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Horror real: a glamourização dos crimes de morte


Quando se trata de crimes de morte, alguns casos que se fizeram notórios ao longo da história nos vêm à mente: Jack, o Estripador, que cometeu diversos assassinatos na Londres vitoriana e em seus arredores por volta de 1888, e cuja identidade do autor até hoje permanece um mistério; Charles Manson e sua denominada “Família Manson” que, nos Estados Unidos de 1969, foi responsável pelos casos de assassinatos que ficaram mundialmente conhecidos como “Tate-LaBianca”, cujas vítimas que nomearam o caso foram, dentre outras não menos relevantes, a atriz Sharon Tate, então grávida de 8 meses do diretor Roman Polanski, e o casal Leno e Rosemary LaBianca; Ted Bundy, serial killer estadunidense responsável pelo sequestro, estupro e assassinato de trinta ou mais mulheres, tendo estes crimes sido cometidos entre os anos de 1974 e 1978. Também podemos pensar no “Estrangulador BTK”, assinatura do serial killer estadunidense Dennis Rader que, entre 1974 e 1991, amarrou, torturou e matou (bind, torture, kill = BTK) cerca de dez pessoas e enviou cartas à polícia e aos jornais descrevendo seus crimes; o Massacre de Columbine, crime cometido dentro de uma escola nos Estados Unidos por dois alunos, Eric Harris e Dylan Klebold que, em 1999, deixou doze mortos e dezenas de outros estudantes e professores feridos, dentre diversos outros. 

Mas o que faz com que nós nos sintamos tão atraídos por saber mais sobre tais histórias terríveis, chamadas de true crime? E qual a intenção da participação da mídia na produção infindável de filmes, livros, séries, podcasts e documentários que estão sempre em alta e trazendo à tona a memória glamourizada desses crimes perversos?

Para obtermos respostas, podemos tomar emprestado o caminho que os criminólogos fazem ao estudarem casos de crimes de morte. A criminologia é uma ciência empírica (ou seja, seus métodos são baseados na observação e na experiência) cujos estudos buscam compreender, de modo geral, as causas de determinado crime, os motivos dos agentes que o fizeram e suas personalidades, as vítimas e suas relações com o ocorrido, e, assim, poder analisar formas de ressocialização desses indivíduos na comunidade.

No entanto, tomando como exemplo o que acontece em filmes como Ted Bundy: a irresistível face do mal (Extremely wicked, shockingly evil and vile), de 2019, é que, ao contrário do que é feito por aqueles que estudam e se aprofundam de fato nos temas, a mídia lança sobre as massas uma comoção que, de certo modo, apela pela formação de uma opinião pública. Nesse enfoque específico, e em vários outros, especialmente quando se trata de serial killers, o caso já encerrado há tempos renasce ao se dar luz, por exemplo, para o criminoso enquanto um “bom homem de família”, criando assim uma dualidade na sua imagem para aqueles que consomem o material hoje em dia. De acordo com o que assistimos no longa, como acreditar que Ted Bundy possa ter realmente cometido tantas atrocidades, se ele era um companheiro para sua mulher e um pai protetor? 

A mídia tem o poder de mitificar um criminoso a ponto de ele divergir de seres humanos “normais”. Desse modo, a glamourização se faz quando a noção de que serial killers são seres com capacidade mental acima da média se perpetua, quando na verdade estes são pessoas comuns. A imagem amplamente divulgada do matador, sem um foco real nos acontecimentos, e sim apenas sua “exaltação”, pode ser responsável até mesmo por atrapalhar investigações, se estiverem ainda em andamento. O enredo, quando criado com a intenção de estimular o interesse da audiência, focado nas atrocidades e sem um panorama geral da vida do criminoso, e o conteúdo, quando mostra apenas o desespero, causando medo no espectador, faz com que seja disseminada uma sensação de ser cativado pelo assassino, e não problematizar de fato os crimes cometidos.

Os serial killers, no entanto, representam apenas uma pequena parte dos casos envolvendo crimes de morte estudados pelos criminólogos. Então por que eles ainda recebem tanta atenção? A mídia sensacionalista cria o espetáculo em cima desses casos: crimes brutais, por exemplo, são muito mais noticiados porque, além de causarem medo, intrigam. As pessoas sentem-se atraídas para saber mais das causas – e, especialmente, das consequências para com o mandante do crime, mobilizadas pelo senso de justiça –, fazendo com que o conteúdo seja cada vez mais consumido. 

A cobertura do massacre de Columbine foi feita de modo exagerado na época, assim como o caso do julgamento de Ted Bundy, que foi televisionado. Ao tratá-lo como um “assassino encantador”, o foco é completamente alterado: seus atributos físicos são mais destacados do que seu feito horroroso, e esse tipo de espetacularização é o que muitos desses delinquentes buscam para si, a valorização da autoimagem. Mesmo não sendo de fato seres humanos elevados, dentro de sua psicologia, eles se enxergam como seres superiores, como o próprio Charles Manson se enxergava. 


Em seu aclamado livro de true crime Helter Skelter, Vincent Bugliosi, promotor do caso Tate-LaBianca, nos conta que, durante certo tempo, havia uma enxurrada de livros, peças e filmes que, se não glorificavam Manson, o retratavam de modo não totalmente desfavorável. No best-seller lançado em 1974, Bugliosi comenta:

“No momento de um assassinato em massa, e quando o assassino suspeito é preso e julgado, sempre há uma publicidade considerável. Como regra geral, no entanto, em pouco tempo os assassinatos e a identidade do perpetrador tendem a desaparecer da consciência pública. Com Manson não foi assim. Na verdade, ao lado de Jack, o Estripador, cuja identidade ainda não foi estabelecida de forma conclusiva, Manson é provavelmente o assassino em massa mais famoso e notório de todos os tempos.”

É desenvolvido então o argumento de que as implicações sociológicas e o legado dos assassinos podem não ser mais do que a ideia de que eles constituíram uma reafirmação da verdade de que sempre que as pessoas entregam suas mentes e almas a uma figura de culto ditatorial, chega um ponto para os seguidores quando é tarde demais para voltar atrás. E assim como com as massas seguindo os déspotas da história, em qualquer direção que ele vá, ele os leva consigo.

Bugliosi pontua, ainda, acreditar que a principal razão para o fascínio contínuo por ele em uma data tão tardia é que o caso de Manson é quase certamente o assassinato em massa mais bizarro nos anais registrados do crime. E seja qual for o motivo, as pessoas são “magneticamente fascinadas por coisas estranhas e bizarras”. O promotor questiona: 

“Por que há tantos livros populares e programas de crime na televisão que tratam de assassinato – o ato final do mal? Já que damos tanto valor à vida humana, por que glorificamos, de maneira perversa, a extinção da vida? A resposta a essa pergunta, seja ela qual for, é pelo menos uma resposta parcial de por que as pessoas continuam fascinadas por Hitler, Jack, o Estripador – Manson. [...] Resumindo, elas são atraídos pelo mistério do Manson.”

Já séries como Mindhunter (2017), em contraponto, mostram exatamente o oposto: a partir da união entre ficção e realidade, os produtores foram capazes de situar os espectadores no contexto requirido, bem como traçando planos de fundo sobre o desenvolvimento por parte do FBI na identificação de uma nova modalidade de criminosos, como estes agiam e suas motivações por trás dos crimes. Assim, muito mais do que instigar a curiosidade em quem assiste para ver a justiça sendo feita, o ponto principal e o maior foco da série é desvendar como funciona a mente dos assassinos.

Ainda no que diz respeito ao tema do true crime enquanto um gênero, podemos aprofundar a abordagem da função da literatura nesse meio. Afinal, foi com A sangue frio que o jornalista estadunidense Truman Capote, em 1966, revolucionou a indústria de produção e foi também um dos principais inauguradores do estilo narrativo conhecido como jornalismo literário. Nele, Capote conta a história do assassinato da família Clutter, no interior do Kansas, perpassando pela visão dos autores do crime, Dick Hickok e Perry Smith, além de retratar, pelas palavras dos criminosos, suas infâncias e motivações para realizar o assassinato. Outros livros se firmaram dentro do gênero, como o já citado Helter Skelter; o livro Mindhunter: o primeiro caçador de serial killers americano, lançado em 1995 e escrito por John E. Douglas, ex-agente do FBI, e Mark Olshaker – este servindo de inspiração para a criação da série mencionada; há também o livro Columbine, do jornalista Dave Cullen, lançado em 2009, no qual o autor lança de um exame sob os acontecidos de 20 de abril de 1999, entre diversas outras obras. 

Mais recentemente, a Netflix lançou uma nova série sobre crimes reais: Dahmer: um canibal americano, que conta a história de Jeffrey Dahmer, um serial killer oriundo do estado de Wisconsin, Estados Unidos, responsável pela morte de dezessete homens e garotos, vítimas de estupro e canibalismo, entre os anos de 1989 e 1991. A produção gerou uma certa polêmica entre os telespectadores, e serviu para reviver o fascínio pela figura ali representada pelo ator Evan Peters

A série da Netflix, ao contrário de tantas outras, resolveu dar um foco maior nas vítimas e no sistema judicial do que no próprio assassino, o que ajuda a percebê-las para além do Dahmer, sendo humanizadas em certa medida. No entanto, cabe comentar como o próprio Jeffrey foi humanizado, o que pode ser visto como uma virtude, se pensarmos que ajuda a entender como esses criminosos eram, muitas vezes, capazes de persuadir as pessoas. 

Além disso, também cabe destacar que os familiares das vítimas são diretamente levados de volta para os dias de terror quando obras cinematográficas são criadas em cima dos fatos reais. No caso do lançamento de Dahmer, Rita Isbell, irmã de Errol Lindsey, uma das vítimas do assassino, se posicionou extremamente incomodada com o fato de seus dias de horror estarem sendo representados na série. Sobre a cena em que DaShawn Barnes interpreta Rita no tribunal, ela comentou: 

“Quando vi parte do programa, isso me incomodou, especialmente quando me vi — quando vi meu nome aparecer na tela e essa senhora dizendo literalmente o que eu disse. [...] As vítimas têm filhos e netos. Se o show os beneficiasse de alguma forma, não seria tão duro. [...] Isso é apenas ganância.”

Eric Perry, outro familiar da vítima, também chegou a comentar: 

“Recriar minha prima tendo um colapso emocional no tribunal diante do homem que torturou e assassinou seu irmão é SELVAGEM. [...] Está traumatizando [a família] de novo e de novo, e para quê? De quantos filmes, programas e documentários precisamos?”

É importante conseguirmos enxergar para além da glamourização: agentes de crimes são humanos iguais a todos, estabelecidos dentro de uma sociedade onde se tem laços de família e amizade. É necessário percebê-los como tais, para que possamos desmistificar a áurea de exaltação que muitas vezes é colocada, humanizando, mas não romantizando.  

Referências 





Arte em destaque: Caroline Cecin 

Ana Júlia Neves
Pernambucana nascida em 2003, amante dos clássicos da literatura, de todas as vertentes do rock e do cinema como um todo – pura cultura pop. Estudante de História pela Federal da Paraíba, vivendo sua fase "Rory Gilmore em Yale". Obcecada por um artista diferente a cada semana.

Comentários

  1. Sensacional! A linha tênue entre o fascínio mal conduzido e o interesse sério sobre a criminalidade e os limites (ou a falta de limites) da violência humana, e como a mídia fermenta ondas de fanatismo. Assisti quase todas as produções citadas. Penso sempre em Natural Born Killers que retrata bem isso daí

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