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Bright Star: uma ode ao amor de Keats e Fanny


Há um momento em Bright Star no qual John Keats (Ben Whishaw) diz a Fanny Brawne (Abbie Cornish) que não há nada mais antipoético do que a vida de um poeta. Claramente Keats não estava olhando para a própria vida quando disse tal coisa. Ou talvez isso se explique pelo fato de que acreditamos que a beleza está sempre em outro lugar. O belo, o poético, o sublime se torna banal quando é cotidiano. Mas Keats era tudo isso: e, ainda assim, era humano. Se metia constantemente em brigas. Achava suas cartas terrivelmente mal escritas. Bebia vinho diariamente. Tinha apenas 1,50 de altura. E amava Fanny com toda a sua alma. 

John Keats era capaz de enxergar o belo e o sublime em uma simples folha de árvore. Não é à toa que ele é considerado o grande poeta Romântico inglês, embora tenha vivido apenas 25 anos e deixado poucos poemas publicados - poemas esses que em vida não tiveram nem uma pequena porcentagem do prestígio que hoje possuem. Todavia embora seus poemas sejam obras de arte, que nos transportam a um mundo repletos de significados, onde luzes e sombras coexistem não como aquelas que enxergamos diariamente, mas sim de maneira a contar histórias, são suas cartas que se destacam por serem registros da vida poética de um homem que se achava o mais ridículo, inútil e triste de todos os homens. 

John Keats

É compreensível, portanto, que quando Jane Campion pensou em fazer um filme sobre John Keats, foi nas cartas de amor dele para Fanny que ela se concentrou. São apenas 37 cartas - se um dia existiram mais, não sabemos com certeza, embora seja possível. As dela foram enterradas com ele, e se perderam no tempo, guardando seus restos mortais, imiscuindo-se com o que um dia foi o homem que amou tanto uma mulher que marcou a história da literatura para sempre com o perfume desse amor. 

Bright Star (traduzido para o português como Brilho de uma paixão) é um filme delicado. A vida no início do século XIX (especificamente entre 1818 e 1820) era repleta de preocupações, doenças e imagens desagradáveis. Mas o mundo interior do Romantismo recém-florescido era rico e repleto de paisagens belas, com campos de lavanda e borboletas. O sangue da tuberculose que mancha as flores recém-colhidas também é belo, ainda que sombrio e triste. E isto é Bright Star: uma ode à beleza de um amor manchado pela morte. 

Existe uma idealização do poeta romântico, que se tornou aquela figura etérea cuja morte precoce apenas confirma a silhueta única de um ser que era delicado demais para este mundo. John Keats talvez fosse realmente delicado demais. Ele próprio escreveu, em carta, que "O mundo é brutal demais para mim". Mas também era uma pessoa, um jovem normal de sua época. À parte da poesia, ele passava longas horas fazendo nada, ou jogando com amigos, bebendo, se divertindo. O que o distingue, então? É esse amor por Fanny, sua visão interior que valorizava o sentimento acima da razão, sua obsessão por mitologia grega e como ele mergulhava em clássicos de forma voraz, ou será que todas essas coisas são apenas parte de um todo? Por isso, é difícil capturar a essência de uma pessoa tão idealizada, de forma tão etérea, que morreu há 200 anos. 


Mas Jane Campion consegue nos contar a delicada e triste história do amor de Keats e Fanny sem abrir mão de cenas que mostram a personalidade do poeta para além da literatura. Antes dela entrar em sua vida de vez, Keats é visto em diversos momentos com Mr. Charles Brown (Paul Schneider), seu amigo em cuja casa ele morava de aluguel na época em que a conheceu. Brown também era poeta - ou aspirante a poeta, melhor dizendo -, mas sua personalidade estava longe da gentileza que emana de Keats. Ele era rude, sarcástico, ferino. Como um homem de posses de sua época, sabia que estava socialmente acima da maioria das pessoas, e fazia questão de que todo mundo soubesse disso também. Não tinha responsabilidade social com nada e não fazia questão de ser agradável. Como, então, John Keats, um homem tão gentil e etéreo, pôde ser amigo de alguém assim? São essas cenas que nos fazem vislumbrar o Keats homem, o Keats amigo, o Keats que não era poeta ou apaixonado, mas apenas um jovem que se divertia com brincadeiras por vezes ofensivas, regadas a álcool. E nada disso o diminui - só o torna mais humano. 

A curta vida de John Keats foi repleta de perdas. Com a morte como companheira, Keats aprendeu desde cedo a lidar com a incerteza e a apreciar a beleza em tudo o que podia, pois "uma coisa bonita é uma alegria eterna", como escreveu em um de seus poemas. Seu pai morreu de uma queda de cavalo quando o poeta tinha apenas 8 anos. Sua mãe morreu de tuberculose quando ele tinha 14. Seu irmão durou mais alguns anos, porém morreu quando Keats tinha recém 22 anos. Restando apenas um irmão, que havia se mudado para os Estados Unidos com a esposa, e uma irmã menor de idade, que vivia sob tutela de outra família, não lhe restava muito exceto viver sua vida um dia de cada vez. 

Após tantas perdas, Keats aprendeu a encontrar refúgio em si mesmo. Contemplar a beleza da natureza, da literatura, da poesia e da arte eram o que lhe enchia o coração, e ele não desejava casar-se. O amor romântico estava fora de cogitação para ele - até porque, pobre como era, não poderia arcar com o sustento de uma família. 

"Apesar de sua felicidade e sua recomendação, espero nunca me casar. Embora a mais bela Criatura estivesse esperando por mim no final de uma Jornada ou Caminhada; embora o tapete fosse de Seda, as Cortinas das Nuvens da Manhã; as cadeiras e o sofá cheios de penugem de Cygnet; a comida Maná, o Vinho além de Claret, a Janela que se abre sobre o lago Winander, eu não deveria sentir — ou melhor, minha Felicidade não seria tão boa, pois minha Solidão é sublime. Então, em vez do que descrevi, há uma Sublimidade para me receber em casa – O rugido do vento é minha esposa e as Estrelas através da vidraça são meus filhos."

(Carta escrita em outubro de 1818 a seu irmão George)

Carta de John Keats a seu irmão George (1818)

Essas certezas sobre o que queria para sua vida começaram a mudar quando conheceu Fanny, num dos períodos mais difíceis de sua existência: quando seu irmão mais novo, Tom, estava prestes a morrer de tuberculose. Era Keats quem o cuidava, e tudo era tristeza e perda ao seu redor até o momento em que pôs os olhos em Fanny Brawne. 

O cotidiano de Keats não mudou imediatamente por causa desse amor, que nasceu aos poucos, primeiro como algo saído das páginas de Orgulho e Preconceito, com o poeta percebendo aquela jovem que estava por perto, mas detendo-se em suas falhas ao invés de se dar conta de que tamanho reparo na figura dela já era o amor nascente. O início de Bright Star nos mostra esse começo do sentimento, tão desconfiado e atrapalhado que chega a ser quase cômico. Keats seguia sua vida, mas a lembrança de Fanny lá estava, pairando como algo que ele não podia decifrar. Sabemos disso através das cartas que ele escreveu, e o filme é fiel mostrando essa estranheza entre eles antes que ambos assumissem seus sentimentos. 

Outro vislumbre da personalidade de Keats para além da poesia pode ser visto na cena em que, após 10 dias de viagem, ele retorna à casa de Brown - cuja metade estava alugada para a mãe de Fanny e sua família - e, ao saber de uma carta de amor que o amigo mandara a Fanny numa brincadeira, para provocá-la, faz um escândalo. Vai na frente da parte ocupada pela família dela, na chuva, e começa a andar nervosamente de um lado a outro. Quando Fanny sai para encontrá-lo e ver o que estava acontecendo, ele dá as costas; então, ela o segue até uma clareira, e Brown atrás. A cena toda demonstra o descontrole de Keats ao pensar que Brown e Fanny estavam tendo uma espécie de caso, aproximando-se romanticamente durante os dias em que esteve fora. O desespero do poeta é tamanho pois todos ali sabiam que embora ele gostasse dela, Keats não podia casar-se, já que não possuía renda suficiente para tal. Nesse momento, ele agride Brown fisicamente, o que é interessante, pois Keats era conhecido por ter um temperamento esquentado e se meter em brigas (uma vez ele bateu no filho de um açougueiro porque o rapaz estava maltratando um gatinho). 

É nessa cena, inclusive, que Keats diz a Brown, enfurecidamente, uma das falas mais marcantes do filme: "Existe uma santidade nas afeições do coração. Você não sabe disso?". A frase não foi originalmente dita nesse contexto, mas sim em uma carta escrita em 1817, um ano antes de conhecer Fanny:

"Não tenho certeza de nada exceto da santidade das afeições do Coração e da verdade da Imaginação - O que a imaginação apreende como Beleza deve ser verdade."

Mas é sabido que Keats se indispôs com Brown por causa de Fanny. O amigo não gostava de seu amor, e fazia questão de dizer isso, provocando-a. Anos mais tarde, um Keats enciumado e doente teve medo de que Brown estivesse flertando com Fanny, e escreveu para ela que embora soubesse o quão bom amigo o outro era, ele não desejava vê-lo nunca mais, ou, caso sobrevivesse, o veria apenas quando ambos fossem velhos e pudessem pôr de lado essa mágoa. 

As cartas de Keats e o olhar de Fanny 

As cartas de Keats são muito utilizadas no filme. Embora o uso mais evidente seja realmente o que se dá quando Fanny recebe a correspondência do poeta para ela, qualquer pessoa que tiver lido as cartas que ele trocou com amigos, editores e familiares saberá reconhecer nas falas e ações das personagens o conteúdo delas ali, encenado. É uma verdadeira viagem no tempo, como se estivéssemos diante de um John Keats em seu período mais criativo, no qual produziu mais poemas - pouco antes de morrer. 

O olhar que nos conta a história também é um ponto interessante em Bright Star. Somos apresentados àquela narrativa como uma figura plasmática que paira sobre a casa da família de Fanny Brawne. Ainda que John Keats seja o nome mais conhecido nesse drama, são as descobertas e reações de Fanny que acompanhamos. Vemos Keats quando ela o vê. Somos convidados a observá-lo junto dela, e a nos apaixonarmos por ele tão lentamente quanto ela. É curiosa e bem-vinda essa abordagem, já que por muitos anos Fanny ficou conhecida como a mulher que não havia valorizado, ou amado suficientemente, John Keats. Isso se deu porque dele temos as belíssimas e apaixonadas cartas enviadas a ela, mas dela não temos nada, exceto uma pintura, um daguerreótipo e algumas cartas trocadas com outras pessoas, já que Keats foi enterrado com as cartas dela, que se perderam para sempre. Todavia em 1937, a correspondência de Fanny finalmente veio à tona - eram as cartas que ela trocou com a irmã dele, também chamada Fanny, dentre outras pessoas. Isso trouxe nova luz a quem ela realmente era. 

Os amigos de Keats não gostavam de Fanny, achando que ela era fútil e que não correspondia ao seu amor por gostar de bailes e responder espirituosamente aos flertes de outros homens. Em críticas do livro das cartas de Keats para Fanny, publicado no final do século XIX, em 1872, quando esta já tinha morrido em 1865, muitos conhecidos, admiradores e estudiosos de John Keats escreveram as coisas mais vis sobre ela, declarando, basicamente, que ela o matou de tristeza, enfraquecendo-o para a doença que o culminou. 

Na época, acreditava-se que quando um homem estava apaixonado e seu desejo não era fisicamente consumado, ele adoecia. Com essa visão, ninguém se espantou muito quando Keats apareceu doente. Para seus amigos, o amor por Fanny o havia diminuído. Já que não podia casar-se e era honrado demais para deitar-se com ela sem o casamento (o que estragaria para sempre a reputação de Fanny, que dificilmente conseguiria casar-se ou ter qualquer emprego se não fosse virgem), esse amor e todos os desejos que vinham com ele o consumiam. Já fraco pela tuberculose e pelas sangrias, o tratamento padrão da época, a mente de Keats se apoiava em Fanny e na idealização de uma possível melhora para poder estar com ela e concretizar esse amor. 

Na cena de despedida de Keats, quando este parte para a Itália numa última tentativa de recuperação, tentando fugir do rigoroso inverno londrino, é mostrado ele e Fanny no quarto, sozinhos. Ela tenta aproximar-se dele e deitar-se com ele, deixando claro que queria aquilo; mas ele recusa. Não poderia fazer isso com ela. Em cenas anteriores, ele havia recusado a mesma sugestão feita por seu amigo, Charles Brown, que lhe perguntou por que o poeta não a levava para a cama de uma vez e acabava com aquela agonia. Aliada à crença da morte por tristeza de um amor não consumado estava o desespero de Keats, presente para qualquer um que fosse conversar com ele. Tudo o que ele via, pensava e desejava era Fanny. Pouco antes de morrer, seu último livro publicado, Lamia, Isabella, the Eve of St. Agnes and Other Poems, em julho de 1820, havia feito certo sucesso, e se estivesse bem ele poderia casar-se. Mas a doença o impedia. Tudo isso o angustiava, pois cada pequeno grão de felicidade era acompanhado de uma grande perda. 

Alguns meses mais tarde, já em Roma, um convalescente Keats confessou seu amor incessante por Fanny a seu amigo Joseph Severn, o jovem pintor que o acompanhou até o outro país. Severn registrou isso em suas cartas, ficando comovido e preocupado, acreditando, ele também, ser o sentimento do poeta pela jovem a causa de tamanho enfraquecimento. Mas é claro que ele estava errado. Contudo até mesmo Keats, longe de todos a quem conhecia e da mulher que amava, e agora encarando a realidade de que seu corpo físico partiria em breve, escreveu a seu amigo Charles Brown dizendo: "Meu caro Brown, eu deveria tê-la tido quando estava com saúde, e assim teria permanecido bem". A tuberculose naquela época era chamada de consumption, consumição. Mas o amor por Fanny também lhe consumia. Eram duas batalhas que ele não poderia vencer. 

Somente após três semanas a notícia da morte de Keats chegou até Fanny. Ela, então, escreveu para a irmã dele, dizendo: "Eu não superei isso e nunca superarei". De fato, Fanny nunca se recuperou da morte de seu amado. Ela usou as vestimentas propícias ao luto por doze anos e caminhava quase todas as noites ao lado do lago em Wentworth Place, na escuridão, relendo as cartas de Keats. A carta continua: 

"Estou paciente, resignada, muito resignada. Sei que meu Keats está feliz, eu sei que meu Keats está feliz, mil vezes mais feliz do que ele poderia estar aqui, porque Fanny, você não pode, você não pode saber o quanto ele sofreu. Tanto que acredito, se estivesse em meu poder, não o traria de volta. Tudo o que lamento agora é que eu não estava com ele, e tão próxima dele quanto eu era... Pelo menos, ele nunca foi enganado sobre sua condição, embora os médicos fossem ignorantes e insensíveis o suficiente para lhe mandar àquele país miserável para morrer, pois agora é sabido que a recuperação dele era impossível antes dele nos deixar, e ele poderia ter morrido aqui com tantos amigos para confortá-lo e comigo comigo ao seu lado. Tudo o que temos para nos consolarmos é a grande alegria que ele sentiu por seus infortúnios terem acabado."

Em 1937, trinta e uma cartas de Fanny para a irmã de Keats, Frances (também chamada de Fanny) foram publicadas. Em uma delas, quando Keats ainda era vivo, Fanny escreveu: "Se eu perdê-lo, perco tudo". Alguns anos depois, já em luto, ela pediu, no entanto, para que a irmã dele nunca mencionasse o nome dela ligado ao do poeta. E se Fanny já era alvo de ódio e revolta dos amigos e admiradores de Keats, esses sentimentos de que ela não era digna dele foram reavivados por essa carta. As acusações, nas quais muitos acreditam até hoje, eram da natureza dos sentimentos dela, alegando que ela nunca amou Keats da forma como ele a amava, e que, portanto, o destruiu. 

Mas as pessoas tendem a esquecer que enquanto Keats era um homem, e um poeta, ou seja, um homem sensível e respeitado por seus sentimentos, Fanny era apenas uma jovem mulher de família humilde, e não podia se dar ao luxo de ter um escândalo associado a ela. Por mais que amasse Keats, e certamente o amava, ela sobreviveu mais de quarenta anos sem ele. Se alguém tivesse sabido, fora do círculo de confiança de sua família e da irmã de Keats, que ela não havia sido apenas noiva dele, mas que moraram na mesma casa por muito tempo, sua reputação estaria arruinada. O próprio marido de Fanny não sabia de nada disso - ela casou-se mais de uma década depois da morte do poeta, e seu marido apenas sabia que um dia Fanny conhecera Keats, mais nada. Por isso, é tão importante que Jane Campion tenha nos dado o olhar de Fanny em Bright Star. O choro desesperado dela no final, ao receber a notícia da morte de seu amado, é doloroso e genuíno, e não retrata apenas o luto da morte dele, mas também o luto pela vida que ela nunca poderia viver. E sobre a qual teria de silenciar para sempre. 

O amor de Keats e Fanny foi julgado de todas as maneiras - sobre ele, pairava o estigma de ser um homem muito sentimental, que se deixava fazer de idiota; sobre ela, a pura misoginia que não conseguia entender as razões para uma mulher jovem e solteira se resguardar da opinião pública, mantendo sua reputação. Mas apesar de todos os muitos pesares, esse amor sobreviveu, e é lembrado com a tristeza e o lamento dos amores trágicos. 


Referências 



Mia Sodré
Mestranda em Estudos Literários pela UFRGS, pesquisando Apolo, Dioniso e a recepção dos clássicos em O Morro dos Ventos Uivantes. Escritora, jornalista, editora e leitora crítica, quando não está lendo, escreve sobre clássicos. Vive em Porto Alegre e faz amizade com todo animal que encontra.

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