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O mito da urbanização: o êxodo e a decadência americana em As Vinhas da Ira


John Steinbeck
(1902 -1968), autor de As vinhas da ira (The grapes of wrath), nasceu e narrou sobre o estado da Califórnia, mas principalmente Salinas, a Califórnia rural, povoada por agricultores. Descendente de imigrantes irlandeses, viveu e foi influenciado pela vida baseada na terra, no cultivo e na propriedade. Estes foram temas que perpassaram a escrita do autor e moldaram as suas preocupações sociais com os trabalhadores, com os dramas do coletivo e das pessoas comuns.

Vida e obra de Steinbeck 


Influenciado pelo modo de vida e pela experiência da região, Steinbeck foi capaz de fazer uma leitura histórica que acusa a degradação do que seria a evolução dos Estados Unidos, das novas relações sociais e, principalmente, da exploração que os homens em êxodo passaram a sofrer em decorrência dos contextos sociais, sendo a Grande Depressão um dos principais.

Ao terminar os estudos secundários em 1919, John entrou para Stanford. Abandonou a universidade em 1925 e embarcou numa jornada incerta de escritas esporádicas de freelance para jornais nova-iorquinos. Até alcançar a estabilidade de um escritor, o autor viveu o crash da bolsa de Nova York e o prenúncio de um país em crise.

Detentor de uma escrita realista, desde seus primeiros romances já se estabelecia um fio cujo objetivo era tecer a sua literatura: da preocupação social, dos miseráveis e do grande incidente que se tornou o sistema econômico da época. Já próximo ao lançamento de sua considerada grande obra, As vinhas da ira, Steinbeck publica Ratos e homens (Of mice and men), que de certa forma prepara o terreno para o que já estava por vir.

Mesmo vivendo distante da Califórnia e das terras assentadas, ele continuou a narrar os acontecimentos de sua juventude e de suas memórias familiares. As relações entre propriedade e trabalho estavam intrínsecas em John, o campo e a trajetória, os pequenos proprietários e o cotidiano eram o passado e a representação de tudo que viveu e de tudo que poderia levar ao seu público. Essa relação visceral e indissociável foi o que impactou as vítimas das mudanças trazidas pelo século XX e pela consolidação do capitalismo.

Os homens em êxodo 


A produção de As vinhas da ira, no início da década de 1930, entrelaçou-se fortemente com o contexto vivido pelo homem estadunidense daquele período. É impossível dizer então que Steinbeck não bebeu da fonte caótica que foi a Grande Depressão. A crise bancária, ou a quebra no mercado dos Estados Unidos, fomentou crises políticas, o desemprego em massa e, consequentemente, a subalternização do homem, principalmente do homem do campo, aquele cuja humanidade lhe foi arrancada com a desculpa da modernização. Os bancos estavam em crise, as máquinas eram mais rentáveis e os laços entre cultivo da terra e propriedade eram arrancados fora do homem comum que, sem emprego, sem a terra ancestral e sem o nome, são os muitos homens em êxodo pelos Estados Unidos da América.

Os desdobramentos da Grande Depressão impactaram a pequena classe de produtores rurais - os meeiros. É dessa forma que o leitor se encontra com a família Joad e com a Oklahoma envelhecida. Tom Joad, filho mais velho da extensa família, acaba de sair, após quatro anos, da penitenciária McAlister e, como o bom filho pródigo, faz seu regresso à casa junto a um ex-pregador, Jim Casey, que perdeu os dons em virtude dos grandes pecados capitais. Entretanto, o cenário que lhe era familiar começa a mudar: a vista tornou-se mais decadente, o pó vermelho cobriu as casas, já não há plantações e as cercas estão caídas. Em sua casa não se encontra ninguém, apenas desordem.

As casas nos campos foram abandonadas, e os campos, consequentemente, também foram abandonados. Somente na garagem dos tratores, cujas chapas onduladas brilhavam qual prata polida, havia vida; e essa vida era alimentada com metal, gasolina, e óleo, e os discos dos arados brilhavam ao sol.

A motivação por trás de todo abandono são os bancos que, por conta da seca, retiraram-se sob a pá de um trator as famílias remanescentes das terras. Afinal, não se tinha mais lucro, o algodão não crescia e a modernização havia chegado à América junto às grandes máquinas que executavam o trabalho de doze a catorze famílias. Dessa forma, o arrendamento das terras tem seu fim por culpa do banco, dos juros e dos administradores que, para não corromper a própria consciência, acusavam os bancos de serem os monstros.

O banco, esse monstro, tem que receber logo o seu dinheiro. Não pode esperar mais; senão, morre. Não, os juros não param de subir. Quando o monstro para de crescer, morre. O monstro não pode ficar sempre do mesmo tamanho. [...] Os monstros assim o exigiam. E não podiam se opor aos monstros.

O estranhamento causado pelas construções de Steinbeck demonstra o funcionamento dos EUA e desmonta a fachada modernizadora das grandes máquinas. A grande crise que atingiu os bancos, somada à chegada do novo mundo, resultou na desumanização do homem a quem, depois de sugada toda a humanidade, lhe era devolvida em migalhas como um grande privilégio. Assim, lotava-se a Highway 66 e nascia o êxodo. A grande marcha para o Oeste começara.


A família Joad parte em retirada de suas terras com a grande promessa de uma Califórnia repleta de empregos e oportunidades nas grandes colheitas de laranja e uvas, sem dar-se conta de que a estratégia capitalista utilizada foi a mesma que espalhou-se por todos os meeiros que perderam as suas terras para os grandes monstros, os bancos. Com o pouco dos recursos que lhes sobraram, são impelidos a comprar um automóvel.

Nas cidades e nos subúrbios, a oferta e a procura era explorada ao máximo pelos ferro-velhos e seus donos, os “carros usados quase novos” saíam como água para os desesperados.

Faça-o compreender que está tomando seu tempo. Faça com que ele se sinta na obrigação moral de comprar. As pessoas, em geral, têm sentimentos. Não gostam de prejudicar ninguém. Façam com que elas sintam que estão lhe dando prejuízo, tomando seu tempo. Depois meta um calhambeque pela goela deles.

 

Dessa forma, a grande família Joad, composta por doze membros, parte em busca da terra prometida, do emprego e da dignidade humana que há muito fora perdida.

A decadência de uma nação


O que a família Joad não sabia ao iniciar o seu êxodo levando crianças, idosos e uma filha grávida, é que pela mesma pista que deveria levá-los à liberdade, milhares de famílias nadavam em metal enferrujado e fome a fim de colher as mesmas laranjas corrompidas pelos panfletos entregues pelos grandes caçadores de mão de obra desesperada.

A jornada custou à família os últimos fios de vida do avô e da avó Joad, e levou a vida de alguns amigos feitos durante o êxodo. O que deveria ser o país da liberdade aprisionou famílias em virtude da evolução. Não era mais uma tentativa de realizar o sonho americano, mas de sobreviver na América.

Essa nova marcha para o Oeste, a terra prometida da Califórnia, carregava do meio-oeste diversos proprietários que foram expulsos de suas terras. Em meio a acampamentos de beira de estrada, quanto mais se aproximavam do destino, mais as linhas tênues entre dignidade humana e exploração se tornaram borradas. Os emigrantes são os novos desafios para os moradores dignos dos estados do Oeste e cabe à polícia junto à política dar um fim nos ladrões de empregos, nos não mais americanos de verdade.

Então chegaram as multidões de espoliados e assaltaram o Oeste - vinham do Kansas, Oklahoma, Texas, Novo México; de Nevada e Arkansas, famílias e tribos expulsas pela poeira, expulsas pelos tratores. Carros cheios, caravanas de gente sem lar e esfomeados; vinte mil, cinquenta mil, cem mil, duzentos mil despencavam das montanhas, famintos e inquietos - inquietos qual formigas, famintos de trabalho (...) dar todo o seu esforço por um pouco de comida. Nossos filhos têm fome. Não temos casa para morar. Inquietos como formigas, atrás de trabalho, de comida e, antes de mais nada, de terra.

A identidade de cidadão dos Estados Unidos da América passa a ser revogada. Os novos bárbaros são agora os Okies, não importa se vieram de Oklahoma ou Texas, é o mesmo grupo de famintos que carregam crianças magras com barrigas saltadas para a frente, o mesmo grupo de ladrões de empregos e corrompidores dos bons costumes. O preconceito não veio apenas na forma de violência física da polícia, mas da violência verbal. Os Okies não falavam direito, os filhos eram violentos e não frequentavam a escola e, mesmo quando tentavam, eram expulsos sob os gritos de “Okie, seus pais são Okies!!”.

The Grapes of Wrath (1940)

A família Joad completa o mosaico dos desesperados. Eles não queriam o luxo da Califórnia nem o sucesso social, mas puramente a terra para arar e a comida para seus filhos. No meio do caminho são acolhidos por um acampamento do governo; ali conseguem a dignidade de um banho de chuveiro e de um vaso sanitário. Estes foram os melhores dias da família, efêmeros, que acabaram rápido com a falsa promessa de empregos mais ao norte. O inverno se aproximava, a família precisava de abrigo para as crianças e para a nova que estava por vir, pronta para saltar para a vida da barriga de Rosa de Sharon, irmã de Tom.

A crise dos valores tradicionais e o novo matriarcado


No decorrer da narrativa, a Mãe e o Pai são dois pilares determinados apenas pelos valores de suas funções: ser mãe e ser pai. Em um enredo de estradas, carros, êxodos e aragem da terra, a figura feminina pode parecer perdida ao leitor, entretanto o peso das personagens femininas chega a ser bíblico. A mãe é a mulher que guia, durante todo o percurso, a trajetória de sua família; ela nutre tanto com o alimento quanto com as palavras, põe ordem. Já Rosa de Sharon, sua filha, carrega em seu ventre a resposta e a esperança de um futuro para a família Joad e para todo o coletivo que habita os acampamentos de beira de estrada ou os vagões dos trens. A família, os pequenos proprietários e os meeiros se tornaram o passado e seguravam nos últimos fiapos a esperança de um futuro nos ventres preenchidos.

Durante toda a crise econômica, a desestruturação do sistema influenciou nos papéis sociais de ser homem e de ser mulher. No trabalho do solo e da subsistência, o arado é agênero. Quem põe ordem é a mãe, a mesma que deu a vida. A família levará para a vida, com as próprias mãos, o fruto do ventre de Rosa de Sharon. A mãe era a rocha firme que segurava toda a geração Joad.

O homem vive como que aos saltos…nasce uma criança e morre um homem, é como se fosse um salto; ele arranja uma fazendinha e perde a fazendinha, e é outro salto. Para a mulher, tudo corre sem parar, que nem um rio, cheio de redemoinhos e cascatas, mas correndo sem parar. É assim que a mulher encara a vida. A gente não morre, a gente continua…muda, talvez, um pouco, mas continua sempre firme.

Nos últimos momentos da narrativa, os Joads estão abrigados nos acampamentos de vagões, colhendo algodão e esperando com medo a grande chuva que estava chegando aos estados do oeste. A tempestade inundou as famílias, e em meio à inundação Rosa de Sharon dá a luz, muito antes do tempo previsto e muito fraca pela falta de alimentos. A criança não chega a dar seu primeiro fôlego, já nasce morta. A família havia feito tudo o que pôde com as condições que recebeu: tentaram o trabalho e perderam suas terras. Não havia subsistência para uma grávida no meio do êxodo, afinal, todos precisavam colher algodão, laranjas e arar.

Como último ato do romance, a família parte em busca de um lugar seco para se abrigar e, como um oásis, encontram um celeiro aparentemente vazio. É ali que a vida então renasce. Rosa de Sharon não tem o seu bebê, mas encontra no celeiro um homem e seu filho. O pai da criança, como informa o filho, está morrendo de fome. Ele ficou doente e não conseguia mais trabalhar e todo alimento era dado ao filho, que agora velava um pai quase morto.

Mãe e filha entraram em sintonia.

As duas mulheres liam tudo nas respectivas almas.

Rosa de Sharon fez o que foi preciso. Fez a vida renascer com o alimento que corria em seu corpo e que fazia esguichar de seu seio. O líquido que fez reacender e unir o coletivo despatriado. É dessa forma que Steinbeck narra a evolução da miséria, o passado que ainda habita os Estados Unidos da América e que tentam apagar com os tratores da modernização.


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Referências


Arte em destaque: Caroline Cecin

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