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O Livro do Chá: a tentativa de um escritor traduzir a sua cultura

“O Oriente e o Ocidente, como dois dragões lançados em mar tumultuado, em vão tentam reconquistar a joia da vida. Precisamos uma vez mais de uma Niuka para reparar a grande devastação; estamos à espera do grande avatar. Enquanto isso, vamos a um gole de chá. O fulgor vespertino ilumina bambus, fontes borbulham com alegria, e o sussurrar dos pinheiros se faz ouvir em nossa chaleira. Vamos sonhar com o efêmero, e demoremo-nos um pouco mais na formosa tolice das coisas.”

O trecho acima pertence a uma obra de uma importante figura para o cenário artístico do Japão no final do século XIX e início do século XX. É possível deduzir, lendo essas linhas isoladamente, que seja um texto de filosofia com um toque gracioso de zen budismo. Quem sabe um ensaio pessoal de reflexões soltas - com espaço para contemplação e uma boa xícara de chá quente, por favor. Mesmo um registro peculiar sobre a relação Ocidente-Oriente no período. Ótimas hipóteses. Todas corretas. 

Estamos falando de O Livro do Chá (The Book of Tea), publicado em 1906 em Nova York pela editora Fox, Duffield & Co, escrito por Okakura Kakuzō (1862-1914). Esse personagem de dimensões miúdas e rosto austero nasceu em Yokohama, cidade localizada na província japonesa de Kanagawa que ostentava um importante porto comercial, sendo seu próprio pai um comerciante de seda. Nascera e passara sua tenra infância em meio àquela efervescência de culturas estrangeiras que chegavam ao porto como clientes e, não raras vezes, como negociantes. Seu pai logo reconheceu a necessidade do aprendizado da língua inglesa, necessidade esta que logo estendeu-se aos filhos, o que proporcionou ao menino Kakuzō a oportunidade de estudar em uma escola no modelo de missionários cristãos, onde aprendeu inglês aos nove anos de idade. 

Dentre seus vários títulos ao longo da sua vida excêntrica, podemos citar escritor, pesquisador, professor de arte na Universidade de Tóquio, funcionário público no Ministério da Educação japonês, curador do Museu de Belas Artes de Boston e do Museu Imperial japonês, aventureiro, músico e poeta. Sua agenda pessoal de contatos incluíam figuras (nada) singelas, como Isabella Stewart Gardner, patrona das artes estadunidense cuja coleção pessoal hoje é um museu que carrega seu nome. 

Dito isso, é justo dizer que Kakuzō nasceu em um período bastante propício para seus questionamentos e provocações - que vamos discutir mais adiante. A Era Meiji (1868-1912) é, talvez, o período mais conhecido, comentado e pesquisado da história nipônica. Trata-se do recorte histórico das consequências da abertura dos portos japoneses sob imposição estadunidense após séculos de um suposto isolamento, consequências que, ignorando os pormenores político-econômicos, colocariam a serena tradição japonesa em conflito direto com a arrasadora e, a esse ponto, inevitável modernidade ocidental. Período em que as diferenças entre ocidente e oriente pareceram gritantes, fato que geraria uma série de acordos e desacordos pelas mais diferentes classes de pessoas. 

Tantos fatos e títulos citados são apenas instrumentos para localizar o autor em uma visão muito geral. Se as pessoas, experiências e convicções da vida de Kakuzō fossem ingredientes, suas obras seriam a grande refeição que você não vai se arrepender de saborear (e repetir), embora talvez não seja adequado dizer que seja de fácil digestão. Ao ler pela primeira vez O Livro do Chá, muito provavelmente você termine a última página com o gosto das ervas na língua, mas sem entender direito por que diabos não aprendeu nada sobre preparo de chá, porém ainda assim precisa desesperadamente de uma xícara.

Kakuzo Okakura

O livro é consideravelmente curto. Na edição em circulação no Brasil pela editora Estação Liberdade, conta com não muito mais que cem páginas. Ainda assim, o olhar desavisado de quem lê logo vai perceber que está diante de um texto denso e bonito. Denso não porque a leitura seja excessivamente arrastada - muito pelo contrário, Kakuzō é rápido como o vento em pular de um assunto para o outro -, mas porque a bagagem cultural e intelectual do autor aqui se mostra em seu ápice. Bonito não porque necessariamente pretendesse ser assim, mas porque é, apenas. Assim como todas as coisas tolas e efêmeras que ele nos convida a contemplar. Os capítulos são divididos em sete, cada qual servindo minúcias deliciosas que nos levam a um passeio entre antigos mestres e diálogos sobre o taoísmo. 

O assunto geral da obra é a cerimônia do chá - chanoyu, para os íntimos -, ou pelo menos Kakuzō finge que é, e a gente finge que acredita. A cerimônia em questão é tradicionalíssima na terra do sol nascente e é defendida pelo autor como não apenas uma performance ritualística-artística de preparo e apreciação da bebida, mas como um verdadeiro caminho de vida, batizado por ele mesmo como “chaísmo”. Todo o processo do chanoyu é pautado com muito critério em uma série de etapas que pretendem criar uma atmosfera perfeita para a hora de apreciar o chá. Em outras palavras, o primeiro gole não é o início da coisa. A preparação do ambiente, o ferver da água, a caligrafia - escolhida especialmente para aquela ocasião - pendurada na parede do cômodo, tudo isso já é a cerimônia em curso e todos os seus estágios juntos representam uma síntese do modo de vida japonês, tese também sustentada por Kakuzō. 

Não querendo jogar um balde de chá frio - pelo perdão do trocadilho -, mas o pulo do gato é que ninguém sai formado desse livro na arte da cerimônia. O texto não oferece qualquer passo a passo de como fazer chá, embora nos entregue uma contextualização histórica, filosófica, e, principalmente, estética muito rica. Isso porque Kakuzō estava menos interessado em se colocar na posição de mestre cerimonialista (título que não consta na sua lista) e mais interessado em fazer sua cultura ser ouvida pelo Ocidente livre de filtros estereotipados e das lentes do exotismo. A melhor chave de leitura aqui talvez seja "tradução''. 

O Livro do Chá foi publicado pela primeira vez nos Estados Unidos durante uma das várias estadias de Kakuzō por lá, assim como suas duas outras obras anteriores - sendo O Livro do Chá a sua última publicação em vida. O texto foi inteiramente produzido em inglês sem a mediação de um tradutor. Kakuzō já era fluente há tempos e já havia, inclusive, palestrado em uma feira internacional em terras estadunidenses trajando orgulhosamente seu kimono e hakama. O Livro do Chá só viria a ser traduzido para a língua japonesa anos depois, o que deixa óbvio que o autor estava falando diretamente com o Ocidente. Mais especificamente Europa e América do Norte. 

Parágrafo após parágrafo, vemos o esforço de Kakuzō por trás de sua escolha pela temática do chanoyu. Utilizando-se dos símbolos presentes na cerimônia, o autor é feliz em aproveitar todo gancho para discorrer sobre o valor de cada gesto para a sociedade nipônica enquanto dá uma verdadeira aula de sensibilidade estética. Mais que uma exposição/apresentação de seu lugar, existe também o desejo de ser compreendido, e é aqui que a nossa chave de leitura é tão importante. Kakuzō muito astutamente utiliza-se de recursos como as figuras de linguagem para se expressar e mediar a compreensão dos ocidentais sobre a cultura japonesa, como no trecho em que chama Chikamatsu Monzaemon, dramaturgo do século XVII, de Shakespeare japonês”, ou quando compara o Ocidente e o Oriente com dois dragões que se lançam em busca da joia da vida - criando uma conexão através de um propósito comum entre os dois “lugares”, além de uma esperança de harmonia entre ambos. Não são recursos perfeitos, e o próprio autor reconhece o fato, assim afirmando que “tradução é sempre uma traição” e que “definição é sempre uma limitação”. Ainda assim, a tentativa é válida principalmente enquanto uma forma de se entender melhor o(s) propósito(s) dele com a escrita desse livro. 

Chanoyu, de Utagawa Kuniyoshi (1844)

No entanto, não se deixe enganar pelo aroma doce da camélia: a graça do chá verde é seu gosto amargo. Desde as primeiríssimas páginas do primeiríssimo capítulo, Kakuzō não poupa críticas à Europa, Estados Unidos e à classe de japoneses que, de acordo com sua análise, “exageraram na adoção de seus costumes e etiquetas, na esperança de que a aquisição de colarinhos engomados e cartolas de seda implicaria a conquista de sua civilização”. Seu descontentamento é pontual com os delírios racistas e orientalistas¹ inventados ao redor do que seria um asiático: um ser violento, exótico, lascivo ao mesmo tempo que infantil e inferior até mesmo em sua estrutura biológica. Nas palavras do autor: 

“Quando o Oriente compreenderá ou tentará compreender o Oriente? Nós, os asiáticos, ficamos com frequência consternados com a estranha teia de fatos e fantasias que tem sido tecida ao nosso respeito. [...] Ou é fanatismo inútil ou sensualidade abjeta. [...] Dizem até mesmo que somos menos sensíveis à dor e ao ferimento em decorrência de certo endurecimento da nossa estrutura nervosa!”

Essas linhas referem-se ao racismo científico pregado entre os figurões das mais diversas áreas de conhecimento no século XIX. Tais estudiosos, majoritariamente europeus, buscavam conceitos da biologia, psicologia, frenologia, dentre outras “gias”, para defender o indefensável: a noção de que existem raças inferiores. A propósito, essas raças têm nome e endereços. São elas os latinos, africanos e orientais. 

Kakuzō também é bastante consciente da hipócrita narrativa ocidental de levar “civilidade” aos povos conquistados através de invasões e matanças, o que ele nomeia como “Desastre Branco” em uma contraposição com o termo “Perigo Amarelo”, popular entre as mais altas classes de intelectuais e políticos brancos. Também denuncia a disparidade no esforço entre os dois mundos: enquanto estudantes japoneses iam para o exterior para estudar e adquirir conhecimentos úteis do outro lado do mundo, os ocidentais não vinham ao seu país senão para impor, saquear e colecionar histórias bizarras em seus diários de viagem. 

Olhando assim, é tentador imaginar que o autor seja um ultraconservador e ultranacionalista - ou seja, ultrapassado. Não é dessa maneira. Internalizando bem o conceito zen de que tudo está em movimento e que o vazio é a morada das possibilidades, Kakuzō defende a máxima de que a própria arte não pode ser um mero depósito de saudosismo vazio, e isso se aplica ao próprio processo pelo qual o Japão estava passando. Em diversas passagens, o autor reforça a ideia de que a contemporaneidade não pode ser uma repetição do passado. A questão para ele parece ser muito menos sobre a modernidade chegar às terras nipônicas e muito mais sobre como essa tal aproximação assemelhava-se deveras com dominação. 

Durante o período no qual Kakuzō pisou sobre a terra, muitas obras de arte japonesas foram vendidas e exportadas a preços irrisórios para serem expostas em coleções dos ricaços europeus e estadunidenses. Cartazes de policiais vestidos à moda ocidental pisando em tanukis² estampavam lugares por aí. Os saberes acumulados ao longo de séculos eram agora tratados como uma memória vergonhosa diante da soberana ciência moderna. Kakuzō, em sua posição privilegiada de poder transitar entre países e se comunicar com os mais diversos núcleos, sabia de sua responsabilidade de denunciar esse processo violento. Chegar até os ouvidos de quem tinha condições de ouvir, mesmo sem ter certeza de que seria compreendido. Oferecer mais um lugar na sala de chá ainda que sem qualquer garantia de que o convite seria aceito. 

Se isso soa melancólico é porque o próprio livro se despede assim de nós. O último capítulo, “Os mestres do chá”, como já sugere o título, gasta algumas poucas páginas para homenagear alguns dos antigos sábios da cerimônia. Nos derradeiros parágrafos, ele nos conta a história de como Rikyu - um dos mais notáveis do hall da fama do chanoyu - fez sua passagem para o além. Ele mesmo, Kakuzō, partiria não muitos anos depois, deixando como última publicação a síntese do trabalho de uma vida no qual não houve uma menção sequer sobre si mesmo ou qualquer pretensão autobiográfica, mas para a nossa sorte, coube um capítulo inteiro sobre flores. 

Notas 

  • ¹“Orientalismo”, no sentido aplicado no texto, é um conceito difundido por Edward Said, crítico literário e ativista palestino. O termo se refere ao processo histórico de como intelectuais ocidentais, sobretudo ingleses e franceses, criaram um universo, intrinsecamente racista, no imaginário coletivo do que seria um oriental. Para uma melhor compreensão, recomenda-se a leitura de sua obra Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente (1978).
  • ²Figuras lendárias dos mitos japoneses em forma de texugo ou guaxinim. 


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Referências

  • O Livro do Chá (Kakuzō Okakura)
  • The life of Kakuzo, author of the book of tea (Yasuko Horioka)

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