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O gato sem nome de Holly Golightly


Há uma magia particular nos primeiros minutos da aurora. Um silêncio. Uma calma. Numa manhã de setembro, conforme as primeiras rajadas de sol irrompem dentre as nuvens, vemos um táxi solitário cruzar a Quinta Avenida. Ao se aproximar da 57th Street, a porta se abre. Trajando um elegante vestido preto, design exclusivo de Hubert de Givenchy, Holly Golightly se aproxima da vitrine da Tiffany com uma embalagem nas mãos - o seu café da manhã. Assim começa um dos filmes mais icônicos da história do cinema, o clássico Bonequinha de Luxo (Breakfast at Tiffany's).

Há cerca de 61 anos, o mundo foi apresentado à icônica Holly Golightly. Com seu visual fino e elegante, a personagem tornou-se um elemento integral da cultura cinematográfica estadunidense. O visual, eternizado em diversos pôsteres, capas de revista e filmes, tornou-se símbolo de requinte e ambição feminina, sendo imitado por celebridades como Anne Hathaway, Natalie Portman e Leighton Meester (ao interpretar Blair Waldorf em Gossip Girl). 

No entanto, se a iconografia de Bonequinha de Luxo ultrapassou as fronteiras do cinema e do tempo, pouco se sabe a respeito da trajetória de Holly Golightly como personagem. Na verdade, diversos fatores conhecidos e desconhecidos colaboraram para a completa transformação de Holly - de uma jovem de 19 anos, solitária, cuja identidade se desdobra em vários níveis de tragédia, a uma mulher de 31 anos, cujo desejo pela independência revela um medo instintivo de compromisso. 

Fato é que Truman Capote, autor do livro Bonequinha de Luxo, jamais aceitou as mudanças empreendidas na adaptação. Pelo contrário: pelo resto de sua vida, Capote afirmaria que aquela se tratava da pior escalação de elenco que ele já havia visto. Em suas muitas transformações, Bonequinha de Luxo converteu-se numa história com vida própria, capaz de suscitar emoções distintas da obra na qual se baseou. E nesse processo, também perdeu os elementos essenciais que faziam do livro de Capote uma produção subversiva em sua época. 

Se quisermos analisar as muitas facetas de Holly Golightly, precisamos falar de Capote. E se falamos de Capote, falamos também do conflituoso processo de publicação de Bonequinha de Luxo. Quais foram as principais mudanças da adaptação cinematográfica? Como a ideia original de Capote foi modificada? E o mais importante, onde entra o gato sem nome de Holly Golightly?

Capote e a tragédia do Sul

Truman Streckfus Persons nasceu em 30 de setembro de 1924, em Nova Orleans, Louisiana, filho de Archulus Persons e Lillie Mae Faulk. Após o divórcio de seus pais, Truman, então com quatro anos, foi enviado para viver com seus parentes no Alabama, enquanto sua mãe partiu em direção à cidade de Nova York.

Apresentando-se como Nina, Lillie Mae Faulk introduziu-se na sociedade nova-iorquina com a expectativa de realizar seus sonhos de glamour. No entanto, Nina nunca permanecia muito tempo na cidade - sempre que um de seus relacionamentos chegava ao fim, ela retornava ao Alabama para consolar-se com seus parentes e com o filho. Eventualmente, Lillie Mae se casou com o empresário latino-americano Joseph Garcia Capote, adotando o nome Nina Capote. Assim, em 1933, Truman mudou-se para Nova York para viver com sua mãe e seu padrasto, adotando o sobrenome Capote. 

Truman Capote

Não seria um exagero dizer que toda a vida de Truman Capote foi marcada pelo seu relacionamento problemático com a mãe. De acordo com Peter Krämer

"Ela o abandonou por longos períodos quando ele era criança, enfeitiçou-o com sua beleza, vivacidade e glamour enquanto ele crescia, e expressou descrença, desgosto e raiva quando ele a confrontou com sua homossexualidade."

O suicídio de Nina em 1954, traria um grande impacto para Capote. Não obstante, seu primeiro projeto após a morte da mãe foi Bonequinha de Luxo, cujas semelhanças com a vida de Lillie Mae são inquestionáveis. Tanto Nina quanto Holly cresceram no Sul rural, e sonharam durante toda a sua vida pelo glamour de Nova York. As duas mudaram seus nomes "caipiras" (Lillie Mae e Lulamae) para nomes mais sofisticados (Nina e Holly). Não só isso, mas ambas se envolveram com homens latino-americanos, como é o caso de José da Silva Pereira, o noivo brasileiro de Holly.

Em outras palavras, é possível ver Bonequinha de Luxo como um espelho dos próprios sentimentos conflitosos de Truman Capote diante da perda de sua mãe e dos rumos de sua própria vida. Holly Golightly, em sua gênese, captura a efemeridade dos sonhos e ambições de Nina Capote, bem como os medos e ansiedades do próprio Truman. Assim como Truman Capote, Holly Golightly também partiu de uma infância caótica no Sul rural e ascendeu aos ciclos mais altos da sociedade nova-iorquina através de seu talento, personalidade e charme. 

Mas Bonequinha de Luxo não se trata apenas de um estudo íntimo do próprio Capote e de seu relacionamento com a mãe, como também consiste na fotografia de uma época. Em seus anos de trabalho em Nova York, Truman Capote conheceu muitas Ninas e muitas Hollys - meninas efeméridas, anônimas, que vinham de cidades pequenas em busca de fama, glamour e dinheiro, apenas para desaparecerem em pouco tempo. Trazer essas meninas para a luz da ribalta era o seu principal objetivo. 

Holly Golightly, portanto, representava uma categoria muito específica de mulheres nos Estados Unidos dos anos 1940: mulheres que vinham de cidades pequenas, de outros países, ou de classes mais baixas, e tinham que se reinventar para adentrar a elite social e econômica. Mulheres como Lillie Mae. Mulheres com trajetórias parecidas a do próprio Truman Capote. 

Sob as luzes da ribalta: a adaptação de Bonequinha de Luxo

Em 1958, Truman Capote finalizou Bonequinha de Luxo. Inicialmente, o livro deveria ser publicado pela Harper’s Bazaar, que adquiriu os direitos de publicação por $2.000. Porém mediante o conteúdo subversivo da obra, a revista rejeitou o livro. Capote, por sua vez, recusou-se a alterar qualquer aspecto do enredo. Em outubro de 1958, o livro foi publicado pela Random House, sendo posteriormente serializado pela revista Esquire. 

Em dezembro do mesmo ano, iniciaram-se as negociações para a adaptação cinematográfica do livro. Visando o sucesso literário e a notoriedade de Truman Capote, a Paramount adquiriu os direitos de adaptação de Bonequinha de Luxo por um total de $65,000. 

Desde o início, os aspectos subversivos de Bonequinha de Luxo eram uma das principais preocupações do estúdio. Embora a crítica apresentasse um panorama positivo do livro, muito se falava dos aspectos morais do enredo, especialmente no que dizia respeito à sexualidade de Truman Capote. Abertamente gay, Capote já havia enfrentado críticas negativas quanto ao conteúdo de suas obras, incluindo a inserção de subtextos homossexuais em seus contos. 

Por essa razão, quando os produtores da Paramount contrataram Sumner Locke Elliott para escrever o roteiro de Bonequinha de Luxo, eles esperavam que o livro de Capote fosse utilizado apenas como um esqueleto. Elliott, no entanto, não foi capaz de compreender a proposta do estúdio. Pelo contrário, seu roteiro foi, em grande parte, fiel ao tom sombrio e agridoce da obra original. Em abril de 1959, insatisfeita com versão escrita por Elliott, a Paramount contratou o roteirista George Axelrod.

Axelrod transformou o enredo de Capote numa típica comédia romântica, removendo a maior parte dos elementos subversivos e transportando a história de 1943 para 1960. Atendendo aos pedidos dos produtores, o roteirista também cuidou de dar a Holly Golightly um par romântico, Paul Varjak, no lugar do narrador sem-nome, "afeminado" e provavelmente homossexual de Truman Capote. 

Outra mudança significante no enredo foi a adição de Emily Eustace "2E" Failenson, interpretada por Patricia Neal. Com a introdução dessa personagem, Axelrod desejou aumentar a conexão entre Holly e Paul, insinuando que Paul receberia dinheiro de Emily em troca de sexo. Essa mudança serviu também para reafirmar a heterossexualidade de Paul, tão ambígua em sua contraparte literária. 

Embora Truman Capote idealizasse Marilyn Monroe como Holly Golightly, o estúdio optou por escalar Audrey Hepburn para o papel. A decisão partia de dois pontos centrais. Em primeiro lugar, na época de produção do filme, Marilyn Monroe havia adquirido uma fama de atrasos e esquecimento de falas. Sua participação no filme não só implicaria em gastos, como também em possíveis atrasos nas filmagens. Em segundo lugar, com a escalação de Audrey Hepburn, uma atriz conhecida por sua figura etérea, a Paramount poderia amenizar os aspectos mais sexuais de Holly Golightly e torná-la mais palatável. 

Assim, após muitas modificações, nasceu o filme Bonequinha de Luxo.

As muitas facetas de Holly Golightly 

Talvez a pergunta mais comum entre os espectadores modernos de Bonequinha de Luxo seja em relação ao trabalho de Holly. Afinal, seria Holly Golightly uma prostituta de luxo, uma acompanhante ou simplesmente uma aspirante a socialite

Na adaptação cinematográfica, a profissão de Holly é vagamente aludida. Há menções sutis sobre o seu estilo de vida, embora os aspectos mais intrínsecos de sua sexualidade permaneçam ocultos para a maior parte da audiência. Por outro lado, na obra original, as atividades de Holly são mais evidentes. 

Em uma entrevista à revista Playboy, Truman Capote afirmou: "Holly acompanhava empresários bem-sucedidos para restaurantes e clubes noturnos, na expectativa de que o seu companheiro lhe desse algum presente ou dinheiro". Ou seja, tratava-se de uma relação plenamente transacional - ela os acompanhava nas festas, fazia uma boa impressão para seus colegas de trabalho, mas não havia nenhum envolvimento emocional dos dois lados. O homem não esperava nada além de boa companhia, e ela não esperava nada além de um presente. No entanto, se Holly quisesse, ela poderia levar o seu acompanhante para casa. 

Nesse ponto, o relacionamento estabelecido por Capote entre seu narrador e Holly apresenta uma diferença substancial do relacionamento cinematográfico. Desprovida de interesses românticos, a ligação de Holly e o narrador não é transacional. Não há sexo, nem dinheiro, nem qualquer outra conexão entre eles além da amizade. 

Em termos gerais, o roteiro de Axelrod tratou de apagar grande parte das nuances de sexualidade em Holly Golightly. Os detalhes da gravidez de Holly, seus onze amantes, e as menções implícitas a um possível abuso sexual na infância foram retirados. A idade de Holly também foi alterada - dos 19 anos de sua contraparte literária para os 31 anos de Audrey Hepburn. Essa alteração afetou especialmente o impacto gerado pela relação de Holly com Doc Golightly, seu marido. 

De certa forma, as intervenções do estúdio promoveram a completa fragmentação de Holly Golightly como personagem. Por um lado, é inegável que a interpretação de Audrey Hepburn tenha encapsulado perfeitamente o espírito de Holly. O filme, apesar de suas diferenças, constituiu-se numa composição à parte, quase independente de sua obra de origem, e valiosa em si mesma. Porém não se pode afirmar que a Holly Golightly de Audrey Hepburn seja a mesma de Truman Capote - são duas entidades diferentes em tom, personalidade e destino. 

A problemática do Sr. Yunioshi

De todos os pontos abordados até então, talvez o mais polêmico seja a representação do Sr. Yunioshi. Em seu livro, Capote descreve Yunioshi como um fotógrafo da Califórnia, de origem japonesa. Ao contrário de sua contraparte cinematográfica, sua aparição no livro é breve. De acordo com o narrador, Sr. Yunioshi "vivia no estúdio que ficava no andar de cima do prédio de arenito".

No entanto, com o intuito de criar um alívio cômico para o filme, Axelrod modificou o papel, apelando para uma representação estereotípica. Embora Mickey Rooney tenha sido escalado para interpretar o Sr. Yunioshi, Axelrod divulgou uma nota informando que o ator Ohayo Arigatou ("olá, obrigado", em japonês) estaria interpretando o papel. A "brincadeira" foi realizada com o objetivo de promover o filme.

De acordo com Melissa Phruksachart, a representação ofensiva utilizada em Bonequinha de Luxo refletia o relacionamento dos Estados Unidos e do Japão no contexto do pós-guerra e da Guerra Fria. Trava-se de um período em que fatores geopolíticos e tensões advindas da Segunda Guerra Mundial influenciavam significantemente a visão ocidental dos povos do Leste Asiático. A versão cinematográfica do Sr. Yunioshi foi diretamente inspirada nos estereótipos caricaturais da Segunda Guerra: olhos puxados, óculos redondos, dentes salientes, quimono e um sotaque exagerado.

Para audiências modernas, a problemática do Sr. Yunioshi tornou-se um grande obstáculo para a apreciação do filme. Por esse motivo, leituras revisionistas buscam criticar Bonequinha de Luxo a partir de uma compreensão atual das relações de raça e lugar de fala. Em geral, pode-se afirmar que o valor artístico do filme sofreu um grande impacto negativo devido à representação de Mickey Rooney. Como diria o ditado, esse é o grande elefante na sala do filme. 

O destino do Gato

Logo no início da narrativa de Truman Capote, somos apresentados ao Gato de Holly Golightly. O Gato não possui um nome. Pelo contrário, Holly o trata como uma das muitas partes móveis de sua vida, sempre pronta a deixá-lo no momento certo. Não é preciso muito para identificar o Gato como um representante da instabilidade da própria Holly - impermanente, sem identidade, sem casa. O mesmo se dá com a absoluta falta de mobília no seu apartamento:

"Se eu encontrasse um lugar da vida real que me fizesse sentir como o Tiffany's, não hesitava em comprar mobília e dar um nome ao Gato."

Tanto no filme quanto no livro, o Gato protagoniza o momento climático do enredo. Incriminada por sua relação com Sally Tomato, Holly decide fugir para o Brasil. À bordo do táxi com o narrador, ela toma a decisão de abandonar o Gato no meio do caminho. No filme, essa decisão reflete a incapacidade de Holly de lidar com compromissos, afeição e amor. Por outro lado, no livro, a decisão de Holly reflete sua própria natureza de solidão e independência. 

A partir daí, as cenas seguem caminhos diferentes. No roteiro de Axelrod, logo após soltar o Gato, Holly se arrepende. Ela e Paul o encontram sobre uma lata de lixo, e decidem dar-lhe um nome.

Já no livro, num momento de angústia e realização, Holly não consegue encontrar o Gato. Somente ao perdê-lo, ela percebe seu valor:

"- Já te tinha dito. Nós apenas nos encontramos um dia à beira-rio, foi tudo. Somos ambos independentes. Nunca prometemos nada um ao outro. Nunca... - disse ela, e a sua voz esmoreceu, uma contração, uma palidez de inválido assomou-lhe ao rosto. O automóvel parara num semáforo. Então ela abriu a porta e largou a correr pela rua abaixo, e eu corri atrás dela.
Mas o gato não estava na esquina onde ela o deixara.

- Oh, Santo Deus. Nós pertencíamos realmente um ao outro. Ele era meu."

Como ditam as regras da comédia romântica, ao fim do filme, Holly e Paul terminam juntos. Esse, é claro, não é o caso do livro. Na narrativa agridoce de Truman Capote, Holly Golightly viaja para o Brasil, garantindo uma vida de fugas e solidão. O narrador encontra seu gato não muito tempo depois, adotado por outra família:

"Levei duas semanas de perambulações pós-laborais por aquelas ruas do Harlem Espanhol e fui despistado por muitos falsos alarmes, pelugens listradas que, após um exame mais de perto, não eram dele. Mas um dia, numa tarde domingueira fria e cheia de sol, era mesmo ele. Rodeado de plantas em vaso e emoldurado por singelas cortinas de renda, sentava-se à janela de uma sala com um aspecto muito acolhedor. Interroguei-me qual seria o seu nome, pois com certeza que ele agora teria um, com certeza que encontrara a sua casa."

Tendo em conta que a narrativa de Capote é contada em grande parte por flashbacks, logo no início do livro somos informados de que Holly foi vista perambulando pela África. Ao saber disso, o narrador conclui:

"Numa cabana na África, ou noutro lugar qualquer, espero que Holly também tenha encontrado a sua [casa]."

Em suma, se a Holly Golightly de Audrey Hepburn encontra seu Gato e aceita a permanência, a Holly de Truman Capote assume sua independência inconstante, nada além de uma solidão refinada. No cinema e nos livros, Holly é muitas - o ícone, a socialite, a menina e a dona do Gato sem nome. 


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Comentários

  1. Que texto maravilhoso! Depois que li "A sangue frio", me tornei muito fã do Capote. Adorei saber mais sobre essa obra dele e as diferenças tão importantes em relação à obra cinematográfica.

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  2. Adorei a a alise! Eu assisti o filme antes de ler e lembro do estranhamento que tive com as mudanças (achei que o livro teria o mesmo tom cômico do filme). Agora consigo entender melhor a transição!

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