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O Livro do Travesseiro: no meio do caos, uma escritora do aprazível


Século X no Japão, período Heian (794 - 1186), na região da atual cidade de Kyoto, na Corte da Imperatriz Teishi (976-1000), a autora de uma das obras mais clássicas da história nipônica vivia seus dias como dama da corte no palácio imperial. Seu nome era Sei Shônagon (966 - ?). Sua única obra conhecida, já suficiente para entrar como leitura obrigatória para se conhecer a literatura japonesa, é O Livro do Travesseiro (Makura no Soshi), redigido entre 994 e 1001. 

Falando sobre a obra, ela não é classificável como um romance, nem um relato histórico de algum personagem épico, nem mesmo se enquadra como poesia (ao menos não no sentido comumente atribuído). A forma é de uma espécie de compilação de textos que não ultrapassam dez páginas, sendo que uma boa parte deles se estendem por apenas alguns parágrafos. Não raro, o leitor se depara com uma página que contém apenas uma frase. O conteúdo é ainda mais intrigante: vai de listas aparentemente aleatórias a comentários sórdidos sobre os personagens que conviviam com Sei. A rigor, o nome desse gênero literário é "zuihitsu", que significa, literalmente, “conforme o correr do pincel”, o que já entrega bastante sobre esse tipo de produção: uma escrita que independe de ordem cronológica, que surge de pensamentos soltos do(a) escritor(a) e é transposta para o papel sem a necessidade de filtros ou de forma definida. Os textos desse gênero são sempre pautados na vida “real” do(a) escritor(a) - ou seja, não se tratam de produções fictícias - e, normalmente, são permeados de algum senso de humor. 

“Coisas que são raras. Genro elogiado por sogro. Ainda, nora querida por sogra. Pinça que arranca bem os pelos. Empregado que não maldiz seu amo. Pessoa sem nenhuma mania.”

Mas acredite, assuntos sérios eram o que não faltavam ao redor de Sei. Enquanto seu olhar e sua tinta estavam sobre a forma que as pessoas da corte amarravam as roupas, a Imperatriz Teishi via seu prestígio desmoronar. Acontece que Teishi mantinha a sua posição graças à influência de seu pai, Fujiwara no Michitaka, um importante chanceler. No entanto, com a morte dele em 995, Fujiwara no Michinaga assume o título, para a infelicidade de Teishi, já que a inimizade entre o falecido e Michinaga era de conhecimento geral, e Michinaga não perderia a chance de fazer o seu nome e o de sua família entrar para os registros históricos. 

Esse objetivo, na verdade, acabou sendo bastante simples de concretizar. Em anos de união com o Ichijô, Teishi ainda não havia dado à luz a um herdeiro. Com esse fato em mãos, juntamente à influência de sua posição, Michinaga consolidou a ruína de Teishi ao fazer de sua própria filha a nova esposa do Imperador, descredibilizando e humilhando a primeira esposa. Depois das vividas amarguras, o fim de Teishi chegaria aos seus 24 anos, durante o parto de sua segunda menina. 

Não bastasse a oposição entre as duas esposas do Imperador, suas respectivas damas de companhia também mantinham uma relação de antagonismo. Acontece que a dama da nova esposa era ninguém mais, ninguém menos, que Murasaki Shikibu, autora do primeiro romance literário do mundo - O Conto de Genji (Genji no Monogatari), escrito entre 1001 e 1013. A diferença do estilo de escrita das duas é um tema que, ainda hoje, fomenta uma espécie de rivalidade literária póstuma entre as duas escritoras. 

Diferentemente de Sei, Murasaki seguia a estética mais apreciada nas artes de seu período: o mono no aware. Bastante presente nas mais diversas manifestações artísticas japonesas, esse conceito é baseado em uma apreciação, não raramente melancólica, da efemeridade das coisas. O desabrochar e o inevitável cair das flores de cerejeira, feitos heróicos que logo são levados pelas areias do tempo, a ascensão e o declínio de um amor. Esses são temas recorrentes do mono no aware, “o patho das coisas”.

“Ainda mais aprazível é ouvir tocarem o alaúde ou a flauta nessas carruagens, e é uma lástima que se afastem. Em ocasiões como esta, até o cheiro dos arreios do traseiro do boi é encantador, talvez porque me seja desconhecido - por mais estranho que pareça.”

Yamashiro, snow at the Imperial Palace, Lady Sei Shonagon, por Yoshu Chikanobu (1885)

A escolha de Sei, em seus textos, no entanto, é pelo prazeroso, pelo agradável, pelo "okashi" - palavra japonesa que pode ter todos esses sentidos e é, inclusive, bastante presente nos próprios textos da autora. Segundo o que ela mesma nos conta - em uma espécie de apêndice denominado “Essas Folhas” - , os papéis nos quais escreveu foram dados a ela pelas mãos de sua Imperatriz, que, por sua vez, os ganhou como presente de um Alto-Conselheiro. Teishi, ao receber tal presente, teria perguntado a Sei o que deveriam registrar naquelas folhas, e a sugestão da dama de corte foi que fizessem delas um “travesseiro”. Aqui existe um trocadilho. Em japonês, a palavra “travesseiro” é "makura", que se parece bastante com a palavra "utamakura" (cuja tradução é “travesseiro de poemas”), uma figura de linguagem que denota que a sugestão de Sei era que as páginas fossem usadas para literatura, não registros históricos - o costume da época. Teishi teria, então, aderido à ideia e deixado o presente sob os cuidados de sua dama. Esse episódio, evidentemente, é o que dá nome ao livro.

Não há, além da narrativa de Sei, qualquer indício de que essa história seja 100% verdadeira. Seja como for, essas folhas chegaram até ela, e a autora conta que, ao escolher o que preencheria todo aquele branco, optou por “aquilo que encanta a todos e é admirado pelas pessoas: poemas, árvores, plantas, pássaros e insetos”. E ainda desabafa, em seguida, sobre as próprias expectativas e as alheias: 

“[...] o fato é que o que escrevi não preenche as minhas expectativas; pelo contrário, tudo ficou muito aquém, e certamente serei mal falada por revelar minha limitação, mas empenhei-me com todo o meu coração em expressar o que penso em tom de brincadeira, sem nenhuma pretensão de ser comparada a outros escritos.”

Ela encerra esse trecho contando que o seu manuscrito veio a público depois do Administrador de Ise vê-lo dando sopa em uma visita à sua casa e o “pegar emprestado” (contra a sua vontade). 

No entanto, não é porque a escrita de Sei não segue uma lógica de acontecimentos e que parta de sua visão individual que a sua obra não seja extremamente útil para entender o seu tempo e seu lugar. Desde o final da década de 1960, historiadores já discutiam sobre a importância de ampliar o conceito de documento histórico para produções que iam além dos textos oficiais, incluindo todas as formas de arte, entre elas, é claro, a literatura. Sei nos entrega, em textos de poucos parágrafos, uma visão de dentro do palácio imperial; comenta sobre as pessoas de sua convivência e, de quebra, revela muito sobre a mentalidade de seu contexto - embora ela talvez não represente todas as damas da nobreza de seu período. 

Para quem sente a curiosidade de se aventurar nesse livro, mas tem insegurança quanto a sua idade milenar, não se preocupe: por mais que o contexto do livro seja distante de nós, pessoas brasileiras do século XXI, é muito fácil se identificar com as observações, reflexões e sentimentos relatados por Sei. Quem sabe você não o faça de livro de cabeceira - de travesseiro não é muito recomendado, pode acabar amassando a capa e ainda te provocar uma bela dor de cabeça pela manhã - e acabe recorrendo a ele sempre que precisar (re)lembrar do "okashi" da vida?  

“Coisas que parecem próximas. A Terra Pura¹. A travessia de um barco. A relação entre um homem e uma mulher.”

Nota:

  • ¹De acordo com o rodapé do próprio livro, “Trata-se do Paraíso Ocidental da Terra Pura, que parece distante, mas o crente se sente próximo, pois para lá é admitido ao simplesmente invocar o nome de Amida Buda”.


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