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Carta da editora: 2 anos muito clássicos


Foi Fernando Pessoa quem disse que "todas as cartas de amor são ridículas". E não se engane, leitor: esta é uma carta de amor. 

Hoje faz 2 anos que o Querido Clássico existe. 2 anos desde que o site foi ao ar com seu primeiro post - um convite para a leitura coletiva de O Morro dos Ventos Uivantes. É claro que tudo começou com esse livro. Quando criança, lembro de ter me deparado com ele na estante do meu irmão. Eu tinha 9 anos e admirava a coleção de livros dele, todos bonitos e sérios, que eu ainda não era autorizada a ler. Mas um título me chamou a atenção: havia sido escrito por uma mulher. Emily Brontë era seu nome. Para além do título poético e forte, que evocou tantas imagens em minha mente (pense na sonoridade de O Morro dos Ventos Uivantes - é um título que enche a boca), aquele era o único livro de escritora na estante. Todos os outros haviam sido escritos por homens. O fascínio que aquela descoberta exerceu sobre mim reverbera até hoje - mulheres podem escrever, e mulheres podem escrever livros cujos títulos são sinistros e evocam a solidão e o mistério. Eu não sabia de que se tratava a história, mas já estava fisgada. O resto descobri apenas anos depois, porém meu coração já era dos clássicos. 

Quase vinte anos mais tarde (dezenove, para ser exata), cá estou eu, escrevendo uma carta de amor ao site que criei e edito com tanto carinho em seu segundo aniversário de existência. Me perdoe, leitor, se esta é uma carta muito pessoal - mas o QC e eu somos indissociáveis. Ele é, sim, um projeto de muitas vozes - somos cerca de cinquenta mulheres pesquisando e escrevendo sobre literatura, cinema, história e todos os outros assuntos dos quais aqui falamos. Mas também é algo muito pessoal. Como toda criança peculiar, eu cresci me sentindo esquisita - à parte dos meus colegas, irmãos e até mesmo amigos. Meus dias eram repletos de leituras. Me imaginava Perséfone - numa versão bem infantil do mito - dividida entre a primavera e o outono, entre o mundo terreno e o submundo. Esse senso fantástico do crescer em meio a fantasias literárias foi maravilhoso, mas também solitário. E já crescida a situação não foi tão diferente. Embora meus amigos fossem pessoas incríveis, eu não tinha com quem conversar sobre os livros que lia - os clássicos, escritos há tantos séculos. Tampouco sobre as descobertas que fazia, ou acerca da minha obsessão pela epidemia de dança de 1518. Ninguém se interessava de fato e eu não queria cansar as pessoas. Assim, nasceu a ideia de um clube do livro clássico. E embora um encontro presencial tenha sido feito ao final de 2019, logo veio a pandemia e tudo parou. Foi, então, que a ideia de tornar aquilo no Querido Clássico - cujo nome me havia sido revelado em sonho, por sinal - surgiu. Em 21 de julho de 2020, nascia o QC. O resto está nas páginas deste site. 

Primeira reunião presencial do Clube do Livro QC (2019)

Acredito firmemente que só a arte pode reviver a morte. E se o Querido Clássico é qualquer coisa, é uma forma de elegia. Aqui, louvamos aos mortos os trazendo de volta à vida através de suas palavras, canções e histórias. Como disse o 12º Doctor: "No final, somos todos histórias". Somos profundamente Românticas (do Romantismo mesmo, com "r" maiúsculo), muitas de nós Góticas (eu inclusa) e apaixonadas pela beleza de tempos que já desvaneceram. É na arte que encontramos forças para continuar num cotidiano repleto de incertezas e violência. É ela quem nos inspira e instiga, levando-nos a lugares desconhecidos. Tais lugares podem ser belos ou assustadores - às vezes ambos ao mesmo tempo - mas são sempre fantásticos. É pela arte que muitos de quem falamos viveram e morreram, e é por ela que aqui estamos. "A arte é longa; a vida é breve." Ainda que as palavras de Hipócrates possuam um significado diferente daquele que enxergamos à primeira vista, com olhos de leitores do século XXI, aquele voltado à arte enquanto poesia também se aplica aqui. A arte enquanto fascínio, a arte enquanto beleza, a arte enquanto terror (obrigada, A História Secreta). 

Falando em A História Secreta, conversávamos sobre ele na reunião mais recente do Clube do Livro QC, e não foi espanto algum quando chegamos à conclusão de que se estivéssemos na situação de Richard, o personagem principal do livro e narrador daquela tragédia, provavelmente teríamos as mesmas atitudes que ele. Isto não é à toa: além daquela ser uma história envolvente, Richard é semelhante a nós, classiquers (apelido carinhoso entre membros do QC e participantes do Clube), por sempre ter sido um outsider, de certa maneira. Ao contemplar um mundo no qual as pessoas realmente se dedicam ao passado e vivem nele o máximo possível, Richard encontrou uma paixão: não apenas um desejo de pertencimento (embora este seja verdadeiro e forte), mas também um desejo de existir num mundo de outrora - num mundo grego clássico. 

“Em certo sentido, era por isso que eu me sentia tão próximo dos outros no curso de grego. Eles também conheciam a paisagem deslumbrante e aflitiva, morta havia séculos; eles compartilhavam a experiência de erguer a vista dos livros, com olhos do século V, e encontrar um mundo desconcertante em sua indolência e isolamento, como se não fosse aqui seu lar. Por isso admirava Julian, e Henry em particular.”

De muitas maneiras, não somos tão diferentes de Henry - certamente não temos suas atitudes drásticas (quer dizer, só posso falar por mim, mas espero que nenhuma classiquer as tenha), mas contemplamos o mundo com olhos de séculos passados. Vemos o Romantismo em vírgulas, em pausas, no vento sussurrando nas árvores. Lembramos do Gótico ao estarmos aflitas e uma tempestade se fazer presente no céu, acompanhando perfeitamente o nosso humor e dando outro tom às nossas vidas. Mas também somos contemporâneas o suficiente para aproveitarmos a tecnologia presente neste século - tão terrível, tão exaustivo - e fazermos videochamadas, criarmos uma rede que é uma espécie de família, na qual todo mundo se apoia, segura na mão uma da outra e verdadeiramente se importa. O QC é, afinal de contas, uma espécie de família. 

E eu só tenho a agradecer a todas que constroem este canto antigo comigo. Somos cerca de cinquenta mulheres - e aqui há desde aquelas que estão saindo da escola até algumas com doutorado. Todas unidas num propósito: escrever uma carta de amor aos mortos e preservar a memória. 

Bem, já esta é uma carta para os vivos. Para as mulheres que me acompanham e que pegam junto diariamente no fazer (e escrever e criar e divulgar e compartilhar) diário deste site - em especial à Carol, responsável por boa parte das belíssimas artes que ilustram os textos aqui publicados e que é sempre muito solícita e querida em todos os momentos. Também é um agradecimento a quem esteve aqui desde o primeiro dia - mesmo àquelas que já foram trilhar outros caminhos (com uma menção especial: Sofia, Tati, Jess, vocês sabem que isto é para vocês e o quão importantes foram neste cantinho que tem um pouco de cada uma). Embora me falte energia (são 03h55 da manhã), palavras (sou uma mulher emocionada) e memória (já mencionei o horário?), guardo por cada pessoa que aqui passou e que aqui se faz presente um carinho especial. Vocês seguraram na minha mão quando não achei que ninguém sequer tivesse ouvido o que eu estava tentando dizer. Por isso, serei eternamente grata. Também agradeço imensamente a você, leitor, que acompanha este projeto - você também é parte destes 2 anos de história. E deixo aqui um abraço especial a todos que aceitam minhas sugestões e embarcam comigo na descoberta de obras incríveis no Clube do Livro QC e no Cineclube Clássico. Vocês certamente tornam os meus finais de semana mais bonitos e animados. 

Com carinho, 

Mia 

Mia Sodré
Mestranda em Estudos Literários pela UFRGS, pesquisando O Morro dos Ventos Uivantes e a recepção dos clássicos da Antiguidade. Escritora, jornalista, editora e analista literária, quando não está lendo escreve sobre clássicos e sobre mulheres na história. Vive em Porto Alegre e faz amizade com todo animal que encontra.

Comentários

  1. Que honra fazer parte dessa família! Poder compartilhar o amor por clássicos com mulheres tão incríveis é a parte mais incrível do meu dia. Obrigada por isso, Mia e meninas!

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  2. Aaah, Mia!! Obrigada por criar esse espaço, o seu trabalho é impecável, e é incrível poder contribuir ao lado de tantas mulheres talentosas. São os primeiros dois anos de muitos que virão, com certeza ♥️

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  3. difícil ler sem chorar, nunca vou conseguir colocar em palavrão o quão HONRADA estou por fazer parte de um projeto tão lindo e cheio de amor

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  4. Emocionante, Mia! É uma honra fazer parte desse projeto tão maravilhoso que é o QC.

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  5. Que carta linda! Acabei de chegar no QC, mas já me sinto extremamente acolhida! Obrigada por tudo!

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  6. Que lindeza de carta! Fiquei muito emocionada e honrada a cada dia mais por contribuir um pouquinho com esse sonho tornado concreto! Vida longa ao Querido Clássico! <3

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  7. Vida longa, Mia! Que a cada dia o conhecimento nos leve mais adiante e nos torne mais felizes! Que bom estar aqui!

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