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Diário de uma ex-favelada: o grito de uma escritora preta dentro e fora da periferia

 
“A publicação da obra de Carolina Maria de Jesus, por justiça, coloca a escritora em seu devido lugar, como uma das mais emblemáticas escritoras brasileiras do século XX e oferece ao público leitor a oportunidade de transitar pela diversidade que compõe a literatura brasileira.”

Foi assim que Conceição Evaristo definiu a literatura de combate produzida por Carolina Maria de Jesus e a importância de lê-la integral e verdadeiramente para que possamos enxergar quem ela era de fato, a sua dificuldade de ser reconhecida como escritora, devido ao racismo estrutural e à sociedade elitista, além de também enxergamos os diversos quartos de despejos do Estado no Brasil. A fim de, enfim, fazer justiça a essa autora de escrita tão poderosa (e por que não também revolucionária?), a editora Companhia das Letras lança a coleção Cadernos de Carolina, que é responsável por organizar os manuscritos de obras inéditas da intelectual. A coleção tem esse objetivo mencionado anteriormente, de restituir a voz autêntica da autora, que muitas vezes é estigmatizada e até mesmo negligenciada, visto que vários desses manuscritos estavam fora de circulação. O conselho editorial dos Cadernos de Carolina precisou, pois, consultar os acervos responsáveis por armazenar as produções da escritora, espalhados em diversas partes do Brasil.

Casa de Alvenaria, parte da coleção mencionada, conta com um conselho editorial composto por pesquisadoras de literatura africana, afro-brasileira e da escrita de Carolina, pela grandíssima escritora Conceição Evaristo e pela professora e filha da autora, Vera Eunice de Jesus Lima. Estas duas últimas escrevem, também, a introdução dos livros Casa de Alvenaria, fato esse que honrou e enriqueceu mais ainda os diários. A experiência da leitura, para nós, leitores, com os escritos dessas mulheres, muda completamente, pois ao contrário do que fazia Audalio Dantas – jornalista organizador do livro Quarto de despejo: diário de uma favelada, e responsável pela divulgação da escritora em pauta -, essas mulheres restituem a humanidade presente na escrita de Carolina e a voz potente dessa grande escritora, que também produziu outras obras que não apenas os honradíssimos diários. 

Os escritos organizados em Casa de Alvenaria são separados em dois volumes que podem ser lidos como obras independentes. O primeiro – sobre o qual será tratado neste texto – é a edição responsável por conter as produções do diário que Carolina escreveu logo nos primeiros períodos de sua vida pós-publicação de Quarto de Despejo, bem como quando saiu da favela do Canindé e foi morar em Osasco, em 1960. Já o segundo volume contém os escritos da época em que se mudou de Osasco para Santana, onde comprou sua casa própria.

Além das fantásticas introduções, a edição conta com seções de informações sobre a autora, sugestões de leituras de muitas das obras de Carolina pouco divulgadas e um QR Code que nos direciona para vários conteúdos pedagógicos sobre seus escritos.

Assim, como afirmado pela Companhia das Letras: “[...] esta nova edição é uma oportunidade de conhecer uma das maiores escritoras brasileiras por ela própria”.

Contudo antes de seguir para a discussão dos textos em si, é importante, primeiro, que todos saibam quem foi Carolina Maria de Jesus.

Sobre a vida da escritora


“Tem dias que dou risada pensando na confusão de minha existência. De lixeira a escritora. Tenho a impressão que eu era ferro, e virei ouro. A minha vida metamorfoseou-se.” Foi assim que a própria Carolina definiu a história de sua vida.

A autora nasceu no dia 14 de março de 1914, na cidade de Sacramento, localizada no estado de Minas Gerais. Durante sua juventude, Carolina precisou migrar com a família para diferentes regiões do Brasil em busca de boas condições de (sobre)vivência, por isso, muitas vezes, seus estudos precisaram ser interrompidos.

Na vida adulta, ela teve diversas profissões e não tinha medo de reclamar com seus padrões quando percebia que algo estava errado - como a exploração do trabalho dela por parte deles - devido ao seu pensamento muito crítico formado por suas diversas leituras, das quais muitas eram sobre política. 

Carolina mudou-se para a metrópole de São Paulo logo após a morte da mãe, porque, mais uma vez, precisou procurar meios de sobrevivência. Lá, chegou até mesmo a dormir na rua. 

Já em São Paulo, quando foi despedida de um de seus trabalhos, ela migrou para a favela do Canindé, construiu seu próprio barraco e começou a trabalhar como catadora de materiais, ofício esse ao qual se dedicava (por não ter outras opções) quando conheceu o jornalista Audálio Dantas, que editou e publicou Quarto de despejo: diário de uma favelada, livro que teve uma grande repercussão nacional e internacionalmente. Esse fato não aconteceu com suas próximas produções, visto que elas transgrediam os horrendos estereótipos do papel da mulher negra em sociedade, o que fez Audálio força-la a escrever mais diários sobre as mazelas de sua vida – e até mesmo lhe impunha, de certo modo, que continuasse a vestir roupas de “pobre” – para que “cumprisse” com os estereótipos de seu suposto papel e agradasse a mídia e a sociedade. Todavia Carolina já deixava expostas não apenas uma visão de “glória” por ter conquistado sua casa de alvenaria e saído da favela, mas as problemáticas que estavam presentes, também, fora da favela.  Ela sempre reconheceu os dois lados – positivos e negativos – da moeda que todos almejavam: fama e dinheiro.

Casa de Alvenaria, volume 1: Osasco


O diário começa a ser escrito depois de seis meses do lançamento de seu primeiro livro,  quando um empresário oferece um espaço em uma de suas casas para Carolina morar junto de seus três filhos ainda crianças, Vera Eunice de Jesus Lima, João José de Jesus e José Carlos de Jesus, em Osasco, no estado de São Paulo. 

Para aqueles que também leram sua primeira obra, a nitidez de diferenças da realidade narrada em uma produção e outra é enorme. Embora a escritora não tenha ficado rica, como vemos muitas pessoas pensarem ao contrário disso nos escritos do volume 1, ela conquista uma vida melhor e muito mais confortável - sem sombras de dúvidas! -, como o afirmado por ela mesma na página 69, em uma de suas várias viagens e entrevistas, consequências da pós-publicação do livro que a lançou como escritora – fato esse que apresentou problemáticas e dores de cabeça à Carolina, de que trataremos mais adiante -, dessa vez na cidade do interior de São Paulo, Bauru: 

“A vida fora da favela é melhor porque ressidindo em alvenaria podemos ter mais confôrto que é a luz elétrica, agua em abundancia, e outro estilo de conversa.”

Contudo a autora percebe, também, que nem tudo é um mar de rosas, mesmo quando conquista um de seus maiores sonhos, que era mudar-se da favela, quando pontua na página 76: “Cheguei à conclusão que a maldade está em todos os recantos, inculcada nas almas humanas”. Esse trecho, em especial, mostra outra das – muitas – características admiráveis na literatura de Carolina: o cuidado com a escrita e a escolha de palavras (como as grifadas), visto que ela sempre buscava ampliar seu vocabulário para sua escrita e, para isso, fazia longas pesquisas em dicionários. 


Além disso, a escritora já se mostrava cansada de tantos compromissos que muitas vezes não lhe interessavam, como o mencionado por ela: 

“Eu disse-lhes que recebi um convite para visitar Brasilia mas eu não tenho tempo para visitar políticos. O meu tempo é dedicado aos estudantes que lutam com dificuldades para estudar.”

Como podemos ver em seu livro, ela gostava mesmo de se dedicar aos oprimidos, bem como à sua escrita, a qual, em especial, parou de ser prazerosa a ela a partir do momento em que Audálio Dantas a forçava a escrever gêneros e temas dos quais já estava saturada. Ademais, conforme seus escritos, é sabido que Carolina tinha noção do poder de sua literatura e sabia que sua escrita, devido a isso, não deveria ser limitada. Entretanto, sentia um dever de cumprir as ordens de Audálio como uma forma de agradecimento por ter tornado seu livro conhecido, e escrevia, pois, mais diários. 

Mas é importante salientar que Carolina era irreverente, sabia que a servilidade não lhe cabia (e não deveria caber a mais ninguém), e em seus diários, como forma de grito seu e de demais oprimidos, não deixava de expressar seu descontentamento com o próprio jornalista – escritos esses mantidos pela Companhia das Letras.

Quando se fala em Carolina Maria de Jesus, é impossível não tocar no fato de que ela era totalmente politizada, com uma visão crítica sobre muitos aspectos da realidade. Criticou em seu livro a exploração da classe operária, dos estudantes, dos pobres, dos negros. Criticou também o abuso de poder dos políticos e a ignorância destes a respeito dos sofrimentos do povo. Pontuou, inúmeras vezes, o racismo sofrido por ela e presente nos ambientes das pessoas da “sala de visitas”, termo utilizado por ela para designar as pessoas de alta classe social e, principalmente, brancos. Dentre essas denúncias da sociedade e irreverencias de Carolina, faz-se necessário mencionar uma das situações enfrentada e narrada por ela no livro, quando, viajando de ônibus, vê que uma mulher branca está incomodada com o sono de um operário que estava sentado ao seu lado, e a escritora faz uma crítica falada diretamente à moça: “Ele é operário. A senhora não estudou piscologia. Com a certeza a senhora nasçeu no berço de ouro. Voce não conheçe a minha vida. A vida do operario que levanta cêdo e trabalha horas extras. A senhora é egoista e orgulhosa”.

Por fim, vale ressaltar, dentre outros aspectos, que Carolina não endeusava a maternidade, pois relatava as dificuldades que enfrentava como mãe, as peripécias das crianças e o cansaço de precisar sempre estar alerta às necessidades dos filhos.

Portanto, não há dúvidas a respeito da potência da escrita dessa grandíssima intelectual, da importância de estudá-la e lê-la por completo, como o que é proposto e cumprido nas edições da Companhia das Letras. Viva Carolina!


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Referências 

Laura Ferracini
Futura professora de línguas e apaixonada por Virginia Woolf, mas lê tudo o que lhe prende. Espalhando leituras no interior do interior de São Paulo, ou para os íntimos, Dolcinópolis.

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