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A representação estigmatizada da “mulher louca” em Atração Fatal

Fato é que a representação feminina no cinema, especialmente em Hollywood, sempre esteve repleta de clichês, sendo um dos tropos mais presentes os estereótipos da mulher louca, má e/ou manipuladora – personagem que, em geral, serve apenas ao propósito de arruinar a vida de um “pobre homem indefeso”. Para mencionar alguns exemplos mais contemporâneos, temos Fixação (2002), Obsessiva (2009), Garota Exemplar (2014), Paixão Obsessiva (2017)  e, até mesmo, o nacional O Lobo atrás da Porta (2013). Fazendo referência a alguns exemplos clássicos, é impossível não lembrar de Louca Obsessão (1990), A Mão que Balança o Berço (1992) e Perversa Paixão (1971). Todas essas produções cinematográficas ilustram, cada uma a seu modo, mulheres que não aceitam algum tipo de rejeição ou contrariedade, reagindo de forma completamente cruel e desvairada, perseguindo seus objetos de desejo enquanto destroem qualquer obstáculo que ouse se impor em seus caminhos. 

Mas é possível apontar o filme Atração Fatal (Fatal Attraction) como um exemplo perfeito do modo estereotipado e até mesmo desumanizado como tais mulheres são representadas e de como as questões de saúde mental aparecem de maneira bastante estigmatizada. Lançado em 1987 e dirigido por Adrian Lyne, a produção cinematográfica foi um sucesso comercial: arrecadou US$320 milhões e recebeu seis indicações ao Oscar, dentre elas de Melhor Filme, Melhor Diretor e Melhor Atriz para Glenn Close, que dá vida à marcante personagem Alex Forrest. Na época, o filme foi muito comentado como uma espécie de alerta a homens casados sobre as possíveis consequências devastadoras da infidelidade.

Na trama, Dan Gallagher, interpretado por Michael Douglas, é um advogado bem-sucedido de Nova York, prestes a se tornar sócio do escritório de advocacia em que trabalha, e pai de uma família considerada perfeita: casado há 9 anos com Beth (Anne Archer), com quem teve Ellen (Ellen Hamilton Latzen), uma menina adorável de 5 anos. Em um evento corporativo, ele esbarra em Alex Forrest, uma bela editora de livros, solteira, que chama sua atenção. Posteriormente, ambos se encontram em uma reunião de trabalho e tem início uma interação que leva a um tórrido romance ao longo do fim de semana - enquanto sua esposa e filha estão fora da cidade. 

Acreditando estar usufruindo de um despretensioso affair baseado apenas em sexo entre dois adultos conscientes do que estão fazendo, Dan não imagina que Alex espera muito mais do relacionamento. Após passarem o fim de semana juntos, Dan volta para sua família, mas Alex não está disposta a deixá-lo ir tão facilmente. A partir daí, inicia-se uma obsessão que leva a situações inimagináveis.

Todavia, já no começo, Alex dá sinais bem claros de que não é uma pessoa mentalmente sã. Quando Dan faz menção de ir embora de seu apartamento, ela reage de forma agressiva e faz nada menos do que cortar os pulsos enquanto ele ainda está lá. A reação de Dan se resume a fazer um curativo e ficar mais algumas horas com ela, não havendo qualquer problematização de uma atitude tão extrema. Ao voltar para casa, agindo como se nada tivesse acontecido, enquanto tenta se convencer de que está tudo bem, ele passa a receber da amante incessantes ligações em sua casa e seu escritório, e é aí que ele começa a se dar conta do quanto aquela aventura pode lhe custar caro.

Em seguida, as atitudes de Alex começam a escalar de tal maneira que ela chega ao ponto de invadir a casa de Dan, aproximar-se de sua esposa, queimar seu carro com ácido e sequestrar sua filha, culminando na cena mais emblemática (e traumática) de todas: ela mata e cozinha o coelho de estimação da família.

Assim, a trama de Atração Fatal ficou tão marcada no imaginário do público – e tão atrelada ao estereótipo da mulher louca, desvairada e destruidora de lares – que a expressão bunny boiler (em português, algo como “caldeira de coelho”) foi consagrada na língua inglesa para designar, conforme a definição do dicionário Oxford, “a woman who acts vengefully after having been spurned by her lover”, isto é, em tradução livre, “uma mulher que age de forma vingativa após ser desprezada por seu amante”. 

Mas há uma grande problematização que nunca recebeu, de fato, o devido destaque: a desumanização da personagem Alex Forrest. Embora seja indiscutível se tratar de uma pessoa com sérias questões de distúrbio mental, e que certamente necessitava de ajuda psicológica (em determinado momento, inclusive, Dan diz, de uma forma pejorativa: "– Você precisa de ajuda, precisa de um psiquiatra"), tal transtorno, em nenhum ponto da trama, é abordado como tal, e ela é retratada apenas como uma mulher doida, cruel e descontrolada, não despertando qualquer empatia ou sentimento de compaixão no público. Sua situação passa a ser abordada, de forma desdenhosa, apenas como um caso de polícia. Não há qualquer referência a uma intenção de se encontrar sua família ou pessoas próximas a ela, que poderiam fornecer informações sobre seu quadro de saúde mental e ajudá-la a buscar o devido tratamento psicológico, e nem mesmo se expõe algum pano de fundo para a personagem; é como se ela tivesse simplesmente brotado ali com o único intuito de atormentar a vida de Dan. 

Apesar de ser uma mulher madura, de 36 anos, independente e aparentemente bem-sucedida profissionalmente e, certamente, com toda uma história de vida, ela é relegada ao papel de uma mera amante rejeitada e, consequentemente, uma mulher perigosa. Torna-se a grande vilã do enredo. Por alguns momentos, é normal que o espectador até esqueça de atribuir qualquer responsabilidade pela decisão de ter um caso extraconjugal com uma mulher desconhecida a Dan, que passa a ser retratado como uma infeliz vítima das circunstâncias. Já Alex, apesar de ter uma vida, pessoal e profissional, para além do affair com Dan, é reduzida a uma mulher que não sabe lidar com o desprezo e que age como uma psicopata, tornando-se uma ameaça a ser combatida e dizimada com violência. 

Quando Alex conta a Dan que está grávida (o que é confirmado pelo médico depois, ou seja, não se trata apenas de um artifício para “segurá-lo”), este se resume a sugerir que ela realize um aborto, não havendo nenhuma autorresponsabilidade de sua parte (afinal, o papel de usar métodos contraceptivos seria apenas da mulher?). E nem mesmo o fato de ela estar esperando um bebê desperta qualquer espécie de empatia ou piedade, e o desfecho de Alex é o mais trágico e violento possível. 

Sabe-se que chegou a ser gravada uma primeira cena final, em que Alex tem uma conclusão um tanto menos degradante e mais coerente com o arco da personagem: ela tiraria a própria vida, o que acabaria por incriminar Dan. Porém esta foi refilmada para se tornar mais aprazível ao público – que, sim, desejaria vê-la sendo destruída; se ela "apenas" se suicidasse, não seria punição suficiente – e, por consequência, para ter um fim mais comercial. Assim, o final perfeito para o público acabou sendo aquele em que ela é morta pela esposa de Dan, Beth, e tudo fica bem para a família, em uma cena bastante violenta, contudo, considerada mais catártica para a audiência. 

É inegável que, historicamente, as mulheres sempre foram atreladas ao conceito de histeria e loucura e reduzi-las a seres descontrolados, incapazes de conterem as próprias emoções, sempre se apresentou como um modo eficaz de limitá-las e diminui-las. No caso em questão, não há como negar que Alex é uma mulher que, sim, necessitava de tratamento psiquiátrico. No entanto, aqui sua loucura é usada apenas como um mero recurso para torná-la uma grande ameaça ao homem e à sua unidade familiar perfeita, e não se busca compreender a origem de seu problema e um modo efetivo de ajudá-la.  

Em entrevista, a brilhante e talentosa intérprete de Alex, Glenn Close, relatou que este foi o papel para o qual ela mais estudou e se preparou em toda a sua carreira, tendo consultado psicólogos e psiquiatras para entender se atitudes como aquelas de Alex seriam, de fato, verossímeis e, especialmente, para buscar compreender o que poderia motivá-las e dar causa a elas. Desse modo, ela nunca conseguiu enxergar sua personagem de forma superficial, como apenas uma grande vilã psicopata que surge aleatoriamente, mas como uma mulher solitária, frágil e perturbada, que merecia uma abordagem mais humanizada. Por isso, por ter estudado para a construção da personagem e por, assim, entender que se tratava de um caso que devia ser enxergado e retratado sob o prisma da saúde mental, Glenn Close relutou para gravar aquele final definitivo do filme, que considerou "uma traição" à personagem, ponderando que a cena derradeira originalmente gravada era, de fato, a mais coerente. 

“Eu sempre acreditei que ela era um ser humano passando por muito sofrimento e que precisava de ajuda.”

Com a recente notícia de que a trama de Atração Fatal será revisitada e transformada em uma série de televisão que, conforme anunciado pelo canal que a veiculará, vai explorar “obsessões e temas atemporais, como casamento e infidelidade, através de um olhar contemporâneo para mulheres fortes, transtornos de personalidade e controle coercitivo”, abordando as “complexidades da psique humana”, espera-se que os anseios de Glenn Close (e que, arrisca-se dizer, são os mesmos do público  atualmente) sejam finalmente atendidos e que essa seja uma oportunidade para homenagear uma história que, apesar dos problemas, consagrou-se como um grande clássico, que agora pode ser relido com a desconstrução de tais estereótipos e estigmas, tão obsoletos e perversos. 


Referências


Vanessa Vieira
Brasiliense, encantada por histórias – reais e inventadas – desde criancinha, sempre encontrou nos livros e nos filmes seus melhores companheiros. Formada em Letras e apaixonada por Literatura e Cinema, tornou-se servidora pública na área da Cultura, sempre acreditando no potencial que esta tem de transformar e salvar vidas.

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