lá, o esquadrão enviado descobre que a única sobrevivente é uma menina, com idade próxima a que sua falecida filha teria à ocasião em que a deixou para seguir com a Nostromo. Essa aproximação traz à tona um tópico que já havia sido visitado no filme: a maternidade. Não a maternidade como normalmente é implicada às mulheres, mas a maternidade como um instinto de sobrevivência e proteção que, apesar de claramente representada, não a define ou a limita.

Assim como o primeiro filme se consagra também como um filme de terror, Aliens já se apresenta sob a forma de um filme de ação, proporcionando ao espectador cenas preciosíssimas, como, por exemplo, a cena em que Ripley monta em uma empilhadeira para confrontar uma criatura que possui múltiplas vezes o seu tamanho, criatura essa que representa o xenomorfo gerador de novos ovos, ou seja, uma gigantesca Rainha Alien.

Em uma mudança de cenário, Ripley não consegue realizar seu retorno como planejado e uma situação peculiar a faz ser lançada a um planeta isolado cuja utilidade é ser uma colônia penal, lugar habitado exclusivamente por homens que cometeram as mais diversas atrocidades, desde assassinatos em série a estupros, e é assim, com essa nova proposta de luta por sobrevivência, que se inicia o terceiro filme da franquia, Alien 3 (1992). Mais uma vez, Ellen descobre ser a única sobrevivente, e para lutar por sua vida e integridade física naquele lugar, precisa anular sua feminilidade, forçosamente se vestindo e se comportando como um homem. Em contrapartida, essa é a primeira vez em toda a trilogia que Ripley de fato interage sexualmente com uma figura masculina, e mesmo isso não é feito de forma erotizada, buscando exprimir apenas a vontade e necessidade física de um ser humano em não se sentir só.

Apesar de se permitir estar nessa relação de troca mútua, na qual ambos ocupam espaços iguais e compartilham interesses, Ellen Ripley parece ser uma mulher condenada a ser só, de todas as formas, como se essa narrativa, indiretamente, desse voz à ideia de que mulheres inteligentes e independentes estarão sempre destinadas à solidão.

Alien 3 (1992)

Ao fim do terceiro filme, Ellen descobre estar gerando em si uma nova Rainha Alien, o que culmina no seu sacrifício em prol do bem maior, que é evitar que a Weyland-Yutani coloque as mãos naquele ser e o utilize para quaisquer fins. Paira uma nuvem sobre toda a trilogia Alien que tange essencialmente dois tópicos, estupro e maternidade, e do início ao fim isso é colocado ao espectador de forma muito sutil.

Ripley foi invadida, gera em si um ser que não provém da própria vontade, e ainda que nela exista o instinto maternal, em momento algum hesita sobre a necessidade de tirar a própria vida, ou tirar de seu corpo aquele ser que é fruto dessa invasão. O mesmo ocorre desde o primeiro filme, na cena em que, após ser sufocado e ter seu corpo invadido por uma criatura alienígena estranha, Kane tem sua caixa torácica explodida pelo processo de concepção do novo xenomorfo. O próprio ato de ser sufocado é, por si só, uma alegoria ao estupro, o que chocou milhares de espectadores que sequer eram capazes de compreender seu choque, em especial por esse lugar de vulnerabilidade quase sempre ser ocupado por uma mulher, o que, de alguma forma, tornou-se banal. Entretanto, não havia no cinema, até então, qualquer cena em que um homem fosse brutalmente violentado como Kane, o que direcionava a discussão em questão ao corpo masculino, ato que é intrinsecamente revolucionário.

A principal trilogia é dirigida por três diferentes diretores, Ridley Scott, James Cameron e David Fincher, respectivamente, que apesar de deixarem evidentes suas particularidades, conseguiram manter uma incrível coesão entre os três filmes, em nenhum deles sacrificando nada daquilo que é essencial à figura de Ripley como protagonista feminina.

Da parte de Ridley Scott, tivemos uma tentativa de repetir a dose nos filmes recentes da franquia (Prometheus e Alien: Covenant), mas esta foi, infelizmente, falha. Poucas protagonistas conseguiram ocupar um espaço como o que Ellen Ripley conquistou no imaginário popular, e não há uma só pessoa que não conheça Sigourney Weaver graças a ela. Seu carisma e força foram imbatíveis para que Ripley se tornasse uma das maiores figuras do cinema quando o assunto é força e protagonismo feminino, espaço no qual permanece invicta mesmo tantas décadas depois.

Referências


Comentários

  1. Sinopse perfeita, que esmiúça além da simples visão da fita e nos remete ao mundo profundo das conceituações e dos estereótipos quotidianos, contra os quais lutam as mulheres. Parabéns!

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  2. Reassisti recentemente a trilogia e esses pontos realmente se destacam. Acho a Ripley um personagem espetacular em sua concepção e entrega ( resultado do talento sensacional da Sigourney Weaver). Adorei a análise!

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