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Resgatando as mulheres da filosofia grega clássica


“Não é que não houvesse mulheres que filosofassem. É que os filósofos preferiam esquecê-las, talvez, depois de terem se apropriado de suas ideias.”

(Umberto Eco)

Raramente alguém familiarizado com as narrativas tradicionais pensa na figura de uma mulher quando se fala em filosofia. Muito menos quando se trata da antiguidade clássica. Nosso imaginário é logo preenchido por homens em suas vestes brancas com suas longas barbas imponentes.

Porém apesar da filosofia ter nutrido - e ainda nutrir - uma autoimagem bastante masculina, é um fato consolidado que as mulheres participaram da atividade filosófica desde seus primórdios, ainda que tal afirmação possa causar surpresas para muitos, inclusive estudantes de filosofia.

Curiosamente, essa afirmação/revelação está longe de ser algo novo propriamente. Ainda lá no século XVII, na França, o professor de retórica Gilles Ménage (1613 - 1692) escreveu uma primeira história sobre mulheres na filosofia clássica, na qual aparecem citados pelo menos 65 nomes de mulheres. Sim, 65, um número substancial para dizer o mínimo.

Nos últimos anos, com o desenvolvimento da filosofia feminista, a tarefa de resgatar a memória e o pensamento dessas mulheres se tornou prioridade. Foi assim que surgiu uma das empreitadas mais significativas, coordenada pela professora Dr. Mary Ellen Whaite, o “A History of Women Philosophers” em 4 volumes. Leitura recomendada para qualquer interessado no assunto. Mas voltemos às pensadoras gregas.

As pesquisas conduzidas por Kathleen Wider mostraram que as mulheres fizeram parte da filosofia grega desde seus primórdios. Sim, desde a primeira escola filosófica, a pitagórico, as mulheres estiveram envolvidas na atividade do pensar. Nem sempre fica claro, devido à perda dos registros, quais papéis elas ocupavam, mas o fato é que de modo direta e, às vezes, indireto, as mulheres estiveram lá.

Como vocês podem imaginar, recontar a história e a filosofia dessas mulheres é um desafio por várias razões. Primeiro, que nenhum texto ou carta completo chegou até nós, quando muito existem fragmentos. Depois, não foi incomum que se escrevesse a respeito delas muito após sua morte, de modo que a informação possa ter sido distorcida. Contudo estes desafios não devem ser tomados como impedimentos, já que isso nunca impediu de trabalhos serem feitos a respeito dos homens do qual se sabe pouco ou nada.

Apesar das dificuldades, ou talvez justamente por causa delas, pela delícia de enfrentar um desafio, trouxemos aqui algumas dessas mulheres. Para que se possa conhecer seus nomes, para nos lembrar de que a filosofia sempre foi feita também por mãos e cabeças femininas. Vamos a elas!

Temistocleia de Delfos (600 a.C.)


Considerada por muitos como a primeira filósofa, temos pouquíssimas informações a seu respeito. Tem sido considerada filósofa, matemática e profetisa do famoso templo de Delfos, lá na Grécia. 

O Suda (primeira enciclopédia do mundo, feita lá no século X) nos conta que ela teria sido professora de Pitágoras, e Diógenes Laercio afirma que ela teria sido a fonte de suas doutrinas éticas. Ainda corria um boato de que ela teria sido irmã do pensador, mas não temos comprovações a respeito.

De qualquer modo, é curioso notar que lá nas raízes da filosofia encontramos uma mulher vidente e matemática.

Aspásia de Mileto (c. 470 - 400 a.C.)


 “O debate de Sócrates e Aspásia”, por Nicolas-André Monsiau (c. 1800)

Embora tenhamos várias fontes que a citam, poucas delas se mostram confiáveis. Sabemos que Aspásia foi uma figura influente na sociedade de sua época, era companheira de Péricles (governante de Atenas por volta de 445 a.C.) e amiga de pensadores como Sócrates, Xenofonte, Alcibíades, Anaxágoras e Fídias.

Era uma estrangeira a quem nunca foi permitido se casar, famosa por suas habilidades retóricas e intelectuais. Diz-se que teria sido professora de Sócrates, e até aparece citada em um diálogo de Platão.

SÓCRATES: Pois para mim, pessoalmente, Menêxeno, não é nada espantoso que eu seja capaz de discursar, uma vez que, por sorte, tenho por mestra aquela que certamente não é insignificante em retórica; pelo contrário, tem formado muitos outros bons oradores, dos quais um se destacou entre os helenos: Péricles, filho de Xantipo.

MENÊXENO: E quem é ela? É evidente que falas de Aspásia, não?

SÓCRATES: Falo, decerto; e me refiro também a Conos, filho de Metróbio. Pois esses são os meus dois mestres: ele em música, ela em retórica.”

(Platão, Menêxeno, 235e2-9)
“Aspásia cercada por filósofos gregos”, por Michel Il Corneille (1672)

Hiparquia de Maroneia (340 - 260 a.C.)


“Hipparchia of Maroneia” (c. século I). Artista desconhecido.

Integrante célebre da escola de filosofia cínica, Hiparquia teria sido a companheira do filósofo Crates de Tebas. Teria se casado com ele contra a vontade de sua família, abandonando a riqueza e os confortos da alta classe para viver ao modo dos cínicos, sem posses e vagando pela cidade.

Sabemos que era bastante habilidosa com as palavras, e que se demonstrava corajosa frente aos ataques recebidos de outros homens. Era uma mulher que desafiava os padrões de sua época, como podemos ver pela anedota contada a seu respeito.

“Quando Teôdoro lhe disse: Quem abandonou a lançadeira junto ao tear? Hiparquia respondeu: “Fui eu, Teôdoros, mas acreditas que tomei uma decisão errada se dediquei à minha educação o tempo que teria dedicado ao tear?”

Depois dessa resposta, acho que nem precisamos falar mais nada sobre ela, não é mesmo?

Hipátia de Alexandria (370 - 415 d.C)


“Hypatia”, por Julius Kronberg (1889) 

Provavelmente a filósofa mais famosa desta lista, que já teve até filme de sua vida, a matemática, astrônoma e pensadora neoplatônica viveu em Alexandria, no Egito, no período helenístico. Seu pai, Teón de Alexandria (335 - 405 d.C), foi além de matemático e astrônomo, o diretor da Biblioteca de Alexandria por um período de sua vida. Ela teria recebido educação do seu pai, que lhe ensinou filosofia e valores gregos, além, claro, dos saberes matemáticos. Diversas fontes antigas atestam de suas habilidades intelectuais e também sua beleza física, combinação que dizem ter atraído pessoas de todos os cantos para aprender com ela.

Infelizmente, seus tratados e textos não chegaram até nós. Sabemos, contudo, que ela teria escrito comentários à aritmética de Diofanto de Alexandria, às crônicas de Apolônio de Pergasus e até ao cânone astronômico de Ptolomeu. Também há indicações de que chegou a ser chefe da escola neoplatônica de Alexandria, embora não conheçamos a data exata em que assumiu o cargo.

Lamentavelmente, Hipátia teve um fim trágico. Seus ensinamentos foram vistos como pagãos numa Alexandria tomada por tensões religiosas. Acabou sendo assassinada por volta do ano 415 por uma multidão de cristãos, tema que tem sido pintado por diversos artistas nos últimos séculos.

“Havia em Alexandria uma mulher chamada Hipátia, filha do filósofo Teon. Esta última alcançou tanto conhecimento que ultrapassou em muito todos os filósofos de seu tempo, sucedeu a Platino na escola platônica fundada por ele e expôs todos os ramos da filosofia aos seus ouvintes. Por esta razão, estudiosos de filosofia afluíram a ela de todos os lugares. Além disso, apesar de sua autoconfiança e da autoridade que esse conhecimento lhe conferia, ela também aceitava as críticas com singular modéstia às vezes. E ela não tinha vergonha de aparecer com frequência entre os homens.”

Estas são apenas algumas das muitas mulheres que fizeram parte da filosofia antiga. Inteligentes, afiadas e frequentemente rompendo os limites estipulados em suas sociedades. É impossível deixar de sentir a força e a inspiração que elas nos transmitem até hoje, mais de dois mil anos depois.

Referências

Laura Elizia Haubert
Doutoranda em Filosofia na Universidade Nacional de Córdoba, Argentina (bolsista CONICET). Graduada e Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Cursando atualmente uma especialização em Arte e Filosofia pela PUC-Rio. Também é autora dos livros "Sempre o mesmo céu, sempre o mesmo azul" (Patuá, 2017), "Memórias de uma vida pequena" (Quintal, 2019) e "Doce olho do furacão e outras fúrias" (Penalux, 2021). Atualmente vive em Córdoba, na Argentina.

Comentários

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Que incrível! Muito importante trazer à tona esses nomes e conhecer a influência de mulheres na história.

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