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Raio X do Brasil: a representatividade da periferia nos anos 90 no terceiro álbum dos Racionais MC's


No Brasil, a década de 1990 foi marcada pela popularização do rap. Entretanto antes de ser amplamente conhecida nos quatro cantos da nação, a história do rap foi iniciada no distrito de Bronx, em Nova York, com grandes nomes do gênero musical, como o Dj Afrikaa Bambaataa e o grupo Public Enemy, ambos produtores de críticas político-sociais expressadas em suas canções. Rapidamente o Rhythm And Poetry (Rap) ficou conhecido por seu caráter de protesto e denúncia de populações marginalizadas. Em 1988, inspirados no trabalho de Public Enemy e no ativismo de Malcom X, surgiu o grupo de rappers Racionais MC's.

O começo dos anos 90 foi marcado por uma situação política, econômica e social delicada e instável. O Brasil havia recentemente saído de um período de Ditadura Militar e o então presidente eleito, Fernando Collor de Mello, conduziu uma série de políticas desastrosas que pioraram as crises pelas quais vinham passando a população brasileira. Neste contexto, o rap dos Racionais MC's trouxe à tona problemáticas da periferia, tocando em temas como miséria, violência policial, racismo e as dificuldades de oportunidades de mobilidade social em que vivem as populações mais pobres e marginalizadas. 

A arte de Edi Rock, Mano Brown, KL Jay e Ice Blue não é considerada revolucionária somente pelas fortes e magníficas composições musicais, mas também pelo modo de disseminação de suas canções. Suas músicas não ficaram conhecidas e se popularizaram por meio da grande mídia, mas sim de forma comunitária. As produções artísticas advindas da Zona Sul periférica de São Paulo representavam, de modo geral, toda a população que vivenciava (e vivencia) o duro cotidiano das favelas.

Diferentemente da maioria dos artigos referentes ao Racionais MC´s, este texto não será sobre as faixas de Sobrevivendo no Inferno  (o álbum mais conhecido), mas sim sobre as do seu antecessor, Raio X do Brasil, responsável por pavimentar e consolidar o caminho do grupo até sua obra mais aclamada.


Algumas músicas do álbum foram separadas para esta análise justamente por possuírem estilos de composições diferentes das obras anteriores e que permaneceram nos seguintes trabalhos dos Racionais MC's. Tais escritas são marcadas por uma voz sem julgamento da condição do próximo (mesmo que esse tenha se envolvido alguma vez na vida com tráfico e/ou uso de drogas, roubos etc.), alerta sobre as consequências das diferentes ilusões perigosas presentes nas periferias e compreensão das diversas situações do povo marginalizado.

Introdução


Esta faixa, de nome autoexplicativo, aborda a temática central do álbum: denúncia da marginalização da população negra. Desse modo, o grupo resgata as origens do rap e expõe as estruturas desiguais da sociedade.

Além disso, já é possível notar o planejamento da estrutura do álbum que se mostrou presente, também, em Sobrevivendo no Inferno, cuja estruturação é tão magistral quanto The Dark Side Of The Moon, de Pink Floyd, e Sgt Pepper´s Lonely Hearts Club Band, de The Beatles, segundo estudiosos da área.

Fim de semana no parque


O contraste de vivências de dentro e fora da periferia é a pauta abordada na segunda música do álbum. Enquanto a clásse média e alta seguem com seus filhos com brinquedos eletrônicos para o parque, as crianças das periferia correm, sem briquedos, em qualquer lugar:

Com seus filhos ao lado, estão indo ao parque
Eufóricos, brinquedos eletrônicos
[...]
A molecada lá da área como é que tá
Provavelmente correndo pra lá e pra cá
Jogando bola descalços na rua
É, brincam do jeito que dá

Em Fim de semana no parque, é possível notar que o eu-lírico adota uma postura sem julgamento do próximo (como mencionado anteriormente) e de compreensão. Segundo a canção, as atitudes das pessoas são corroboradas, majoritariamente, pelos diferentes tipos de lugares sociais aos quais elas pertenceram quando crianças, dado que acontecimentos traumáticos na primeira infância moldam o cidadão, também, em sua vida adulta. Tal explicação se dá nos seguintes versos:

Gritando palavrão, é o jeito deles
Eles não têm video-game, as vezes nem televisão
[...]
Um menininho de 10 anos achou o presente
Era de ferro com 12 balas no pente

Aqui, o sonho da população marginalizada é de ter, sobretudo, uma infância sem violência e miséria e o desejo de conquistar paz e oportunidades que lhe são negadas. Outras temáticas tratadas com muita força é a violência policial e institucional, bem como os perigos comuns às zonas de periferia, como o tráfico e uso de drogas. 

Mano na porta do bar


A máxima de Rousseau “O homem nasce bom, mas a sociedade o corrompe” é a pauta desta faixa. Inicialmente é apresentado aos ouvintes um personagem humilde, trabalhador, simples e feliz com o pouco que tem de bens em sua vida. Entretanto, mais adiante, esse sujeito é, aos poucos, devorado pelo pela ambição de conquistar a própria mobilidade social, fator normalizado pelo eu-lírico da música, uma vez que todas as pessoas querem destaque financeiro e uma vida confortável diferente daquela da periferia. A normalidade da situação é destacada nos seguintes trechos:

A lei da selva consumir é necessário
Compre mais, compre mais
Supere seu adversário

Embora o personagem deseje uma vida melhor, ele faz uso do pensamento maquiavélico “os fins justificam os meios” para alcançá-la, pois entra no mundo do tráfico de drogas. Assim, essa situação comprova o mito da meritocracia, porque, por mais que o marginalizado tenha trabalhado e se esforçado em sua humilde ocupação anterior, ele recorreu à meios errados e mais fáceis por causa de sua ambição. Na música também são ressaltadas outras problemáticas produzidas pelo capitalismo, como a própria construção da pobreza de milhares de pessoas:

O seu status depende da tragédia de alguém,
É isso, capitalismo selvagem

Homem na estrada


Perdão e mudança são as principais temáticas desta faixa. Há uma conexão desta música com a história de Mano na porta do bar, já que o personagem se arrepende de suas ações. Tratando das condições subumanas da periferia, são ressaltadas também a violência policial, de classe e entre os próprios parceiros de comunidade, fomentada pela hipocrisia das instituições sociais e políticas de fora da favela. 

Os ricos fazem campanha contra as drogas
E falam do poder destrutivo delas
Por outro lado promovem e ganham muito
Dinheiro com álcool que é vendido na favela

O perdão e a mudança presentes aqui podem ser notados no próprio nome da canção, Homem na estrada, uma analogia ao ser humano que está em constante processo de transformação, buscando o melhor para si mesmo, muitas vezes sozinho, numa árdua jornada. Afinal, na periferia. o Estado se mostra presente mais pela presença e violência policial do que por meios de educação, saúde, saneamento básico e instituições que auxiliaria a população ao acesso de condições dignas de vida e mobilidade social. 

Ademais, são retratados os problemas na educação pública, da falta de incentivo aos estudantes pobres e das péssimas condições em regiões de miséria, que fazem os jovens e crianças sentirem-se desmotivados a estudar.

Ao longo de oito minutos e cinquenta e dois segundos, muitos são os assuntos abordados nesta música, de forma completa e inter-relacionados. Trata-se de uma construção complexa que traça caminhos entre opostos: crime e redenção, exclusão e importância, pobreza e riqueza e morte e vida.

Canto marginal dos Racionais MC´s


Para finalizar, é fato que a arte dos Racionais é ousada e feita para incomodar as estruturas opressoras da sociedade, não somente nos anos 90, mas por todo o tempo que perdurar as injustiças sociais. A cultura brasileira não foi mais a mesma depois das músicas dos quatros periféricos da Zona Sul de São Paulo, pois o canto do povo marginal sempre será o mais forte de todos.

A justiça criminal é implacável
Tiram sua liberdade, família e moral
Mesmo longe do sistema carcerário
Te chamarão para sempre de ex-presidiário
Não confio na polícia, raça do c*r*lh*
Se eles me acham baleado na calçada
Chutam minha cara e cospem em mim é
Eu sangraria até a morte já era, um abraço!

Referências

Laura Ferracini
Futura professora de línguas e apaixonada por Virginia Woolf, mas lê tudo o que lhe prende. Espalhando leituras no interior do interior de São Paulo, ou para os íntimos, Dolcinópolis.

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