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As mulheres em A rainha Margot, de Alexandre Dumas: do romance folhetim ao cinema

Alexandre Dumas tinha um gosto especial por compreender outros tempos, outros modos de viver. Assim, iniciou seu projeto literário de retratar figuras importantes da França da época, dando luz ao romance folhetim Le Reine Margot em 1844. O folhetim, que foi veiculado em importantes jornais franceses por 5 meses, apresenta-nos uma visão ainda mais apurada daquela que vimos nos romances históricos de Sir Walter Scott, que dessa vez, através da escrita de Dumas, dá mais dimensão aos personagens, fundamentais para os fatos históricos apresentados pelas mais de 700 páginas da obra.

Em meio aos embates dos huguenotes e católicos - que rendem uma das cenas mais grotescas da literatura da época -, A rainha Margot nos presenteia com histórias de amor e amizade: amizade pela relação de La Mole e Cocunás, ou da improvável amizade dos antes rivais, Henrique e o rei Carlos, sem esquecer do casamento que na verdade não passou de uma grande relação de amigos e parceiros de Margot com seu marido Henrique de Navarra. Já o amor não vem dos casais que já oficializaram suas relações pelo casamento, mas sim pela relação entre amantes, como ocorreu com Margot e La Mole, Henrique e sua amante Sauve, Carlos e sua amante com a qual teve um filho. 

Vale destacar que Alexandre Dumas preenche lacunas que os personagens históricos carregam consigo, transformando-os em motores da narrativa, que nos empurram pelos corredores do Louvre por meio de suas ações e falas. Eles eram criados livremente, mesmo que respeitando os estudos realizados sobre tais figuras. O autor, que trabalhava com professores de história, acaba, assim, criando narrativas tão detalhadas que acabaram influenciando na visão que os leitores tinham sobre a história da França; por exemplo: o apelido de Margarida, que foi criado por Dumas na obra e que ainda é utilizado para se referir à Margarida de Valois.

Margarida de Valois

A devassa e intelectual Margarida

Para falar da história da obra, partiremos pela visão de duas das personagens: Margarida de Valois e Catarina de Médici. Começando por Margarida, ou como Dumas a apelidou, Margot, é necessário pontuar que o autor escolhe uma linha de tratamento para/com a personagem. Margot é colocada no espaço de devassidão, sendo descrita como uma mulher libertina e passional, ao mesmo tempo em que é ardilosa e uma intelectual. Essas características são essenciais para o andar da narrativa, que a acompanha tanto em sua relação de amizade e parceria política com Henrique de Navarra, um huguenote, e um romance daqueles apaixonantes e cheios de atos heroicos que Margarida vive com o Conde de La Mole. 

O amor de Margarida e La Mole é daqueles que teriam a força de dominar toda a narrativa: o encontro dos dois se dá primeiro por um cruzar de olhares, depois La Mole, fugindo do massacre de huguenotes que estava ocorrendo, aparece machucado à beira da morte no quarto de Margarida, que o socorre e protege dos católicos que o queriam morto. La Mole se converte ao catolicismo e assim vira um cavaleiro de um dos irmãos da rainha recém-casada com Henrique de Navarra, mas continua a viver um amor carnal, que ardentemente infecta as páginas (e claro, temos um final trágico para o casal).

Enquanto com La Mole temos nossa rainha de Navarra sendo tratada como uma pessoa guiada por grandes atos de amor, um ser passional, com Henrique de Navarra isso já muda. Como vemos no início do folhetim, que começa com o casamento (por conveniência) de Margarida com Henrique, a fim de acalmar a tensão dos huguenotes e dos católicos, ambos sabiam que aquela união não viria a ser consumada pelo amor recíproco, mas poderia vir a ser vantajosa politicamente falando. Assim, inicia-se uma parceria: Margarida estaria a tomar conta de seu marido, pensando em um dia ser coroada rainha de Navarra, o que não poderia acontecer se Henrique fosse assassinado (como todos os huguenotes estavam padecendo e como desejava tanto Catarina de Médici, mãe de Margarida). 

Nisso, Margot se revela uma mulher de grandiosa inteligência e astúcia, uma mulher capaz de defender seus interesses e de manipular quem precisasse manipular para alcançar seus objetivos. Revelando, então, uma personagem que vai além do lugar de libertinagem e de personalidade passional a qual é relacionada. 

A vilã e mística Catarina de Médici 

Catarina de Médici, nossa rainha mãe, mesmo que colocada no espaço de vilã, sendo caracterizada como ardilosa e relacionada ao misticismo, conduz a narrativa, tendo os sacrifícios de animais, que eram realizados por seu parceiro alquimista visando entender seus próximos passos, e sua experiência ao seu lado enquanto tenta atingir seu objetivo. Antecipando o que viria a seguir, Catarina era capaz de se colocar dentro da situação a fim de, com esperança, mudar o rumo dela, assim, sendo mais do que uma peça do jogo, tornando-se jogadora. 

Catarina de Médici

Enquanto outros personagens desenvolvem relações de amizade e amor, a rainha-mãe está sempre lá planejando seu próximo ataque. Importante ainda ressaltar que, mesmo com a posição de vilã que ocupa, Catarina faz o que faz pensando na posição que seu filho preferido viria a ocupar, assim, também não deixa de ser motivada pelo amor. E se, não importa quantos sacrifícios faça, o destino nunca é favorável para Catarina e Henrique sempre sai ileso, Catarina acaba lutando uma luta perdida contra o rei de Navarra. 

É importante destacar que, sendo um objeto central a conduzir os acontecimentos, como vemos no trecho, “A mãe tinha remorso. A rainha tinha medo. A envenenadora, uma crise de ódio”, a personagem desempenhou tantos papéis que era quase onipresente na narrativa. E como, mesmo perdendo a batalha contra Henrique, ainda tem sucesso ao colocar seu filho mais querido na posição de rei (tendo pago com a vida do antigo rei e seu filho, Carlos), já no epílogo, “O rei Henrique III, felizmente soberano pela graça de Deus e de sua mãe Catarina, havia ido a uma bela procissão feita em honra de Notre-Dame de Cléry”, temos a consolidação da importância e protagonismo de Catarina, que como rainha, mãe, vilã, feiticeira, é figura central da obra. 

A adaptação cinematográfica da Patrice Chéreau 

Ao contrário das críticas que podemos tecer acerca do roteiro da adaptação de Patrice Chéreau, pouco pode ser dito de negativo sobre os recursos visuais do filme. Sobre a trilha sonora, que é de uma grandiosidade contida (com esse "contido" não sendo um defeito), a obra cinematográfica é capaz de cativar o público e de ditar o ritmo e a dinamicidade do filme, incentivando um envolvimento da audiência com a película, mas não de forma monumental, como vemos nas adaptações de O Senhor dos Anéis, e sim com uma grandiosidade íntima, o que nos aproxima dos personagens de Dumas e seus percalços no decorrer da narrativa. 

Quanto ao visual, podemos dar destaque para o cenário de violência que temos logo no início do filme (assim como nos primeiros capítulos do livro com o massacre da batalha dos católicos contra os huguenotes), com uma visão da barbárie de forma gráfica: muito sangue, corpos empilhados pelos cantos da cidade, os personagens usando lenços como máscaras para se protegerem do cheiro putrefato das ruas. Outro grande momento visual da obra: quando Margot abraça seu irmão, rei Carlos, já doente e quase morrendo, o que mancha seu vestido, rosto e braços de sangue, maximizando a aura gótica e quase vitoriana do filme. Ainda sobre as cenas de violência, Chéreau também utilizou fotografias que ilustram a violência de conflitos mundiais como inspiração, por exemplo, a ascensão do islamismo radical na Argélia e no Irã. 

Importante destacar também o cuidado que foi tomado quanto à fotografia da obra, tendo suas cenas meticulosamente planejadas, muitas delas inspiradas em pinturas da época, a fim de retratar do modo mais fiel possível a época na qual a narrativa se passa. A produção do filme emprestava dessas pinturas referências de iluminação, decoração, figurino, entre outras. Documentos históricos também foram utilizados pela produção do filme para a concepção dos cenários, a fim de dar a vida a essa época da barbárie; esses documentos foram utilizados para a construção do apartamento de Margot, por exemplo. 

Nas cenas exteriores, diversas locações foram escolhidas para compor a ideia do diretor, palácios de países como Itália, Portugal e França viraram locação de momentos distintos do filmes, enriquecendo assim a visão do período do século XVI que estavam tecendo. Com as cores sendo igualmente importantes, tivemos três cores como centrais: o preto dos trajes dos protestantes, que mistura-se com o vermelho das vestes reais e o branco dos corpos nus empilhados nas ruas de Paris. 

Assim, sobre a adaptação de A rainha Margot, podemos dividir em duas análises: pensar no filme de fato como uma adaptação da obra de Alexandre Dumas e pensar no filme apenas como um filme. Como adaptação o filme beira um fracasso colossal; mesmo com alguns pontos bem feitos, o roteiro não é capaz de abarcar tudo aquilo que Dumas foi capaz de fazer no romance folhetim. 

Uma obra do tamanho de A rainha Margot ser adaptada para um filme de menos de três horas é uma missão praticamente impossível. Enquanto o livro se divide entre a amizade e o amor, no filme temos um enfoque ligeiramente maior no romance entre Margot e La Mole, ignorando o laço tão belo criado entre La Mole e Cocunás, Henrique e Carlos, e Margot e Henrique, que são essenciais para o andar da narrativa. Com ênfase em um dos últimos atos do filme, a cena da morte de La Mole e Cocunás, que no livro é uma cena de consolidação do amor entre os dois amigos, do companheirismo entre aqueles que um dia já foram inimigos, é tratada com descaso; Chéreau deixa a cena sem qualquer impacto para a audiência. 

A escolha do modo como retrataram a Margot também é problemática, já que colocaram a personagem em um lugar de promiscuidade tão evidente que a distancia da Margot astuta, intelectual e capaz de lutar por seus interesses políticos do folhetim. A figura da Margot é colocada no espaço do amor romântico, sendo que a personagem é muito maior que isso quando nas palavras de Dumas. 

Deste modo, uma pessoa que não leu e/ou não estudou a obra de Dumas não teria uma noção fidedigna de A rainha Margot se apenas assistisse ao filme. Mas devemos  salientar que, assistindo o filme de forma mais descontraída, é difícil não se agradar com a estética e a construção dele como um todo, já que ele não falha em entreter, dando destaque à escolha da atriz que interpretou a Margot (Isabelle Adjani) e a atriz que interpretou a Catarina (Virna Lisi), que são excepcionais e fizeram o seu melhor com o roteiro fraco que receberam. 

Referências 

Juliana Toivonen
Licenciada em Letras pela Universidade Federal de São Paulo. Entusiasta da literatura de autoria feminina e do resgate de vozes e narrativas perdidas. Pesquisadora na área da literatura portuguesa. Publicou o livro "palavras roubadas de mulheres mortas" pela Margem Edições em 2021.

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