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Marvin Gaye e a voz que ainda ecoa

Há pouco mais de um ano, o álbum What’s Going On, que viria a ser consagrado como o disco mais influente da black music e o mais importante da história da música, completou meio século. Hoje em dia, muitos desconhecem as origens e a inspiração dessa grande obra e, especialmente, a trajetória marcante, porém trágica e cheia de percalços de seu criador, Marvin Gaye, o príncipe do Soul.

Marvin Pentz Gay Jr. nasceu em 1939, em Washington DC. Seu pai, Marvin Gay Sr., era pastor em uma igreja petencostal denominada House of God, e sua mãe Alberta Cooper, era uma dona de casa que já havia trabalhado como faxineira e posteriormente como professora. Nascida na Carolina do Norte, ela se mudou para a capital do país, onde conheceu seu futuro marido, quando já tinha um filho de outro relacionamento. Marvin Sr. aceitou se casar com Alberta (naquela época, isso era considerado “salvar a honra” de uma mulher que tivesse engravidado fora do matrimônio), mas com a condição de que Alberta mandasse o filho para viver com sua irmã, pois ele não poderia aceitar criar o filho de um outro homem. 

Ou seja, apesar de criado no meio religioso, Marvin vivia também em um contexto familiar tóxico, de intensos conflitos e violência doméstica, o que, infelizmente, não é incomum dentro de ambientes fundamentalistas. Seu pai, que vivia de pregar a palavra de Deus, era também um homem machista, violento e abusivo, tanto com a esposa quanto com Marvin e seus quatro irmãos, incluindo seu meio-irmão, que fora rejeitado.

Crescendo nesse ambiente, Marvin passou a participar dos sermões do pai e iniciou sua vida musical entoando canções gospel e tocando piano na igreja. Com o tempo, foi aprimorando cada vez mais sua voz, que já era, por natureza, uma potência que chamava a atenção, e aprendeu a tocar bateria ao integrar a banda da escola que frequentava. Inspirado por seu grande ídolo Sam Cooke, Marvin adicionou um “e” a seu sobrenome e há boatos de que também o teria feito para se dissociar de seu pai - com quem nunca teve uma boa convivência - e de um sobrenome que, além de tudo, gerava rumores infundados sobre sua suposta homossexualidade. 

Oficialmente, sua carreira musical iniciou-se quando se juntou ao grupo de doo-wop The Moonglows, tendo participado de canções de célebres artistas como Etta James e Chuck Berry. Sua fama começou a crescer quando tocou bateria em Please, Mr. Postman, das Marvelettes, que viria a ter uma versão gravada pelos Beatles anos depois. Quando se mudou para Detroit, pelo inegável potencial de seu timbre, por seu carisma e por sua notória desenvoltura no palco, Marvin Gaye ganhou seu espaço dentro da célebre Motown Records - primeira gravadora do mundo concebida e liderada por pessoas negras e responsável por revelar ao mundo diversos grandes nomes da soul music e do R&B, uma verdadeira referência no cenário musical mundial - tornando-se posteriormente o primeiro cantor negro a assinar um contrato de mais de 1 milhão de dólares.

Após emplacar alguns hits solo, Marvin encontrou em Tammi Terrel, também contratada pela Motown, uma grande parceira e amiga, com quem eternizou a contagiante “Ain’t No Mountain High Enough” em seu álbum United, que foi um grande sucesso em 1967. Entretanto esse encontro fortuito não durou muito tempo, pois Tammi morreu em 1970 com apenas 24 anos de idade, em decorrência de um tumor no cérebro, após desmaiar no palco durante uma de suas apresentações ao lado de Marvin, e depois de uma longa e dolorosa batalha de 3 anos contra o câncer, deixando o cantor devastado e sem qualquer clima para celebrar o sucesso estrondoso que viria a ser o lançamento da música “I Heard Through the Grapevine” nesse ínterim. Com esse trágico episódio, Marvin teve uma clara demonstração de como a vida poderia ser dura, impiedosa e implacável. Enlutado e muito deprimido, passou cerca de dois anos sem realizar uma apresentação ao vivo. 

Tammi Terrel e Marvin Gaye

Passado algum tempo e então casado, desde 1962, com a compositora e executiva Anna Gordy, irmã do visionário fundador e presidente da Motown, Barry Gordy Jr., Marvin, com seu jeito autêntico e, muitas vezes, considerado rebelde, se mostrava saturado dos padrões impostos pela gravadora. Na época, além de se sentir triste e contemplativo após a morte precoce de sua amiga, ele não conseguia tirar da cabeça as terríveis histórias contadas por seu irmão mais novo, que lutara na guerra do Vietnã, além de não se conformar com a constante e progressiva degradação do meio-ambiente e com a extrema pobreza, a desigualdade social e a violência, especialmente a advinda da brutalidade policial - mazelas muito presentes e sentidas nos guetos estadunidenses. Em suas palavras, o mundo nunca havia sido tão deprimente, mas, em contrapartida, ele trabalhava muito melhor nesse estado de espírito, sob pressão. 

Assim, o astro insistiu na empreitada de gravar o single “What’s Going On”, que, a princípio, enfrentou grande resistência dos empresários e produtores por seu teor de protesto, mas acabou resultando na composição do exitoso álbum de mesmo nome, que viria a influenciar diversos artistas negros, tais como Stevie Wonder, a buscarem composições mais intensas e autorais.

"com a obra, artistas negros sentiram uma nova liberdade para ultrapassar os limites musicais e políticos em suas artes."

Nos anos 70, canções de protesto não eram bem-aceitas pelas gravadoras por não serem consideradas rentáveis. Porém Marvin impôs, de forma muito corajosa, o seu desejo de gritar ao mundo essas histórias devastadoras, mas de uma forma bela e poética, e conseguiu, assim, provar como boas músicas também podiam estar repletas de importantes críticas sociais. A arte não poderia estar fechada para esses temas e dissociada da realidade, muito pelo contrário, ela não só poderia como deveria ser um meio de conferir voz, espaço e alcance a tais assuntos. O resultado foi essa obra-prima que, não por acaso, encabeça a lista da Rolling Stone dos 500 melhores álbuns de todos os tempos e que hoje se encontra ainda muito presente como influência e fonte de inspiração para diversos movimentos sociais e outras expressões artísticas. 

Ao assistir e ouvir Marvin Gaye cantar com os vocais isolados, fica evidente como ele era dono de uma voz especial e inigualável, capaz de sustentar qualquer apresentação com graciosidade: 

 

“Mãe, mãe
Há muitas de vocês chorando
Irmão, irmão, irmão
Há bastante de vocês morrendo
Você sabe que nós temos de encontrar um meio
Para trazer um pouco de amor hoje

Pai, pai
Nós não precisamos agravar a situação
Veja, guerra não é a resposta
Pois apenas o amor pode conquistar o ódio
Você sabe que nós temos de encontrar um meio
Para trazer um pouco de amor aqui hoje

Piquetes e cartazes
Não me castigue com brutalidade
Fale comigo, então você poderá ver
Ah! O que está acontecendo
O que está acontecendo
Sim, o que está acontecendo
Ah! O que está acontecendo”

Sua carreira de sucesso prosseguiu com o lançamento de Let’s Get It On, em 1973, que viria a ser, por sua vez, seu álbum mais vendido, e com a gravação de duetos com Diana Ross, que renderam o álbum Diana & Marvin, apesar de sua relutância em gravar novamente com uma dupla após a traumática perda de Tammi Terrell. 

Diana Ross e Marvin Gaye

Lançou seu grande último sucesso - o álbum Midnight Love - em 1982, cuja faixa principal é a inesquecível "Sexual Healing", que ganhou dois Grammy. 

Após um longo e turbulento processo de divórcio - que foi inevitável mesmo após a adoção de seu primeiro filho, também batizado de Marvin -, Gaye deixou Anna Gordy e se casou com Janis Hunter, uma fã dezessete anos mais nova que ele, com quem oficializou a união em 1977. A esta altura, mesmo antes de ter se divorciado oficialmente de Anna, os dois já haviam concebido dois filhos, Nona e Frankie (batizado em homenagem a seu irmão mais novo, que havia lutado na guerra e o inspirado na composição de seu maior legado).

Em sua biografia, Janis revela que Marvin, aquele homem belo, charmoso e imponente, de voz potente e olhos gentis, tinha também um lado obscuro. Onde havia tamanha luz, também havia sombras. Ela o descrevia como um companheiro ciumento e, por vezes, possessivo, e ambos tinham discussões violentas que, associadas ao seu crescente uso de drogas, acabaram levando-a a deixá-lo. Durante um tempo, falido após a batalha judicial com Anna, Marvin se mudou com Frankie para o Havaí e Janis permaneceu com Nona em Los Angeles, dividindo a família. Divorciaram-se oficialmente em 1982. 

Marvin Gaye e família

A exemplo de outros notáveis artistas que marcaram a história, Marvin Gaye tinha uma mente brilhante, porém atormentada. Era uma alma dividida, como bem definido por seu biógrafo. Sentia-se perturbado por todas as questões sociais e pessoais que o moviam, mas que também o dilaceravam por dentro. Aturdido por uma severa depressão em decorrência de tudo isso, Gaye passou a tentar o suicídio por diversas vezes em 1983, e acabou voltando a morar com sua família de origem em Los Angeles. 

“[...] Sua voz é celestial, mas cheia de dor, agonia e êxtase ao mesmo tempo.”

Em 1984, após uma violenta briga com Marvin Sr., decorrente de mais um episódio de violência doméstica contra sua mãe Alberta, a quem sempre tentava proteger, Gaye foi morto com dois tiros disparados pelo próprio pai na véspera de seu aniversário de 45 anos, com uma arma que ele mesmo havia dado de presente ao patriarca, com o objetivo de manter a família protegida de possíveis violências externas. 

É devastador pensar que aquela voz verdadeiramente celestial - que cantou “Pai, nós não precisamos agravar a situação”, que devia haver um meio, que apenas o amor poderia vencer o ódio - foi silenciada para sempre justamente dessa maneira, em um dos acontecimentos mais tristes e chocantes da história da música.

O mundo de hoje, infelizmente, segue refletindo a necessidade de se escutar os apelos presentes em “What’s Going On”, essa obra única e atemporal. As palavras de Gaye ainda ecoam e se mostram mais importantes e necessárias do que nunca. Sua eterna voz traz a recordação de que, mesmo diante de toda a escuridão que possa haver, ainda é possível encontrar beleza e poesia e, apesar de tudo, devemos continuar lutando para que a luz jamais se esvaia.


Referências

Vanessa Vieira
Brasiliense, encantada por histórias – reais e inventadas – desde criancinha, sempre encontrou nos livros e nos filmes seus melhores companheiros. Formada em Letras e apaixonada por Literatura e Cinema, tornou-se servidora pública na área da Cultura, sempre acreditando no potencial que esta tem de transformar e salvar vidas.

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