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As avós, de Doris Lessing: quando o cinema preenche os silêncios da literatura


Em mais de um século de existência, e tendo laureado 118 pessoas, o prêmio Nobel de literatura tem em seu rol apenas 16 mulheres. Entre elas, está Doris Lessing – autora fascinante que ainda é relativamente pouco lida e conhecida no Brasil, a despeito de sua vasta obra.

Filha de pais britânicos, Lessing nasceu em 1919 na Pérsia (atual Irã) e viveu, ainda, no Zimbábue, conhecido como Rodésia do Sul à época; mais tarde, se fixou no Reino Unido, fato que explica o porquê de ser considerada uma autora britânica. No entanto, apesar de ter vivido a maior parte de sua vida em Londres e lá ter falecido, em 2013, sua produção está longe de se limitar a questões da terra da rainha.

Em mais de cinco décadas escrevendo, a autora ficou reconhecida por ser cirúrgica e controversa, tratando de temas como justiça social, raça e inter-racialidade, violência contra crianças e a multiplicidade da personalidade feminina. Refletiu sobre o imperialismo britânico na África, criticou o apartheid – sendo banida do Zimbábue e da África do Sul por muito tempo –, fez parte de grupos comunistas e sempre esteve atenta à política e às estruturas sociais. Explorou diversos gêneros literários, sempre se valendo de uma escrita que não entrega tudo o que quer dizer – “força” e “delicadeza” foram dois adjetivos muito atribuídos ao seu estilo, sem nunca chegarem a parecer paradoxos, tamanha a sua habilidade com as palavras.

Para completar o quadro complexo e único que Doris Lessing pintou de si mesma, a autora dedicou parte de sua vida a escrever ficção científica, sendo duramente censurada pela crítica da época, que a acusou de rebaixar sua obra. A isso, Doris respondeu que a crítica estava deixando passar o grande potencial da ficção científica de exprimir, questionar e pensar a sociedade, além de propor novas realidades. Quando ganhou o prêmio Nobel, em 2007, a autora brincou dizendo que a academia sueca tinha seu nome entre os candidatos há tempos, mas não dava o braço a torcer justamente por conta da sua “assim chamada, ficção científica” – naquele ano, entretanto, algo que ela desconhecia havia mudado na percepção do comitê sueco e o prêmio foi seu.

Sua obra mais reconhecida é The golden notebook (1962), um romance em estrutura não convencional e com características autobiográficas no qual a protagonista, Anna, se propõe a refletir sobre momentos e questões específicas de sua vida, como a juventude na África e sua participação e desapontamento com o partido comunista. O livro legou a Doris Lessing a fama de ícone do movimento feminista, mas a própria autora renegou o título, dizendo não se identificar com o feminismo. Esse parece ser o clássico caso em que a criatura se opõe à criadora, muito parecido com o da nossa modernista, Rachel de Queiroz que, embora se posicionasse como não feminista, criava personagens que hoje não poderíamos dizer que não o fossem.

As avós, um livro polêmico 


As avós, livro publicado já no final da carreira de Lessing, em 2003, vem nessa toada de explorar o universo feminino sob uma perspectiva ambígua, polêmica, crua e realista. Uma obra curta, considerada uma novela, na qual acompanhamos as idiossincrasias e intricamentos da amizade entre Roz e Lil, meninas que crescem juntas e constroem suas vidas sempre em redor uma da outra, em meio a cumplicidade e rivalidades, a um ponto que essa relação resvala em todos os aspectos de suas vidas. Leitores de Elena Ferrante não estarão equivocados se sentirem que estão pisando em solo conhecido, afinal, a autora italiana sensação do momento colocou Doris Lessing em sua lista de livros favoritos, de onde concluímos que, para criar Lenu e Lila, protagonistas da tetralogia napolitana, Ferrante pode ter bebido da fonte da genitora de Roz e Lil.

Doris Lessing

A história de Roz e Lil se passa em um ambiente paradisíaco, a bacia marítima de Baxter, uma paisagem tão atraente quanto as personagens que habitam a novela de Lessing. As amigas crescem juntas, casam-se mais ou menos à mesma época e terão filhos da mesma idade – Tom é filho de Roz e Harold, um “acadêmico e meio poeta”, e Ian é filho de Lil e Theo, um bem-sucedido dono de lojas de roupas esportivas. Quanto à profissão das amigas, Lil é uma ex-campeã de natação que passa a administrar a loja do marido quando este morre num trágico acidente, e Roz, antes atriz e cantora, se dedica à dramaturgia esparsamente, montando alguns espetáculos.

O estopim dos conflitos da trama se dá quando Harold é convidado a ser professor em uma universidade em outro estado. Enquanto ele imagina que sua esposa e filho irão acompanhá-lo, o primeiro pensamento de Roz é questionar como será possível uma nova rotina em que ele iria para casa aos finais de semana. É assim que, após ser acusada de não cogitar a mudança para não deixar Lil para trás, Roz decide realmente ficar na cidade com Tom e o casal acaba se separando. Assim, ficam naquele ambiente idílico com vistas ao mar apenas as duas jovens e belas mães com seus filhos; Ian é doce, porém deprimido após a morte do pai, e Tom é vivaz e companheiro.

A partir de então, os laços vão se estreitando cada vez mais e as famílias se tornam praticamente uma só. Quando, num belo dia, Tom e Ian, já no fim da adolescência, chegam em casa após uma de suas costumeiras idas ao mar, Roz e Lil espantam-se, como se despertadas de um sonho, e se dão conta de que eles cresceram e que são lindos, incrédulas de que elas realmente os tenham gerado. Esse episódio quase epifânico é o ponto em que as relações entre os quatro mudam radicalmente. De repente, o acolhimento que Roz dava ao vulnerável e deprimido Ian toma nova forma e uma transmutação parecida acontece no afeto entre Lil e Tom. Entre as duplas, então, se estabelece um romance – desconcertante e inominável a princípio, mas que passa a tomar ares de naturalidade rapidamente.

Não é preciso dizer o quão incômodo e tabu é esse enredo; um tema com grande potencial de beirar o fetichismo. No entanto, Doris Lessing constrói a narrativa com tal elegância e sutileza que o que sobressai não é, necessariamente, a sensualidade desse vínculo entre os quatro, mas as consequências práticas e emocionais desse contexto para cada um dos personagens. Embora sua escrita não seja nada psicologizante, a autora consegue que, por meio das ações, situações e diálogos, o leitor compreenda as motivações e vulnerabilidades dos personagens e tire suas próprias conclusões sobre o drama vivido por eles. As avós é, portanto, uma obra que sugere, mais do que mostra; instiga, mais do que guia.

A adaptação cinematográfica de As avós


Nesse sentido, adaptar essa história para o cinema acaba sendo um grande desafio, pois a linguagem audiovisual tende a descortinar em imagens o que as palavras ou a supressão delas escondem na literatura. Esse desafio foi aceito, e dele originou-se o filme franco-australiano Adoration, de 2013, traduzido como Amor sem pecado aqui no Brasil. Dirigido por Anne Fontaine, o filme conta com Naomi Watts no papel de Lil e Robin Wright como Roz, beldades que incorporam muito bem o papel de mulheres independentes, maduras e desejáveis.

Não se pode negar que é extremamente satisfatório poder finalmente visualizar a paisagem que imaginamos ao ler a novela. No filme a história se passa na Austrália, o que garante cenas de grande deleite com céu azul e águas transparentes esverdeadas. Materializa-se nessa cidade pouco habitada à encosta de uma bacia de água morna o recanto intimista criado no livro para arrematar a sensação de segurança, da possibilidade de viver algo censurável que não chega, de fato, aos olhos de (quase) ninguém.

E as atuações corroboram para a construção da atmosfera dessas relações proibidas: os quatro atores principais exprimem o desconforto em suas relações, as mães com seus gestos de autocensura, os filhos com o êxtase imaturo da primeira paixão. A fotografia se une ao ambiente ensolarado e se faz luminosa, as cores sobressaem e, neste ponto, também conseguimos captar algo do livro, a sensação de que, apesar de ser uma situação extremamente delicada, essas pessoas decidem se entregar abertamente à experiência.


Precisamos ressaltar que uma adaptação cinematográfica não tem qualquer obrigação de se comprometer com a “fidelidade” em relação à obra de origem. Trata-se de uma nova obra, sujeita a modificações motivadas tanto pela mudança de formato quanto por escolhas artísticas que não exigem explicação. Mas também é natural que, ao confrontar filmes adaptados, surjam comparações que terão, em maior ou menor medida, um julgamento de valor.

No caso de Amor sem pecado, para quem já leu o livro de Doris Lessing, é inevitável notar como as alterações no roteiro influenciam a apreensão geral da história. Ao longo de todo o enredo, mas especialmente na parte final, o filme parece querer escancarar e explicar as motivações de Lil, Roz, Tom e Ian. Em muitos momentos em que Doris Lessing apenas sugere ou faz questão de não explicar ou responder, o filme determina, com diálogos que não deixam dúvidas. Há casos, inclusive, em que são criadas situações que buscam esclarecer questões que sequer eram um problema de fato no livro – o que, por vezes, demonstra um sutil conservadorismo, talvez uma segurança para que, embora o filme trate de um tabu, seja bem acolhido pelo público.

Sendo assim, a adaptação de As avós parece ser um filme que se propõe a preencher lacunas e desencobrir os móveis que Doris Lessing preferiu deixar cobertos para que o próprio leitor tirasse a poeira. Não é uma questão de eleger melhor ou pior, mas de perceber como uma mesma raiz pode gerar múltiplos galhos.

Doris Lessing teria gostado da adaptação se pudesse tê-la assistido? Seria arriscado supor qualquer coisa vinda de uma autora e uma pessoa tão complexa e irreverente. Quando soube que ganhou o prêmio Nobel, ela estava chegando do mercado à sua casa e, meio displicente, meio desconcertada, levou alguns minutos para decidir qual narrativa ia criar na sua declaração, que saiu mais ou menos assim: “Eu ganhei todos os prêmios da Europa, absolutamente todos. Eu fico encantada em recebê-los. São todos a própria realeza!”. Resgatando, então, essa Doris Lessing que não se apega a grandes distinções, talvez ela assistiria a Amor sem pecado e se diria, descontraidamente, “encantada”.


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