Num mundo teocrático, a transgressão da fé era também transgressão política [...]. Assim, os inquisidores tiveram a sabedoria de ligar a transgressão sexual à transgressão da fé. E punir as mulheres por tudo isso.
(Rose Marie Muraro)
Responsável pela perseguição e execução de, aproximadamente, cem mil pessoas, o manual de caça às bruxas, Malleus maleficarum, também conhecido como O martelo das feiticeiras, foi um dos grandes guias durante o período da Inquisição. Apresentando questões e hipóteses que guiavam e coordenavam os julgamentos e condenações por bruxaria, o manual era considerado uma continuação do segundo capítulo de Gênesis, e torna-se “a testemunha mais importante da estrutura do patriarcado e de como essa estrutura funciona concretamente sobre a repressão da mulher e do prazer", como Rose Marie Muraro apresenta na introdução histórica da edição publicada pela editora Rosa dos Tempos em 2020.
Um dos mais infames textos já escritos sobre a história da bruxaria, o Malleus maleficarum apresentou uma exposição detalhada de justificativas para a existência da bruxa e para seu extermínio. Os autores - e inquisidores - forneceram à sua época uma espécie de defesa acadêmica para os julgamentos heréticos relacionados à prática da bruxaria, que ainda era desacreditada por muitos, inclusive pela Igreja Católica.
Dentro das teses centrais no Malleus maleficarum
O manual, escrito pelos inquisidores Heinrich Kramer e James Sprenger, no ano de 1484, apresenta uma série de teses que são consideradas centrais para a perseguição às bruxas e às pessoas heréticas. As teses, hoje tidas como absurdas, guiavam os inquisidores e davam força a seu discurso, relacionando a transgressão sexual à transgressão da fé.
Diziam que “O demônio, com a permissão de Deus, procura fazer o máximo de mal aos seres humanos, a fim de apropriar-se do maior número possível de almas”, e que esse mal era feito através do corpo, que seria o único lugar que o demônio poderia adquirir controle, enquanto o espírito seria governado por Deus. Essa influência do demônio, então, se manifesta no ato sexual, já que a sexualidade era considerada o ponto mais vulnerável do ser humano. E é nesse momento que a mulher é colocada como agente do diabo, já que é essencialmente ligada à sexualidade.
Capa do Malleus Maleficarum |
Nascida da costela torta de Adão, a mulher era lida como um ser que nunca poderia ser reto, deste modo, mais suscetível à influência do maligno e diabólico. Após copular com o demônio, as ditas feiticeiras eram capazes de realizar todos os males, como: impotência masculina, abortos, oferendas de crianças, doenças, fim de colheitas etc.. A mulher tornou-se a maior pecadora e daí a necessidade de ser contida.
O diabo, a bruxa e a permissão de Deus Todo-Poderoso
Se crer em bruxas é tão essencial à fé católica que sustentar obstinadamente opinião contrária há de ter vivo sabor da heresia.
Fazendo uso de trechos bíblicos e da sabedoria popular, era proferido que existiam três elementos na natureza: a língua, o eclesiástico e a mulher. Esses três, sejam relacionados à bondade ou ao vício, não conheciam a moderação. Sendo assim, a mulher perversa, como é presente no Eclesiástico (25:22), seria portadora do pior tipo de veneno, pior até que o das serpentes, sendo mais agradável viver com um leão do que morar com uma mulher maldosa. Já nas Escrituras (25:26), diziam que toda malícia é leve se comparada com a malícia de uma mulher. Enquanto a mulher “de boa índole" seria agraciada por muitíssimos louvores, sendo aquela que traria beatitude aos homens e que salvaria nações, cidades e terras. A mulher virtuosa, ou seja, aquela que aceitava ser enclausurada dentro dos preceitos da igreja e do cristianismo, era louvada pela excelência.
A fé da mulher era mais facilmente corrompida, assim, mais fácil cair em superstições que não eram ligadas à sabedoria cristã. Diziam que a mulher era, por natureza, mais impressionável, e mais propensa a receber espíritos desencarnados por esse motivo. Tinham uma “língua traiçoeira”, então não guardariam para si aquilo que aprenderam com o demônio e as experiências que adquiriram, acabariam contando para suas amigas, que futuramente também se envolveriam com o diabo.
Ainda sobre a mulher desviada, diziam:
“As mulheres, intelectualmente são como crianças.”
(Terêncio, em Hecyra)
“Nenhuma mulher chegou a compreender a filosofia, exceto Têmis.”
(Lactâncio, em Divinae Instutiones, livro 3)
“Um anel de ouro no focinho de um porco, tal é a mulher formosa e insensata.”
(Provérbios, 911:22)
A mulher era considerada carnal pelo homem, e por isso, praticava muitas abominações carnais. Tudo isso proveria da falha em sua formação, por ter vindo de uma costela recurva, sendo contrária à retidão do homem, assim, um animal imperfeito. Quando chora, trabalha para enganar o homem, age com ira e impaciência, é insaciável e cobiça o pecado.
Prestes a entrar na Renascença, que viria a ser considerada a Idade das Luzes, uma perseguição considerada "delirante" às mulheres e ao prazer consome sua época. A mulher é afastada do sagrado que antes a cercava e é colocada na posição de "causadora do flagelo".
Dividido em três partes, cada uma contendo inúmeras questões acerca das condições necessárias para a bruxaria, as medidas judiciais no tribunal eclesiástico e no civil a serem tomadas contra as bruxas e os hereges e de como esse processo há de ser concluído, cada etapa para o julgamento era elencada com detalhe, a fim de não deixar lacunas abertas e chances de fracasso.
El Aquelarre (1798), de Goya |
O absurdo e o extermínio
Hoje, O martelo das feiticeiras é estudado como um importante documento e fonte histórica, sendo relacionado à luta de classes e do movimento feminista, como ocorreu na obra Calibã e a Bruxa, de Silvia Federici. Mas por décadas, foi utilizado como instrumento de extermínio e "expurgo" da massa camponesa. As mulheres condenadas e queimadas eram em sua maioria mulheres pobres, vítimas desse período de centralização do poder, que foi acatada pelo catolicismo e protestantismo. Por toda a Europa heréticos e bruxas queimaram, e sua luta também virou cinzas, criando assim um corpo dócil e trabalhador, uma peça para as classes dominantes.
Em seu prefácio sobre a obra, Carlos Amadeu B. Byington ainda traz um dado que assusta: apesar de toda a castração e do sangue que o Malleus maleficarum promoveu quando publicado e acatado pelos inquisidores, mesmo com a "aberração da mensagem cristã" que foi promovida pelos autores, ainda existem pessoas que não discordam de todo o absurdo. O responsável por traduzir o livro do latim para o inglês, o reverendo Montague Summers, afirmou em 1946:
"[...] o Malleus maleficarum é o mais sólido e o mais importante trabalho em toda a vasta biblioteca escrita sobre bruxaria. Voltamos a ele sempre com edificação e interesse. Do ponto de vista da psicologia, da jurisprudência e da história, ele é supremo. [...] O que mais surpreende é a modernidade do livro. Praticamente não existe um problema, um complexo, uma dificuldade que eles não previram, discutiram e resolveram."
Com toda sua perversidade, O martelo das bruxas ainda parece transitar entre objeto de estudo e de manual para castração.
Referências
- O martelo das feiticeiras (Heinrich Kramer e James Sprenger)
- Breve introdução histórica (Rose Marie Muraro)
Muito bom! É realmente assustador o fato de alguém considerar o "manual" moderno em 1946, quase cinco séculos depois de ter sido escrito... demonstra o quanto é importante conhecer o conteúdo dele e contestar seus defensores.
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