Das diversas pérolas cinematográficas que os anos 1990 deixaram de legado, podemos dizer que Uma Equipe Muito Especial é um filme, de fato, especial a ser encontrado no meio da grande concha cultural dessa década. Por sua vez inspirado no legado deixado pela história real da Liga Americana de Beisebol Feminino, e tendo ganhado um remake em formato de série pela Amazon Prime Video no dia 12 de agosto, o longa trouxe uma refrescante - e até então escassa - representação fílmica das mulheres no mundo esportivo através do olhar leve e bem-humorado de Penny Marshall na direção.
A Liga Americana de Beisebol Feminino (All-American Girls Professional Baseball League, ou simplesmente AAGPBL no original em inglês) foi uma divisão pioneira de beisebol - que inicialmente era de softball - composta inteiramente por atletas mulheres nos campos, que existiu entre os anos de 1943 a 1954 nos Estados Unidos, chegando a agregar mais de 600 jogadoras e cerca de 10 times diferentes. A ideia de produzir o filme, que tem um roteiro de caráter fictício apesar do pano de fundo com elementos reais, veio depois que Penny assistiu a um documentário que procurava resgatar a história esquecida da Liga, que também havia ganhado uma exposição recente dedicada a ela no National Baseball Hall of Fame and Museum, em 1988.
Time Rockford Peaches, na década de 1940 |
Como se as presenças de Geena Davis, Tom Hanks (já fazendo aqui um papel moralmente ambíguo muito antes do Coronel Tom Parker de Elvis) e Madonna no elenco já não fossem suficientes para despertar o interesse no filme de até mesmo quem não é fã de beisebol (tal qual a própria redatora deste texto), o que faz com que realmente fiquemos com ele até o fim é a relação de amizade e sororidade existente entre as personagens protagonistas no centro de tudo.
Ambientado parcialmente em 1988, e majoritariamente durante o ano de 1943, o filme conta a história de Dottie (Geena Davis) e Kit Hinson (Lori Petty), duas irmãs muito talentosas que possuem uma aptidão notável para o beisebol, mas que se destaca particularmente em Dottie. Ela, que já é uma mulher casada, prefere ficar focada nos cuidados da fazenda da família no Oregon enquanto espera pelo retorno do marido enviado para a guerra na Europa. Já Kit, pelo contrário, além de ser mais jovem e ainda solteira, tem uma grande ansiedade para deixar a fazenda para trás e conquistar o mundo longe das obrigações domésticas e provincianas as quais está acostumada.
Quando as duas são abordadas um dia por um olheiro que vem recrutando garotas ao redor do país para se juntarem à recém-formada Liga Americana de Beisebol Feminino, Kit vê nesse convite a oportunidade que esperava para sair de casa e se provar como uma jogadora tão boa quanto a irmã. O que ela não esperava, porém, era que o olheiro inicialmente estivesse interessado em recrutar apenas Dottie, que, por sua vez, estava completamente desinteressada em seguir uma carreira no esporte profissional. Após uma dose de convencimento insistente, Dottie cede à proposta para alegrar a irmã e as duas partem em direção a Chicago para participarem dos testes de admissão da Liga. Chegando lá, elas são aprovadas e colocadas na delegação do time Rockford Peaches, e, eventualmente, a irmandade que começou com o laço de berço de Dottie e Kit se estende aos poucos para cada uma das outras garotas selecionadas para essa empreitada, que objetivava manter a popularidade do beisebol em alta e oferecer uma fonte de distração da população diante das notícias da Segunda Guerra Mundial (e do fato de que muitos jogadores famosos haviam sido enviados para lutar nela), ainda que a perspectiva de mulheres jogando beisebol fosse impopular - principalmente entre homens, é claro.
Geena Davis e Lori Petty em Uma equipe muito especial |
Só a resistência natural a essa reação misógina já une as personagens instantaneamente em diversas cenas do filme, mesmo quando elas ainda não se conheciam e nem estavam no time oficialmente. Em um dado momento, por exemplo, quando Dottie e Kit ainda estão a caminho de Chicago, o olheiro que as acompanha faz uma parada para conhecer e potencialmente convidar mais uma candidata à Liga: Marla Hooch (Megan Cavanagh). Ela demonstra ter uma força impressionante para rebater bolas logo de cara, mas quando o olheiro se aproxima e vê finalmente o rosto por baixo do boné que escondia suas feições estampadas de nervosismo e timidez, o olheiro fica estarrecido e julga que ela não é adequada para participar da Liga. O motivo? Ela era "masculina" demais. "Feia" demais. Não era atraente o suficiente para os "padrões" (inclusive, as mulheres que participassem teriam de usar maquiagem e saias obrigatoriamente; caso contrário, não poderiam jogar).
Ao perceberem que Marla será propositalmente deixada para trás por conta de sua aparência, mesmo tendo mostrado ser altamente qualificada para participar dos testes da Liga minutos antes, Dottie e Kit automaticamente largam suas malas e se recusam a sair de seus lugares ao lado da arquibancada de onde assistiram a tudo. Marla viria com elas. E se Marla não viesse, elas não viriam mais também. Era pegar ou largar, a escolha era dele. Por fim, o olheiro acabou por acatar a vinda de Marla depois de um pedido encarecido do pai da moça (ou seja, ele só mudou de ideia quando outro homem deu a palavra), mas o gesto de Dottie e Kit, ainda que pequeno, foi impactante o suficiente para pressionar a decisão e prestar apoio a uma garota retraída que nitidamente não tinha muitos amigos ou habilidade social, mas que tinha um talento nato igual ao delas. E ela merecia ser reconhecida e avaliada exatamente da mesma forma nos testes em Chicago.
Elenco de Uma equipe muito especial (1992) |
Sororidade, por definição, é um termo oriundo da palavra "soror" em latim, que significa "irmã". É relacionada à ideia de união ou aliança entre mulheres, mas que se baseia também na capacidade de empatia, respeito e compreensão sem julgamentos. É um conceito de sensibilidade, de se colocar no lugar da outra. De dar voz, espaço e apoio. Foi isso o que Dottie e Kit fizeram ali por Marla, provavelmente sem nem ter o conhecimento dessa palavra e seu significado. Shirley Baker (Ann Cusack), então, com certeza não sabia.
Em uma das cenas mais tocantes e representativas dessa sororidade presente em Uma Equipe Muito Especial (e em uma nota pessoal da autora deste artigo: é minha cena favorita do filme), uma garota olha atentamente para o quadro no qual as listas que anunciam as selecionadas para a Liga de Beisebol foram pregadas. Mas ela está completamente desolada. Seu olhar lacrimejante e todo seu corpo se encontram em puro estado de insegurança. Vendo-a ali, parada, presume-se automaticamente que ela não foi uma das selecionadas e que essa é a razão para a sua reação transtornada. Um instrutor fica, inclusive, impaciente com a situação, sem entender o porquê de ela simplesmente não sair dali para que ele pudesse enfim começar a dar as instruções de como a Liga funcionará para as garotas que haviam sido oficialmente escolhidas. Tudo passa a fazer sentido quando uma dessas garotas decide se aproximar dela e perguntar gentilmente: "Oi. Você sabe ler?".
Bingo. Ela não sabia. E seu nome era Shirley Baker, respondeu ao ser questionada em seguida. Se foi intuição, instinto ou o reconhecimento de alguma situação que já vivenciou antes, não se tem qualquer indício, mas a garota que teve a proatividade de abordá-la havia acertado na mosca ao identificar qual era o problema, e ainda fez questão de assegurá-la que estava tudo bem. Ficaria melhor ainda depois que ela procurasse nas listas e encontrasse ali: "Shirley Baker". Seu nome estava, sim, entre as selecionadas, e ela iria entrar para o time das Rockford Peaches. A felicidade da garota ao ouvir a notícia é tão doce e genuína que é impossível não sentir uma espécie de injeção gostosa de serotonina.
É uma cena curta, mas memorável justamente pela atitude tomada pela outra garota para ajudar e pela força do fato de que Shirley até podia não saber ler (o que também é uma denúncia de sua condição social), mas sabia jogar beisebol tão bem quanto qualquer uma das outras ali. Ela estava de igual para igual, mesmo com essa questão, que chega a ser retomada algumas vezes ao longo do filme quando vemos Shirley finalmente aprendendo a ler com o auxílio das outras garotas do time, em especial Mae (Madonna), que lhe oferece até um livro erótico para treinar sua leitura, o que rende uma cena bem divertida.
Extrovertida, espirituosa e charmosa o suficiente para atrair a atenção imediata de vários homens ao seu redor - muitas vezes intencionalmente com seus flertes audaciosos -, Mae claramente é a mulher do time mais confortável com a sua própria sexualidade, e ela não faz a menor questão de esconder isso, incentivando também suas colegas a despertarem seus lados selvagens. Além de Shirley Baker, uma das mais afetadas por sua influência é a própria Marla, que passa a descobrir a feminilidade que aparentemente nunca teve a chance de explorar ao crescer, culminando em uma hilária performance musical embriagada que a Marla do início do filme jamais faria, sendo salva de uma ressaca (ou até uma possível besteira) por Dottie no final.
Madonna e Rosie O'Donnell (1992) |
Esse comportamento de Mae, entretanto, é também um ato de sobrevivência de sua parte. Quando surge a ameaça de um possível encerramento da Liga devido ao retorno de alguns soldados da guerra, Mae é uma das primeiras a vocalizar sua insatisfação, declarando que não será retirada dali e que não voltará para a sua vida de antes de entrar para a Liga. Ela não diz com todas as palavras, mas fica implícito que Mae provavelmente conduzia uma profissão análoga à da prostituição. Mais uma vez, temos aqui uma personagem vinda de um passado marginalizado, com poucas perspectivas, e que se encontrou no universo do beisebol na companhia de diversas outras mulheres, em que cada uma vinha de realidades muito diferentes das outras, e essa também é uma outra questão que fica bem clara em todas as personagens.
Aqui temos mulheres de todos os tipos e cenários: ricas e pobres; divorciadas, casadas, viúvas e solteiras; gordas, magras, altas e baixas; ex-misses até mães solo (como é o caso de Evelyn [Billy Schram], que acaba tendo a necessidade de levar seu filho para os treinos e jogos e, ainda que o garoto seja bagunceiro e o próprio agente do caos em pessoa, sua responsabilidade como mãe nunca é condenada ou questionada pelas companheiras de time). E mesmo com suas diferenças, essas mulheres se relacionam e formam laços que se tornam duradouros e transformadores em suas vidas. Muitas passaram a exercer sua própria independência a partir dali. A livre-expressão da identidade de cada uma nunca foi tão forte para algumas (a exemplo de Kit, que pôde ser finalmente conhecida por mais do que apenas a irmã mais nova de Dottie).
Contudo é preciso mencionar que, mesmo que haja essa diversidade, levando em consideração que Uma Equipe Muito Especial ainda é um filme produzido nos anos 1990, nem tudo o que está presente nele envelheceu perfeitamente bem em termos de representatividade, por mais que o saldo geral permaneça bastante positivo. O filme peca em reforçar alguns estereótipos (ainda que com propósitos claramente cômicos e, talvez, também com as boas intenções de pontuarem uma crítica) e há uma falta significativa de atrizes não-brancas no elenco.
Esses pontos, no entanto, parecem ter sido corrigidos na nova série da Prime Video, A League of Their Own (mesmo título do filme no original em inglês), que promete retratar não só a participação de mulheres negras e latinas na Liga de Beisebol, como também os relacionamentos homoafetivos de jogadoras que se identificavam como lésbicas ou bissexuais.
Por outro lado, o filme chega a fazer uma referência ao fato de que mulheres negras foram impedidas de participar da Liga devido às leis de segregação racial fortemente vigentes à época nos EUA em uma breve cena, na qual uma mulher, negra, captura e devolve uma bola que é lançada para fora do campo durante um dos jogos das Rockford Peaches, e ela e Dottie trocam olhares de respeito e solidariedade, o que faz com que essa questão não passe totalmente batida e seja um ponto a favor do filme.
Mas o mais importante dentro de toda essa discussão é que essas mulheres se uniram apesar de tudo. Apesar de origem, apesar de vivências, elas deram suporte umas às outras nas boas e nas más circunstâncias. Ousaram até mesmo a pegar as rédeas da Liga quando notam que não poderiam contar com a devida assistência de seu treinador, Jimmy Dugan (Tom Hanks), e passam a planejar elas mesmas as estratégias do time.
Embora nenhuma das personagens seja verídica, muitos detalhes aplicados às personalidades delas foram inspirados em pessoas reais específicas, como Dorothy Kamenshek, uma das maiores jogadores da Liga Americana de Beisebol Feminino (chegando a quebrar recordes desse esporte como um todo que se sustentam até hoje, independentemente de gênero), e que serviu de base para a construção de Dottie. Talvez esse seja um dos vários motivos para que as relações das personagens pareçam tão genuínas e bem feitas e que nos importemos tanto com elas no filme: os desejos que elas dividem são palpáveis. As dificuldades, também.
Dorothy Kamenshek e Geena Davis |
A própria relação de irmã que Dottie tem com Kit não é de uma convivência perfeita. As duas possuem uma tensão estabelecida desde o primeiro momento em que as conhecemos e que atinge o seu clímax quando Kit é transferida das Rockford Peaches para outro time da Liga, o que causa uma briga entre elas que poderia ter sido resumida a uma rivalidade feminina forçada em algum outro filme, mas que aqui recebe outros contornos mais tridimensionais. O mais bonito de tais contornos é o de que mesmo chateadas uma com a outra, as duas seguem se apoiando incondicionalmente. Trilhariam agora caminhos separados em times distintos, mas o amor fraternal entre elas sempre seria maior do que qualquer coisa.
Nem todas as personagens e situações de Uma Equipe Muito Especial foram citadas aqui neste artigo, mas são vários os pequenos momentos e gestos espalhados ao longo do filme que fazem com que ele seja um daqueles que deixam os nossos corações quentinhos depois de assisti-lo. A visão feminina de Penny Marshall por trás do projeto com certeza também faz diferença, e quem está encabeçando a produção da nova série de TV também é uma mulher: Abbi Jacobson. Só por essa história estar sendo recontada, mesmo que com novas personagens e linhas narrativas, já é uma amostra de como ela perdura. A memória das garotas da Liga Americana de Beisebol Feminino continua tão relevante hoje quanto foi na vida real, em 1943, e quando o filme foi lançado, em 1992, inspirando toda uma nova geração de garotas, jogassem elas beisebol ou não.
Como é bom ver amizades femininas na tela, não é mesmo? O impacto disso é muito mais forte do que a de um taco de beisebol acertando na bola e levando o público à loucura: é imensurável.
Referências
- A League of Their Own (1992) (IMDB)
- The real women who inspired ‘A League of Their Own’ (MLB)
- 'A League of Their Own' Is a Home Run Female Friendship Movie (Collider)
- Facts About A League of Their Own That Are Truly Outta There (E! Online)
- History vs the movie 'A League of Their Own' (Based On a True Story Podcast)
- Sororidade: por que precisamos falar sobre isso? (Politize)
Arte em destaque: Mia Sodré
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