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Mona Lisa: a musa indecifrável


A magnum opus de um dos maiores gênios da humanidade é o retrato de uma mulher sorrindo. Dentro da enorme pirâmide de vidro francesa, Mona Lisa observa. Há para ela um aposento especial, o Salle des États, maior espaço do Louvre. E ali, olhos inquietos buscam diariamente na pintura qualquer pista sobre suas intenções. Mas ela nada nos revela. O sorriso de Mona Lisa diz, afinal, mais sobre a maneira como recebemos arte do que sobre a arte em si. E não seria a função da arte simplesmente ser?

Lisa Del Giocondo


Eternizada na provável pintura mais famosa do mundo, está Lisa Del Giocondo. A grande musa de Leonardo Da Vinci não era – por mais que seu retrato tenha sido historicamente digno da realeza — uma rainha, princesa, donzela ou herdeira de linhagem nobre. Na verdade, o retrato de Lisa foi uma encomenda de seu marido, Francesco Del Giocondo, um comerciante. Encomenda que Da Vinci nunca chegou a entregar, e segundo seus registros financeiros, talvez sequer tenha chegado a receber dinheiro para fazê-la.

A moça era a segunda esposa de Francesco e vinha de uma família simples de Florença. Del Giocondo enriqueceu com seus negócios, mas nunca chegou a ser um homem com grande status na comunidade.

Há especulações sobre o motivo que levou Da Vinci a aceitar a encomenda, uma vez que ele já era famoso na época e dificilmente terminava um de seus trabalhos. Como o visionário que foi, Da Vinci deve ter visto algo além de um mero rosto. E com sua visão de gênio criou, a partir de uma imagem comum, uma obra irretocável.

Mas antes de tratar da aura misteriosa que se formou em torno da pintura ao decorrer dos séculos, é preciso falar da pintura em si. Também chamada de La Gioconda, ou em francês La Joconde, Mona Lisa é uma pintura que foi feita ao longo de mais de uma década (1503-1516) e há indícios de que ainda não estava finalizada quando Da Vinci morreu.

Nela, há uma mulher sentada cujo braço esquerdo se apoia suavemente no braço de uma cadeira. As mãos estão juntas, uma sobre a outra. Seu vestido é simples, mas há um trançado que desce até o decote e revela o busto discreta e delicadamente. Sua cabeça é coberta por um fino véu transparente, o qual é quase imperceptível. Seu rosto quase não possui sobrancelhas — embora haja registros escritos sobre elas, a curva acima dos olhos não apresenta quaisquer pelos.

Sua expressão é a maior incógnita da pintura. É aquilo que mais nos chama a atenção. As curvas na boca e olhos são tão suaves que ela quase parece ter uma expressão neutra. Mas ao mesmo tempo, a curva nos lábios mostra um “quase sorriso”. Assim, ela parece se divertir com o que vê. O que é interessante, afinal, a persona na pintura nos acompanha com o olhar.

Mona Lisa, por Leonardo Da Vinci (1503)

Desse modo, o recurso da luz na pintura é um dos elementos mais marcantes: perfeitamente posta, a luz nos dá a impressão de que a pintura está viva. A dilatação dos olhos — um levemente mais dilatado que o outro — dá a impressão que a mulher nos observa, independentemente do ângulo em que a olhamos. Na verdade, sobre a dilatação dos olhos, há um ponto interessante: estaria Mona Lisa contente em nos ver? Da Vinci fez longos estudos sobre luz e anatomia, e sem dúvidas isso influenciou a pintura. E a pintura da paisagem também contribui para ambos os efeitos: de que ela nos observa e que talvez está sorrindo.

Há ainda a técnica usada: as pinceladas irregulares fazem a textura parecer mais real. Leonardo entendia como os olhos humanos enxergam o mundo e tentou fazer com que sua obra transmitisse isso.

Sem dúvida alguma, Mona Lisa é a pintura mais bem trabalhada do pintor e uma das mais marcantes e detalhadas de todo o Renascimento. Talvez, da História. Não é à toa, portanto, que ao longo dos séculos, críticos de arte, historiadores, físicos e outros pesquisadores busquem compreender o processo de sua criação e seus porquês. Mas seriam esses mistérios a coisa mais interessante da pintura? Provavelmente não. Ainda assim, a Mona Lisa nos instiga. Como seres humanos, buscamos entender tudo à nossa volta. E Leonardo Da Vinci entendia isso como ninguém.

Leonardo, o pintor misterioso


Leonardo Da Vinci é o detentor de uma mentalidade e talentos ímpares. Ele é conhecido por seus múltiplos tópicos de interesse, que vão da ciência à arte. Assim, é curioso pensar que Leonardo tem sua vida praticamente inseparável da sua obra mais famosa que, como adiantamos, é o retrato de uma mulher. Embora ele tenha obras de quase igual notoriedade — como o Homem Vitruviano e a Última Ceia — nenhuma dessas ganhou, como a Mona Lisa, uma espécie de identidade própria. Afinal, com o pouco conhecimento que temos sobre a pessoa que Leonardo Da Vinci foi — de forma concisa, pelo menos —,  o que temos dele enquanto figura histórica se mistura às teorias criadas sobre ele, dando ao pintor um status de quase “personagem”. Não muito distante do que aconteceu com a própria Mona Lisa.

Da Vinci era um filho bastardo de um homem rico e uma camponesa, sendo que seu próprio sobrenome não é um mero indício de sua origem. Não teve, assim, uma criação rica, mas seu pai o incentivou à pintura. A trajetória foi no geral de solidão: o renascentista passava seu tempo trabalhando em projetos sozinho. Escrevia sobre pássaros, arquitetura, geometria e água. Não deixou descendentes, tampouco se casou. Dos trabalhos que conseguia, raramente os concluía.

Autorretrato de Leonardo Da Vinci (1512)
Da Vinci estudou anatomia humana, óptica e aerodinâmica com fervor. Fazia listas de afazeres, esboços e rascunhos que, somando aqueles de que se tem registro, resultam em mais de 7.200 páginas.

Foi, em suma, um homem curioso sobre o mundo. Ou, pelas palavras de Walter Isaacson:

Leonardo era um gênio, mas não só isso: ele era a epítome de uma mente universal, que se esforçou para entender por completo a criação de tudo, incluindo o lugar que ocupamos nela.

Mistérios, apenas mistérios


Levando em conta a vida que Leonardo Da Vinci levou, muitas são as teorias sobre ele. Há quem tente desvendar sua genialidade: ele dormia pouco para ter mais tempo para estudar? Ele praticava alquimia? Ele deixou códigos para serem descobertos?

Ele é tomado como uma lenda pelo imaginário popular. E, evidentemente, Mona Lisa também é. Leonardo via detalhes no mundo que a maioria não via e os colocava em seus cadernos e obras. E é por isso que buscamos tanto encontrar respostas em Mona Lisa.

Dentre as questões que sua pintura gera, estão: por que ele aceitou pintar Lisa Gherardini? Mona Lisa está sorrindo? Há alguma mensagem escondida na pintura?

O consenso é que Lisa existiu, afinal, existem registros escritos sobre sua existência de pessoas que viveram no mesmo tempo e lugar que ela, como Giorgio Vasari. E Leonardo aceitou a pintura simplesmente porque quis, como parece ser o padrão das ações do gênio. A Navalha de Ockham nos diz: a teoria mais simples talvez seja a correta, no fim das contas.

Mas nem sempre a verdade parece ser suficiente, e daí partem as teorias. Elas vão desde que Mona Lisa é um autorretrato — o que se desdobra em teorias sobre Leonardo não se enxergar como um homem — até teorias de que Leonardo se apaixonou por Lisa. Existem também algumas que indicam que Leonardo colocou códigos na pintura ou que seu título é algum anagrama. De fato, o pintor deixava mensagens nas pinturas. Na Mona Lisa há, em cada um dos olhos dela, duas iniciais: L.V. e B e S ou C.E. O que a última significa, ainda não se sabe.

O Código Da Vinci (The Da Vinci Code) é a prova do quão longe as teorias conspiratórias podem chegar. O livro de Dan Brown se inicia com um possível assassinato no Louvre e explora ao longo de suas páginas diversas teorias tanto sobre o pintor quanto acerca de sua obra. É o livro mais popular do escritor e rendeu uma adaptação com Tom Hanks como protagonista.

Embora seja, evidentemente, ficção, o livro usou diversos dos mistérios sobre a obra do renascentista para criar uma narrativa polêmica sobre a Igreja Católica. A religiosidade é um elemento presente em muitas pinturas de Da Vinci, como na Virgem dos Rochedos, ou em Salvator Mundi. Contudo ele poderia ser ateu. O que faz muito sentido, se considerarmos que o catolicismo tinha enorme influência na Europa do século XV, e Da Vinci fez grande parte das suas pinturas sob encomenda. Além disso, vale citar que o autor foi acusado de sodomia e há um claro elemento erótico em suas pinturas, mesmo naquelas que tinham como tema o cristianismo. Assim, ele se envolveu em diversas discussões que iam contra a moral religiosa de seu tempo.

Salvator Mundi, por Leonardo Da Vinci (1500)
Mas independentemente disso, a Mona Lisa em si abriga muito da modéstia esperada pela época. O véu que lhe cobre os cabelos e sua postura e expressão são detalhes que lhe tornam recatada, bela e modesta. O deleite em seu olhar é parte do efeito que Leonardo pretendia criar com a figura de Lisa, mesmo que naquele momento Leonardo não estivesse mais tão interessado em retratar a esposa do comerciante que o contratou, mas em usar aquela imagem inicial para representar a beleza em seu estado mais puro e perfeito.

Vale citar também as inúmeras releituras da Mona Lisa ao longo da história. Essas releituras, ao contrário das teorias, são o que mais tornam a pintura tão especial. É por meio delas que percebemos que mesmo a obra de arte mais perfeita do mundo pode ser revisitada, reinterpretada, e que ela pode não ser o suprassumo da arte. O que significa que toda obra é única e acrescenta um pouco ou muito para o momento e as pessoas de sua época.

Marcel Duchamp fez uma das releituras mais famosas da Mona Lisa, brincando com a ideia de modéstia anteriormente posta. Na figura, ele desenhou bigodes e um cavanhaque na madonna, e escreveu abaixo dela a sigla: L.H.O.O.Q.

O que significa? Bem, se lida em francês — língua materna de Duchamp —, sua sonoridade remete a uma certa frase: “Elle a chaud au cul". Sua tradução seria algo como “ela tem um rabo quente”.

L.H.O.O.Q., por Marel Duchamp (1919)
Duchamp era um dadaísta cuja arte era reconhecidamente subversiva. Sua releitura de Mona Lisa pode parecer um quase sacrilégio, uma corrupção. Especialmente se pensarmos na pintura original como uma espécie de “ápice” da arte, como os renascentistas gostavam de pensar a respeito de seus feitos. Mas no fim, como foi discutido aqui, Leonardo é apenas um homem. Um artista brilhante que fez o que pôde com sua imaginação extraordinária. E a Gioconda é uma pintura. Uma pintura espetacular, mas ainda assim, uma pintura. A arte em si não tem nenhum poder sobrenatural, como alguns teorizam. Ela não pode nos salvar ou amaldiçoar, mas pode nos fazer pensar sobre nós mesmos. E se pode nos tocar ao menos um pouco, ela cumpriu seu propósito. Isto é, se a arte tiver algum.

O sorriso de Mona Lisa 


Ao acompanhar sua história, percebemos o porquê de tanta empolgação pelos seus mistérios. Não é pelos possíveis códigos existentes na pintura ou qualquer teoria conspiratória — por mais atraentes que elas sejam —, mas pela incrível jornada por séculos da humanidade que Mona Lisa nos auxilia a percorrer. Seu maior mistério está, justamente, no fato de procurarmos significados para os sentimentos que experienciamos através dela. O que sintetiza o que fazemos com outras pinturas e obras de arte no geral: buscamos entender como e por quê essas produções fazem-nos sentir tantas coisas, e como isso varia de pessoa para pessoa e de século para século.

Ninguém sabe o porquê Da Vinci aceitou pintar a Mona Lisa. No entanto, ele aceitou. E Lisa Del Giocondo o acompanhou até o fim de sua vida. Há quem diga que ela estava em seu ateliê quando ele morreu. Seja como for, ela foi o sumo de sua genialidade, a síntese de suas ideias científicas e esboços artísticos. Nela, Da Vinci depositou mais de dez anos de um trabalho meticuloso. Mona Lisa não é simplesmente a Lisa, esposa do comerciante. Mona Lisa é também a alma de toda a vida e obra de Da Vinci.

E de sua pequena moldura, ela quase sorri para nós. Quase.

Referências

Comentários

  1. Oi, Elisa! Muito legal o teu texto. A arte realmente se imbui do significado que damos à ela. Por isso a Mona Lisa será sempre uma imortal, né?

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