Por falar em alvo, a história confirma como Madame Bovary se tornou motivo de burburinhos, críticas escandalizadas e retaliações em seu puro status de ficcionalidade. Isso foi tão sério que levou seu autor, Gustave Flaubert, à corte no ano de 1857. Os franceses não estavam prontos para uma mulher adúltera, oportunista e insatisfeita com sua realidade.
A jornada de Madame Bovary definiu os rumos narrativos da época, apresentou novas formas de se construir personagens nada planos, mas também abriu um caminho para um conceito, que transita entre a filosofia, a sociologia, a psicologia e a crítica literária, o chamado bovarismo.
Então, o que é o bovarismo? São muitos os acadêmicos que tentaram entender tal conceito, porém, quem ampliou os horizontes analíticos a partir da hipótese foi o francês Jules de Gaultier. Em Le bovarysme, de 1902, tudo gira em torno do eu “real” e o "imaginário", uma batalha de só um vencedor: a imaginação.
Esta faculdade é o poder atribuído ao homem de se conceber outro.
O significado disso é que o indivíduo possui, em sua essência, uma forma de distorcer sua visão de mundo para que consiga se enxergar como outra pessoa, completamente imersa em uma realidade que não lhe cabe. Isso é notável de várias formas na narrativa de Flaubert. As próprias leituras de Emma sobre romances proibidos e contagiantes modularam a devota maneira a qual a moça busca o amor, entre as carícias de seus amantes. Ela se vê como uma protagonista literária, e baseia seus atos nessa fantasia.
Por mais que a ideia de Gaultier faça sentido para se observar a complexidade dessa e de outras personagens, é inegável como muitos de seus conceitos são carregados de um moralismo conservador, utilizando termos como tara, degeneração e até mesmo raça para culpabilizar aqueles que se veem imobilizados em uma cadeia de devaneios. Felizmente, essa não é a única maneira de se definir o bovarismo.
Delphine Jayot, pesquisadora, pontua algo bem interessante sobre o tema: como o meio contribuiu para as ilusões de Emma, o clima de constante insatisfação que encontrou no consumo da literatura como peça-chave para desencadear a fabulação de si mesma. Ou seja, a conexão entre o psíquico e as circunstâncias construíram a Madame Bovary que conhecemos. Assim, mais conceitos são adicionados ao tema: o eu, a imaginação, a (auto)identificação e o contexto de produção, provando que a civilização tem o poder para determinar como uma pessoa deve se identificar, sob a pena de ser considerada louca ou não.
A verdade é que Emma nunca se adaptou aos locais em que viveu, desde o interior até a cidade, mesmo com o bom casamento ou seus diversos amantes, e esse é um ponto crucial na criação de uma bovariana. A personagem precisa se sentir eternamente fora de seu mundo, como uma barreira incômoda que a impede de se integrar, e seu único vislumbre de conexão seria transformar sua identidade por completo em busca do outro, aquele que não apresenta quaisquer problemas em ser incluído.
Ricardo Piglia é quem descreveu o bovarismo como “a ilusão de realidade da ficção como marca do que falta na vida”. A literatura é mero instrumento desse processo de não-pertencimento.
Pegando esse panorama complexo e tentando imaginá-lo imputado às minorias de uma sociedade, podemos entender que se mesmo aqueles privilegiados podem sentir que suas existências são párias, excluídas, o cenário para as mulheres não é muito bom. Como é possível se sentir parte de uma estrutura social que foi construída para te marginalizar? Imagine crescer consciente de que você não nasceu no lado das liberdades irrestritas e oportunidades constantes, do lado que desfruta de todo tipo de benefício só por ser quem é. Essa punição “natural” é infinitamente pungente para as bováricas, então, como não desejar ser o outro? Dessa forma, o suicídio de Emma demonstra para os leitores que nada pesa mais que o esgotamento da falta, profundamente imutável.
Em meio ao século XIX, era terrível para a sociedade pensar que uma mulher poderia sonhar em ser o outro inalcançável. Foi bell hooks quem disse que “a fantasia masculina é vista como algo capaz de criar realidade, enquanto a fantasia feminina é tratada como puro escapismo”. Nesse sentido, talvez o bovarismo possa ser muito mais que uma válvula de escape.
Mas, antes disso, precisamos conhecer as nossas bováricas, que trazem consigo a sensação de deslocamento de tudo ao seu redor, o olhar de alívio para algo que vai lançá-las em busca do inconcebível de que, ao caírem em si, só lhes restará o vazio, o silêncio mais doloroso e significativo da incompletude. Essa é a base para falar destas cinco mulheres, as sofridas sucessoras, as filhas de Madame Bovary.
Anna Kariênina
“Anna começou a ler e a entender o que lia. [...] Anna Aecádievna lia e compreendia, mas não tinha gosto em ler, ou seja, em seguir o reflexo da vida de outras pessoas. Sentia uma desmedida vontade de viver por si mesma.”
No cânone do russo Liev Tolstói encontra-se Anna Kariênina, publicado como romance em 1877. Nele, há a presença de uma protagonista bovárica: aquela Anna que se sente cansada da monotonia dos bailes extravagantes, que se sente insatisfeita com o casamento, que procura no adultério o êxtase que jamais encontrou em outro lugar. Apenas nisso, a maioria dos pré-requisitos para se tornar uma boa filha de Emma já foram cumpridos.
No trecho acima, fica nítido que o desejo de Anna não para em apenas se deleitar com o ardor de uma história. Ali, ela encontra as bases para tentar ser outro alguém. Para a dama, não basta ser um mero espelho de vidas alheias, somente a “realidade” proporcionará tal energia para suprir esse vazio existencial, algo tão forte que possa lhe oferecer uma recolocação na sociedade aristocrática. Sua obsessão ultrapassa as redes da ficção em uma tentativa desesperada de reconfigurar o cerne de sua identidade.
As trajetórias de Emma e Anna são marcadas pela morte, algo que já pode ser considerado um coeficiente comum para as mulheres bováricas. Porém, isso ganha um aprofundamento a mais na narrativa de Anna Kariênina, já que seu arco é marcado do começo ao fim pelo suicídio. Em seu primeiro encontro com Vrónski, Anna observa um homem morto nos trilhos do trem, certa de que ele havia se jogado para a morte. Tempos depois, e após mergulhar em uma profunda reflexão, decide seguir pelo mesmo caminho.
A cena de sua morte é envolta em sofrimento, mas também por um outro sentimento bem surpreendente: arrependimento, como um lapso tardio demais.
“Anna livrou-se da bolsa vermelha, encolhendo a cabeça entre os ombros, caiu embaixo do vagão apoiada nas mãos e, com um movimento ágil, como que se preparando para erguer-se logo depois, ajoelhou-se. E, nesse exato instante, horrorizou-se com o que fazia. 'Onde estou? O que estou fazendo? Para quê?' Quis levantar-se, jogar-se para trás; mas algo enorme, inexorável, empurrou sua cabeça e arrastou-a pelas costas. 'Deus, perdoe-me tudo!'”
O desespero é compreensível dada a situação, um uso que adiciona toques de dramaticidade ao acontecimento, e isso se torna ainda mais indigesto quando toda sua jornada leva a entender que essa era a única escolha possível para que a agonia abandonasse o corpo de Anna. Em uma vida de riqueza, luxos, posições de poder e relações com figuras ilustres, ela era constantemente perturbada pelo pesar de não pertencer a nenhum lugar, de não se sentir bem ao lado de ninguém, porque nada pode curar o vazio de uma alma. Que outra saída existe?
Para terminar com sua aflição, precisou pagar com sua própria existência. Por mais que hesite, tente voltar atrás, a luz do fim já a havia consumido.
A vida e a morte unem Bovary e Kariênina. Anna é filha legítima de Emma.
Ema Paiva
“Tudo era inferior ao seu desejo absoluto e, ao mesmo tempo, tudo lhe parecia inatingível. Tal é a força do desejo que mais imagina do que consome.”
O cenário agora é Portugal, e a escrita, a de Agustina Bessa-Luís. Nascida em 1922, entrou na cena literária na década de 1950 e já começara sua rotina de premiações. A lusitana ficou conhecida por escapar dos moldes consagrados do neo-realismo, superando “limitações do regionalismo folclorista, de subverter e refigurar o real, criando um imaginário próprio, sem dissociá-lo daquilo que fazia parte de sua vida e que a rodeava, como crenças, mitos e valores”, trazendo novos ares para as narrativas do romance histórico.
A obra na qual encontra-se a próxima bovárica é Vale Abraão. As coincidências com Madame Bovary não se restringem ao nome ou ao anseio por escapar da comunidade ao qual precisa frequentar algo apresentado pela personagem. A consideravam uma garota distraída, seu pai a achava assustadora, todavia, a maioria sequer entendia a complexidade que era existir em sua mente.
Como uma boa filha de Emma, era “como se fosse uma princesa que via mover-se o mundo a seus pés, mas com o qual não tinha muito em comum”, deslocada e sem relações estreitas com o seu reino. Ema cresceu livre, muito menos pressionada socialmente se comparada à Anna, e talvez isso tenha sido um dos fatores que a destruíram. Sua liberdade lhe deu a chance de viver sem amarras, sem entender o que era a submissão a qual as mulheres da zona rural de Portugal deveriam se sujeitar.
Passados os anos, Ema se casa com o médico Carlos Paiva e retorna ao seu ciclo de insatisfações e busca por aquilo que mudará sua vida, isolando-se com o propósito de rearranjar sua própria identidade e se colocar como o outro. Tamanho é o seu deslocamento das pessoas que ignorava até mesmo suas duas filhas; não havia ligação que fosse suficiente para mantê-la por perto.
“Vencidas as febres da dentição, livres já das doenças da infância, tanto Lolota como Luisona foram muito requisitadas pelas Paivoas, que deram em ser mães de papel e as levaram para Lisboa e as educaram quase de contínuo. Ema não reagiu. Ficava livre para uma espécie de solidão que cultivava como uma promessa.”
Os amantes também se apresentam na trajetória de Ema, tanto que acaba por engravidar de um deles. Outro destaque para a bovariana é a pressão internalizada sobre sua beleza, algo que a faz se aproximar ainda mais de Bovary; esse era seu instrumento para enfrentar a realidade, e ser desejada por homens casados abria as portas da mulher para novas relações familiares e disposições de poder, já que em sua mente era ela quem dominava os rapazes e os faziam abandonar o conforto de suas estruturas domésticas para desfrutar do adultério. É como se isso desse a Ema um novo lugar naquela comunidade, um lugar de desejo e autoridade sobre homens e mulheres. Esse é seu modo de se transportar para o outro, afinal, uma princesa precisa ser agraciada por seus súditos. Contudo, nada disso foi suficiente para livrá-la da falta inabalável. Só o fim lhe garantirá o alívio dessa dor.
Enquanto Emma e Anna ponderaram o suficiente a escolha do suicídio, não é possível cravar com certeza o que aconteceu com a outra Ema.
“Ao saltar para a embarcação, sentiu, debaixo dos pés, o ruído aziago das pranchas podres. [...] Como Ema era leve, elas apenas gemeram e pareceram resistir. Mas, subitamente, esboroaram-se como cogumelos negros, dos que crescem nas árvores e anunciam a sua morte. Ema não teve tempo de agarrar a beira do barco, o lodo fez-lhe fugir das maões o casco [...] Por um último traço de orgulho, não se debateu nem chamou por socorro.”
Ema caiu no mar pela ponte de madeira que cedeu, sim, mas o enunciado deixa claro que seu “último traço de orgulho, não se debateu nem chamou por socorro”. É plausível constatar que a desilusão toma a vida de Ema, e talvez seus pensamentos não estivessem tão distantes dos de Emma ou Anna. Sendo assim, orgulhosa e mergulhada pelo “poder” que possuía desde criança, se sente frustrada ao perceber que não ditou as regras de sua própria morte, novamente a vida não lhe dá opções agradáveis, então, no seu juízo final, bate o martelo e decide tomar o controle de seu fim, acatando a morte sem medo.
Ema é uma filha legítima de Bovary.
Maria Regina
“A retina desta moça fazia refletir cá fora todas as suas imaginações.”
Finalmente podemos pousar em terras brasileiras para analisar como Machado de Assis constrói sua bovariana no conto Trio em lá menor. Como o título já denuncia, a história desenvolve um triângulo amoroso, no qual Maria Regina tenta decidir se ficará com Miranda ou Maciel.
Os dois homens se destacam por serem opostos fundamentais. Enquanto Maciel é um jovem fútil, indeciso e sem opiniões formadas, Miranda se mostra um velho astucioso, feio e bem desagradável. Já não bastasse essa desarmonia, é perceptível que Maria Regina sofre por enxergar nos dois o homem dos seus sonhos: o que faltava em Miranda, se encontrava em Maciel, e vice-versa. Ambos são incompletos para a mulher nas mesmas proporções, e é isso que a faz prolongar esse jogo embebido de luxúria e indecisão. Indecisão, incompletude, falta - o uso dessas palavras já nos é familiar.
Esse contraste entre os dois pretendentes tem uma dinâmica ainda mais profunda: se aproximarmos dois ímãs do mesmo tamanho, quando os pólos opostos se encontrarem, eles se unirão a ponto de parecerem um só. Há uma relação entre o magnetismo e os personagens. Maria Regina faz um movimento contrário ao da física. Ao se deparar com sua mente extremamente imaginativa, que muitas vezes é descrita como fora de órbita e desconectada da realidade, acaba por distorcer também a imagem de Maciel e Miranda.
Seria coincidência demais duas pessoas completamente diferentes se apaixonarem pela mesma dama, ao mesmo tempo em que ela percebe que os dois são incompletos para o seu ideal. De acordo com Rosset, “o iludido transforma o acontecimento único que percebe em dois acontecimentos que não coincidem, de tal modo que a coisa que percebe é posta em outro lugar, incapaz de se confundir consigo mesma”. Ou seja, os homens são apenas criação de sua mente. O que era para ser dois na verdade é apenas um, e esse ser uno acaba por refletir a verdade de que todos os pretendentes que passaram pela vida de Maria Regina são incompletos, lhe restando a solidão e o mal falar de ser uma “solteirona”. Mas, após entender as condições do bovarismo, não é muito difícil perceber que, se tudo é incompleto para Maria Regina, logo, nem mesmo as pessoas que cruzam seu caminho serão capazes de conter a imensidão interna de seu vazio. Seus pretendentes são somente tentativas fracassadas de se vincular ao mundo.
Essa personagem é um exímio exemplo do que é ser uma bovariana:
Ninguém lhe nega a coração excelente e claro espírito; mas a imaginação é [...] adusta e cobiçosa, insaciável principalmente, avessa à realidade, sobrepondo às coisas da vida outras de si mesma; daí curiosidades irremediáveis.
A imaginação, o sonhar demais e a distância com o real são sua praga implacável, que atua com crueldade. A frase “sobrepondo às coisas da vida outras de si mesma” desenha o teor vago desse vazio. E como a única saída é buscar a outridade de si mesma, não há escolhas para Maria Regina.
Por isso ela termina o conto sem os homens ao seu lado e com um pesadelo que se equivale à morte para Emma e Anna, representando esse corte que liga Maria Regina à válvula de escape da imaginação, novamente a deixando sem opções de como prosseguir, tendo de enfrentar um “real” ao qual não tem nenhuma afinidade:
Sonhou que morria, que a alma dela, levada aos ares, voava na direção de uma bela estrela dupla. O astro desdobrou-se, e ela voou para uma das duas porções; não achou ali a sensação primitiva e despenhou-se para outra; igual resultado, igual regresso, e ei-la a andar de uma para outra das duas estrelas separadas. Então uma voz surgiu do abismo, com palavras que ela não entendeu:
– É a tua pena, alma curiosa de perfeição; a tua pena é oscilar por toda a eternidade entre dois astros incompletos, ao som desta velha sonata do absoluto: lá, lá, lá...
Na leitura desse trecho, algo bem específico da narração ncomoda: seu tom, que transparece a noção de que Maria Regina é culpada pela sua indecisão. Essa mulher, sempre em outro mundo, não correspondia àquele em que vivia; não há nada que a ligue a um lugar que jamais lhe pertenceu. Como ela pode ser julgada totalmente responsável pelo seus “erros” se ela nem sabe o porquê de se sentir assim?
Parece haver aí uma crítica à personagem. Albuquerque defende que o conto sustenta uma “crítica manifesta através de um ato de concretização do imaginário por meio da imaginação”. Todavia, parece difícil que a história tenha sido inteiramente construída como uma crítica de Machado de Assis a pessoas como a protagonista. Porém, existe a tese de que há uma grande sátira e ironia acerca daqueles que não se desprendem da fantasia inalcançável do Romantismo Brasileiro, afinal, o autor se sentia saturado de um gênero que não se reinventava há muito tempo.
E para além de Machado e suas considerações sobre a literatura, Maria Regina pode ter sido feita com o intuito de brincar e ironizar público e crítica literária. Ainda assim, é inegável sua potência como uma alegoria de algo muito maior e mais complexo, o retrato mais límpido de como o bovarismo pode ser um grande recurso para se criar personagens nada previsíveis.
Clara dos Anjos
“Clara era uma natureza amorfa, pastosa, que precisava de mãos fortes que a modelassem e fixassem. Seus pais não seriam capazes disso [...] ela vivia toda entregue a um sonho lânguido de modinhas e descantes.”
Impossível encerrar este artigo com outra personagem que não ser Clara dos Anjos, criada por aquele que iniciou os trabalhos e pesquisas sobre o bovarismo no país, imprimindo sua marca a ponto de abrir caminhos para se pensar o conceito exclusivamente no Brasil e na América Latina: Lima Barreto.
O escritor carioca, que se denominava um bovárico, sempre mostrou o poder da literatura de protesto que mimetiza a vida em prol de explorar os vários âmbitos da realidade brasileira, desde a desigualdade social ao racismo estrutural. Lima Barreto era uma figura incômoda para as elites e classes poderosas do Rio de Janeiro por não temer denunciar as mazelas das minorias, algo que conhecia tão bem. Seu boicote dos grandes círculos acadêmicos e literários foi explícito, mas não se tornou impeditivo para a potência de sua escrita.
O bovarismo em Clara dos Anjos é lido de uma forma bem diferentes das anteriores. No artigo “O terror urbano nas ruas de João do Rio”, são explicados os princípios de uma máxima carioca do século XX, de como várias camadas sociais mais favorecidas abriram seus braços para uma cultura que não lhes pertencia como forma de se distanciar daquilo que consideravam inferior. No caso do país, isso se referia à comunidade de negros e mestiços. Essa foi uma das várias tentativas de se expandir a desigualdade e estabelecer a dominância e superioridade das classes privilegiadas, que se incrustou na sociedade como uma identidade coletiva generalizada e que passa longe de romper o ciclo de submissão entre o país colonizado e seus colonizadores. Não era empecilho importar costumes europeus, se tornar o outro, se a elite alcançasse seu objetivo de higienizar o país. É nessas condições que se postula o bovarismo brasileiro, muito próximo do que comumente chamam de viralatismo.
Tal contextualização é necessária porque antes de se falar sobre a trajetória de Clara, é preciso conhecer Cassi Jones e Dona Salustiana, mãe e filho, e apenas pela leitura de seus nomes é possível compreender o intuito de Lima Barreto na construção dessa personagem. O enredo nos revela que Dona Salustiana, uma mulher branca e vaidosa, dizia ser descendente de um Lorde Jones, cônsul da Inglaterra em Santa Catarina. Ou seja, o nome do filho carrega o simbolismo de uma linhagem, ar de superioridade e seu bovarismo. Cassi acaba por transfigurar as mesmas características; ele se achava o legítimo dono do subúrbio.
Cassi Jones, um rapaz ruivo bem apessoado, cheio de marra e truques de sedução, estava sempre a tocar seu violão pelas ruas; poucos poderiam imaginar o tamanho de sua perversidade. Seu passatempo preferido era tirar a virgindade de garotas; porém, não qualquer garota: ele adorava mirar naquelas moças em vulnerabilidade social, sem grandes poderes econômicos ou poder para reprimir essa crueldade. Em outros termos: mulheres negras e mestiças. Sua escolha não era mera aleatoriedade, pois tinha plena ciência de seu privilégio frente a elas, sabia como uma mulher preta iludida seria somente um caso irrelevante, mais um caso de alguém que tentou algo que não lhe cabia, afinal de contas, a sociedade brasileira não foi feita para elas se apaixonarem. O homem tinha em seu histórico várias meninas com o coração partido, abandonadas e grávidas.
A impunidade que Cassi Jones sente em se aproveitar das mulheres é mais do que explícita, proveniente de sua soberania como um homem branco em uma sociedade esculpida nas bases da misoginia e do racismo, e a falsa autoridade que o viralatismo do Rio de Janeiro no século XX lhe entregou de bandeja. Durante toda a obra, ele não se sente intimidado ou temeroso pelas consequências de seu atos, já que entende qual a força de viver numa estrutura que foi feita para pessoas como ele se beneficiarem. Ir longe demais para conseguir executar seu plano sem falhas não era nada, tanto que encomenda a morte do padrinho de Clara, Marramaque, visto que o mesmo iria contar para os pais da garota o desejo sórdido de Cassi. Essa tranquilidade em agredir e abusar incessantemente de corpos pretos reproduz uma lógica que lembra perfeitamente a visão escravocrata e o sentimento de posse dos brancos sobre os negros.
Lima Barreto soube explanar, de modo cristalino, o ideário e as relações racistas deste país. Cassi Jones é o olhar do opressor. Nos resta conhecer a perspectiva do oprimido, Clara dos Anjos.
Clara é uma protagonista pintada como imersa em suas próprias fantasias, assim como todas as personagens bováricas apresentadas. No entanto, há um fator que distancia a carioca das demais: o fato de que sua família a privava do contato com o mundo além de sua casa. Sua mãe, dona Engrácia, a criou como uma dama reclusa, seu único contato com o lado de fora era na casa de dona Margarida, com quem aprendeu a bordar. Seu pai não interferia, por estar sempre trabalhando. Então, Clara recebeu da mãe uma educação aos moldes burgueses, sem compreender todo o peso que ser uma mulher negra representava.
Tal fato foi fundamental para a entrega inconsciente da garota ao bovarismo. Sem poder conhecer a comunidade que a cercava, buscou um refúgio nos sonhos para compensar a falta que sentia em não ver com seus próprios olhos o que o Rio de Janeiro e seus habitantes poderiam lhe ofertar.
Outra coisa a ser pensada sobre Clara são os efeitos de identidade que sua formação restritiva lhe causou, sem conhecer mais nada ou sequer entender as condições racistas as quais ela teria de enfrentar. Sua visão de mundo se resumia ao apego pelas fantasias românticas. A paixão por modinhas de viola, poesias e versos encantadores foram a chama para despertar ainda mais seu afastamento da realidade. Há toda uma questão romântica idealizada e fomentada pela burguesia europeia nos séculos passados, mas, será isso não era destinado às mulheres negras. Aquelas que anos antes eram tratadas como objetos, seja para cumprir tarefas ou para satisfazer sexualmente seus senhores, não seria permitido amar.
Da mesma maneira que a sociedade não pertencia às pessoas negras, o ideal do amor romântico não era adequado a elas. O Rio de Janeiro no início do século XX não permitia Clara sonhar com o ardor da paixão. Sem saber, ela quebra as regras e se deixa inebriar por algo que nunca será seu por direito.
Essa clausura mais alanceava sua alma para sonhos vagos, cuja expansão ela encontrava nas modinhas e em certas poesias populares. [...] o seu anseio era que o pai consentisse na visita do famoso violeiro, cuja má fama ela não conhecia nem suspeitava, devido ao cerco desvelado que a mãe lhe punha à vida; entretanto, supunha que ele tirava do violão sons mágicos e cantava coisas celestiais.
Cassi Jones soube usar de forma ardilosa a inocência de Clara, que se entrega a um aproveitador. Inevitavelmente, a garota se apaixona, e isso lhe custa um preço alto demais. Quando engravida e Cassi desaparece, Clara decide ir até a mãe do rapaz, cobrar satisfações sobre o que ele fez com ela. Dona Salustiana, deixando claro que permitia ao filho cometer tais crueldades com essas mulheres, emite falas intragáveis:
Que se case comigo. [...] Que é que você diz sua negra? [...] Casado com gente dessa laia... Qual!... Que diria meu avô, Lord Jones, que foi cônsul da Inglaterra em Santa Catarina – que diria ele, se visse tal vergonha?
É nesse momento, com toda sua dureza e sofrimento, que Clara dos Anjos sentirá o peso de uma realidade que estará sempre disposta a agredi-la, diminui-la e privá-la de todo e qualquer privilégio, até do mais simples romance. Clara se dá conta do que é ser uma jovem negra em uma sociedade lavrada no machismo e racismo, de como sua vida será uma constante luta pelo direito de viver as coisas mais fúteis, que invariavelmente serão destinadas aos brancos. Clara agora entende que sua criação burguesa, modos e costumes não apagam o fato de que sua existência será marcada por ciclos de violência, de todas as formas pensadas ou não. É como se o mundo caísse em suas costas de uma vez, o arrependimento pelas escolhas feitas e a desgraça de saber que o Brasil sempre estará disposto a lhe ferir. Não há imaginação que possa livrá-la dessa angústia.
Lima Barreto retratou, de modo brilhante, a dor de se compreender o que é ser negro neste país.
Uma reflexão de encerramento
Foi a imaginação de Anna, Ema, Maria Regina e Clara dos Anjos que as mantiveram saudáveis e felizes, seja pelo tempo em que estiveram vivas ou desligadas da realidade à sua volta. Existe uma problemática em fazer essa consideração ao mesmo tempo que o bovarismo já foi e pode ser considerado uma patologia, mas por agora é necessário suspendeer o juízo nos concentrarmos especificamente na construção ficcional dessas mulheres. Elas jamais tiveram a chance de desfrutar a plenitude do que são as experiências da vida; todas foram marcadas em seu cerne pela falta, como poderiam se salvar e se aproximar de uma felicidade que nós conhecemos como correta? Como podemos julgar seus sentimentos dessa maneira, tão objetivamente e sem pensar nas nuances e subjetividades de suas vivências?
Se nada as libertaria do pesar real, por que a imaginação é vista como algo tão ruim, que as arruinou? Os sonhos não deveriam ser os únicos culpados pelos fins trágicos de cada uma das bovarianas, pois ao despertar, elas ainda lidarão com a potência de um sistema machista e racista, acordarão sabendo que sua existência é vista como um alvo a ser explorado sem nenhum temor. Quando bell hooks diz que a fantasia feminina é vista somente como válvula de escape, quer dizer que muitos ignoram a força de ação que provoca os delírios dessas damas, a sociedade desigual. Isso fica explícito quando nos lembramos de que quem escreveu três dessas personagens eram homens, com visões que tangem a mesma linha, a de que elas foram punidas pelo seus mecanismos inventivos completamente internalizados em suas mentes. Contudo, desconsiderar como a misoginia é elemento fundador desse sistema é desdenhar de suas lutas para superar o insuperável.
Se Anna se cansa do mundo aristocrata, se Ema se cansa da vida de casada, se Maria Regina se ilude na esperança de encontrar uma boa pessoa, se Clara dos Anjos se dá conta de que não é digna do amor branco, é porque, nem que seja por um milésimo de segundo, elas compreendem que suas vidas seriam diferentes se não tivessem nascido mulheres. Por isso o vazio delas é inalcançável, pois nada no mundo pode mudar o que são. Essa é a dor que perdura, o sofrimento de entender que a angústia eterna não seria real se elas fossem homens brancos.
O bovarismo não é uma mera válvula de escape, mas uma forma desesperada de desafiar a normalidade de uma estrutura que se acostumou a destroçar mulheres. Se conceber como o outro vai além de uma rota de fuga; é a única maneira de enfrentar cara a cara um meio que não foi construído para que se sintam amparadas.
Emma e suas filhas podem ser chamadas por vários nomes. Todavia, hoje peço para acrescentar a elas os títulos de desafiadoras, sonhadoras e corajosas.
Referências
- A imaginação é que é o mal (Rafael Alverne Freitas de Albuquerque)
- Bovarismo, epifania, bêtise: exercício de metacrítica flaubertiana (Maria Elvira Malaquias de Carvalho)
- Identidade nacional no Brasil e na América Latina: algumas considerações sobre leitura, bovarismo e vira-latismo (Camila David Dalvi)
- O bovarismo em Clara dos Anjos: uma identidade equivocada (Neide Amorim Ernesto; Idemburgo Pereira Frazão Félix)
- O bovarismo em Vale Abraão, de Augustina Bessa-Luís (Camila Cynara Lima de Almeida)
- O intertexto em "Sono": "Anna Karenina" e a leitura como lembrete de uma vida não vivida (Adriana Falqueto Lemos; Rossanna dos Santos Santana Rubim)
Arte em destaque: Caroline Cecin
Maravilhosa seleção! Estava esperando por Luísa, de O Primo Basílio. Fora de livros, também a personagem de Marisa Monte no clipe “Amor, I Love You” (Que também tem muito de Luísa e Emma Bovary, incluindo o passeio de charrete)!
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