Com sua atuação inovadora, o profícuo cineasta dirigiu mais de cinquenta filmes ao longo de aproximadamente cinco décadas de carreira, sendo o ápice de seu sucesso a partir do final da década de 1950 e início da década de 1960, quando se consagrou de vez como esse grande nome e referência no cinema. Até então, era considerado um produtor cinematográfico mediano e apenas comercial. Essa guinada na percepção que se tinha de Hitchcock se deve muito ao cineasta francês François Truffaut, um dos fundadores da Nouvelle Vague, e grande fã da obra de Hitchcock, a quem, em uma série de entrevistas que exploram e dissecam sua obra, ajudou a desconstruir a visão superficial que os críticos haviam formado sobre o cineasta britânico, que gostava de fazer um aparição especial (cameo) como figurante em seus filmes sempre que tinha a oportunidade.
Hoje, seu nome estampa o rol dos maiores diretores da história do cinema, não apenas de suspense e terror, mas no geral, e é fato que sua obra contribuiu para a desconstrução de alguns estereótipos em relação a esse gênero, visto por muito tempo como um fútil entretenimento desprovido de profundidade. Hoje, o termo "hitchcockiano" descreve esse estilo muito próprio desenvolvido por ele e que influenciou e continua influenciando gerações de cineastas até os dias de hoje.
“Seus filmes arrancavam palmas, criavam filas de dar volta no quarteirão da sala de cinema, arrepiavam e impressionavam pelas técnicas inovadoras e as histórias bem montadas tão exclusivas. Ninguém antes usara uma câmera em primeira pessoa (quando a cena é a visão de um personagem); ou desenvolvera uma história pela visão apenas dos personagens.”(Rolling Stone)
Em sua vasta filmografia, há alguns filmes adaptados tanto de obras literárias inspiradas em fatos reais, quanto de notícias que o cineasta costumava extrair dos jornais, sabendo que a arte imita a vida e que a natureza humana e a realidade podem constituir histórias bastante assustadoras, como mostra esta lista com cinco clássicos hitchcockianos baseados em casos que aconteceram de verdade.
Festim Diabólico (1948)
Neste que é um dos filmes mais experimentais do Mestre do Suspense, filmado em uma longa tomada, com cenas em plano-sequência e ambientado em apenas um cenário, a trama acompanha Brandon (John Dall) e Philip (Farley Granger), dois jovens universitários que dividem um apartamento em Nova York. Um dia, ambos decidem tentar cometer o crime perfeito, almejando testar algumas teorias filosóficas. Para tal, estrangulam David (Dick Rogan), um de seus colegas de faculdade, usando uma corda, e guardam seu corpo em um baú que é disposto como mesa para o buffet do evento social que organizaram para aquele mesmo dia e para o qual convidam amigos e familiares de David, incluindo sua noiva e seu pai, além de um de seus professores, Rupert (James Stewart).
O objetivo diabólico dos assassinos é que todos estejam na presença da vítima, comendo e bebendo sobre seu corpo, sendo manipulados por ambos e sem desconfiar de absolutamente nada. Mas o professor – alarmado pelo estranho comportamento dos jovens e percebendo como estes estavam deturpando as teorias que ele próprio havia transmitido – começa a perceber que há algo de muito sombrio acontecendo naquele ambiente.
O filme foi baseado em uma peça de teatro homônima de 1929, escrita por Patrick Hamilton, que, por sua vez, inspirou-se na terrível história real de dois ricos estudantes estadunidenses da Universidade de Chicago, Richard Loeb e Nathan Leopold, que, em 1920, assassinaram um garoto de 14 anos, primo de um deles, com o cruel propósito de apenas comprovar sua superioridade por meio da execução do crime perfeito, inspirados por uma concepção distorcida da teoria de super-homem desenvolvida pelo filósofo Friedrich Nietzsche. Em pouco tempo, contudo, ambos foram descobertos e presos após confessar o crime.
Psicose (1960)
Ninguém se esquece da cena do chuveiro e da emblemática trilha sonora de Psicose, que começa com a história de Marion Crane (Janet Leigh), uma mulher que foge após roubar 40 mil dólares da empresa em que trabalha com o objetivo de quitar as dívidas de seu namorado, Sam Loomis (John Gavin), para que ambos possam se casar. No meio do caminho, surpreendida por uma tempestade, Marion se hospeda em um decadente hotel na autoestrada, o Bates Motel, onde é recebida por seu proprietário, Norman Bates (Anthony Perkins), um homem excêntrico que tem uma relação bem controversa com sua mãe, Norma. O que Marion não imaginava era que aquela seria a última noite de sua vida. Preocupada com o sumiço da irmã, Lila Crane (Vera Miles) se une a Sam para encontrá-la, além de Milton Arbogast (Martin Balsam), um detetive particular contratado pelo patrão de Marion para recuperar seu dinheiro, mas que acaba se juntando aos dois para desvendar esse mistério. A partir disso, acontecimentos ainda mais macabros se desenrolam.
Considerado hoje um dos melhores filmes de todos os tempos, Psicose foi bem recebido pela crítica e conquistou quatro indicações ao Oscar, levando o de Melhor Atriz Coadjuvante para Janet Leigh - algo até então bastante raro para um filme desse gênero. Além disso, inovou ao matar sua protagonista logo no início, culminando em um suspense cativante com um atordoante plot twist final. Sabe-se que, na época, já havia tecnologia suficiente para que o filme fosse colorido, mas o próprio Hitchcock optou por fazê-lo em preto e branco, tanto por considerar que, assim, as cenas de violência seriam menos chocantes, quanto por uma questão estilística e também devido ao baixo orçamento. De todo modo, o resultado foi bastante satisfatório.
O filme foi adaptado do livro de mesmo nome de Robert Bloch, publicado em 1959. Bloch inspirou-se levemente na história de embrulhar o estômago do abominável Ed Gein, um dos assassinos em série mais cruéis e desumanos da história, que confeccionava objetos com os restos mortais e roupas com a pele de suas vítimas. Sua história também inspirou outros clássicos famosos, como O silêncio dos inocentes (1991) e O massacre da serra elétrica (1974).
Janela Indiscreta (1954)
Um dos filmes mais cativantes e instigantes de Hitchcock, dispondo de uma linda fotografia e da presença encantadora da musa Grace Kelly, que ostenta um belíssimo figurino - concebido pela lendária e premiada figurinista Edith Head -, Janela Indiscreta foi inspirado no conto It had to be murder, do escritor Cornell Woolrich, baseado em não apenas uma, mas em duas histórias reais.
A primeira aconteceu em 1910, quando, em Londres, o médico estadunidense Hawley Crippen informou a todos que sua esposa havia feito uma viagem de volta aos Estados Unidos, sendo que, na verdade, ele já a havia assassinado por envenenamento e escondido seu corpo desmembrado no porão da casa. O segundo caso se deu em 1924, em Sussex, quando Patrick Mahon, um homem casado, matou friamente sua amante grávida quando esta o pressionou a assumir o relacionamento. Ambos os assassinos foram descobertos e condenados posteriormente.
Diante desses chocantes casos, aliados à obra literária, o cineasta se inspirou para conceber essa trama que foi indicada a quatro Oscar, incluindo Melhor Roteiro Adaptado e Melhor Fotografia, e que nos conduz pelos olhos de L. B. Jeffries (James Stewart), um fotógrafo profissional e aventureiro, acostumado a percorrer o mundo a trabalho, o qual se encontra confinado em seu apartamento em Nova York após quebrar a perna. Entediado, seu passatempo predileto é espionar seus vizinhos do prédio da frente com um binóculo e tecer teorias sobre o que vê, até que, um dia, tem certeza de que um deles assassinou a própria esposa e a enterrou no jardim. Então passa a observar e investigar o caso com a companhia de sua namorada Lisa (Grace Kelly), e de sua enfermeira, auxiliar e amiga Stella (Thelma Ritter).
Frenesi (1972)
Sendo este considerado o filme mais violento do Mestre do Suspense, foi baseado na obra literária Goodbye Piccadilly, Farewell Leicester Square, de Arthur La Bern, que se inspirou em uma história real igualmente brutal: um caso que ficou conhecido como “Os Assassinatos de Hammersmith Nudes” , cujo perpetrador, que recebeu a alcunha de “Jack, the Stripper” (em referência a outro famoso serial killer, que igualmente nunca teve sua identidade descoberta, infelizmente), ceifou a vida de garotas de programa entre 1959 e 1965, despindo seus corpos, que eram despejados no Rio Tâmisa.
No filme, Londres está sendo alvo do “Assassino da Gravata”, cujas presas são mulheres cruelmente estranguladas com tal peça de roupa. Quando Brenda (Barbara Leigh-Hunt), a ex-esposa de Richard Blaine (Jon Finch), é morta com esse modus operandi, este se torna o principal suspeito e corre contra o tempo para provar sua inocência, enquanto outras mulheres continuam em risco com o verdadeiro assassino ainda à solta.
Os Pássaros (1963)
Os Pássaros foi supostamente baseado no conto de 1952, de Daphne Du Marier – acusada de ter plagiado o romance homônimo de Frank Baker, escrito em 1936. Recorda-se que essa escritora também foi acusada de se apropriar da trama do brasileiro A Sucessora (1934), de Carolina Nabuco, cujas semelhanças com Rebecca, a mulher inesquecível (1938), também adaptado por Hitchcock, são indiscutíveis. Contudo o enredo do filme teria sido inspirado também em uma notícia de jornal que intrigou o cineasta em 1961: a pequena cidade litorânea de Santa Cruz, na Califórnia, em uma madrugada aparentemente como outra qualquer, teria sido acometida pelo ataque de centenas de pássaros, que se jogaram sobre as casas, ferindo seriamente os residentes.
Na obra cinematográfica, acompanhamos Melaine Daniels (Tippi Hedren), uma rica socialite que, casualmente, esbarra em Mitch Brenner (Rod Taylor) ao fazer uma compra em um pet shop. Tendo seu interesse despertado por aquele belo homem, ela vai ao seu encontro na cidadezinha de Bodega Bay, onde este mora com sua possessiva mãe, Lydia (Jessica Tandy), e sua irmã mais nova, Cathy (Veronica Cartwright).
Levando de presente para ele um casal de pássaros da espécie Lovebirds (Agapornis), a chegada da mulher à pacata cidade parece carregar também o desencadeamento de um fenômeno inesperado e inexplicável: os pássaros do local começam a desenvolver um comportamento estranho e violento, passando a atacar e ferir mortalmente os residentes de Bodega Bay em bandos - uma aterrorizante revolta da natureza.
Referências
- Hitchcock/Truffaut: Entrevistas (François Truffaut)
- 40 anos sem Alfred Hitchcock, o homem que marcou a ascensão e queda da Era de Ouro do cinema (Rolling Stone)
- The true story of Hitchcock’s The Birds (Popular Science)
- Caso Leopold-Loeb em quatro filmes macabros (Macabra.TV)
Que lista incrível! Assisti recentemente Psicose e, realmente, a tensão é muitíssimo bem trabalhada com o jogo de luzes. Adorei. Uma das coisas que mais gosto em Hitchcock é essa costura que ele faz com a literatura, sempre nos levando para os livros de alguma forma.
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