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Aniversário Macabro, filmes de estupro e vingança e ciclos de violência


Falar de filmes de estupro e vingança é, ao mesmo tempo, extremamente delicado e brutal. Delicado por mexer com muitos gatilhos e brutal pelo conteúdo. Um dos filmes do subgênero é The last house on the left, conhecido no Brasil como Aniversário Macabro, do diretor Wes Craven. O filme foi lançado em 1972, e completa 50 anos em 2022.

O filme conta a história da aniversariante Mari Collingwood (Sandra Peabody) e sua amiga Phyllis (Lucy Grantham). As duas vão comemorar o aniversário de 17 anos de Mari em um show e, antes de chegarem lá, tentam comprar maconha com Junior (Marc Sheffler), filho de Krug (David Hess), um dos assassinos. Junior as leva para a casa onde se encontram seu pai, Fred Podowski (Marc Sheffler), e Sadie (Riki Lindhome). É nessa casa que as meninas são presas e os abusos começam.

Aniversário Macabro começa a apresentar a violência contra as meninas a partir dos 16 minutos, e finaliza aos 50. A quadrilha as leva para uma floresta e segue com as torturas, o que culmina na morte de ambas. A floresta é coincidentemente perto da casa dos pais dela, o que nos leva para o terceiro ato de vingança, quando os assassinos sofrem um imprevisto com o carro e precisam ficar por um tempo na casa dos pais de Mari.


Esse ato de vingança se diferencia de outros filmes do tipo por ter como perpetradores os pais da vítima. Apesar disso, uma análise já permite identificar uma série de características que hoje são bem conhecidas. A primeira é o uso de armas consideradas símbolos fálicos. Elas são chamadas assim por representarem no sentido simbólico um pênis, seja por meio de pistola ou um canivete. Essa leitura bebe especialmente da psicanálise e de autoras como Barbara Creed e Carol J. Clover, que também relacionam tais vinganças como cenas (literais ou simbólicas) de castração da vítima contra seu abusador. Sobre isso, Carol J. Clover também afima: 

"Facas e agulhas, assim como dentes, bicos, caninos e garras, são extensões pessoais do corpo e leva tanto agressor como vítima para um vínculo animalístico e primitivo. No filme I spit in your grave, a heroína força seu abusador sob a mira de uma arma a abaixar as calças, presumivelmente na intenção de atirar em seus genitais. Mas ela muda de ideia e o convida para sua casa (...) Então, quando eles estão em uma banheira juntos, ela o castra com uma faca. Se nos perguntávamos antes o porquê dela ter desistido da pistola, agora sabemos: nem todos os símbolos fálicos são iguais (...)"

Vale entender um pouco do contexto dos filmes de estupro e vingança (em inglês, rape and revenge). Eles são um tipo de tropo presente em diversos gêneros, mas bastante conhecido no horror por suas polêmicas e por ter mais visibilidade por volta da década de 1970 e 1980, com filmes como A vingança de Jennifer (Meir Zarchi, 1978), A violentada (Lamont Johnson, 1976) e Ms.45 (Abel Ferrara, 1980).

Não é consenso se ele é ou não um subgênero de filmes de horror. Grandes nomes do assunto, como Carol J. Clover em seu livro Men, Women, and Chain Saws: Gender in the Modern Horror Film, e Barbara Creed em The Monstrous-Feminine: Film, Feminism, Psychoanalysis analisam o estupro e vingança como um subgênero que tem em si características como o baixo orçamento, o confronto entre o espaço urbano vs rural e o “monstruoso feminino”. Já Jacinda Read, autora de The New Avengers: Feminism, Femininity and the Rape-Revenge Cycle e Sarah Projansky lidam com o tema de outra forma, aproximando o estupro-vingança como um tropo que está em vários gêneros.

Mas no geral eles seguem uma lógica que já está presente no próprio título: uma mulher sofre abusos sexuais de um ou diversos homens e, depois de passar por um período armando um plano de vingança, executa-o, seja usando de sedução, de perturbação psicológica ou de ambos. Alexandra Heller-Nicholas, em Rape-revenge films: A critical study, traz um ponto bastante importante sobre o contexto histórico da época:

"O filme de estupro-vingança foi um fenômeno de popularidade atribuído aos Estados Unidos de 1970, quando eles floresceram. Isso aconteceu em grande parte por uma diminuição das restrições da censura e uma 'mainstrização' de discussões públicas sobre políticas sexuais que resultaram na maior visibilidade dos movimentos anti-estupro que formaram a segunda onda do feminismo."

É bastante presente, especialmente em filmes dessa época, a violência sexual mostrada de maneira gráfica e exploratória (A vingança de Jennifer, por exemplo, tem cerca de 30 minutos ininterruptos de estupro coletivo e tortura psicológica contra a protagonista). Esse apelo pela exploração de tais imagens mostra, muitas vezes, explicitamente a violência e a consequente nudez feminina.

Um aspecto interessante para entender esse contexto, especificamente estadunidense, é como nessa época houve o relaxamento do Código Hays, um conjunto de normas morais cinematográficas que foi vigente até o ano de 1968, quando foi substituído pelo atual sistema de classificação indicativa. Com isso, houve um ciclo de filmes que pautou a exploração em diversos sentidos, dentre eles, o de estupro e vingança. Como já foi comentado, esse tropo gerou uma série de críticas e polêmicas, e dentro de seu momento histórico de segunda onda do feminismo, os movimentos anti-estupro foram bastante ácidos quanto ao assunto, alegando misoginia e diversas problemáticas, como, por exemplo, a fetichização da violência contra a mulher.

O contexto histórico e como os filmes de estupro e vingança acompanharam momentos delicados da vida em sociedade dariam um artigo em separado, mas, referenciamos o trabalho de Elisabeth Miller, Rape-Revenge Films During the Antirape Movement: 1972-1988, no qual ela analisa com detalhes esse recorte temporal. Infelizmente, boa parte do que se tem de referência sobre o tema está em língua inglesa e sem tradução para o português.

Outra característica importante nessas narrativas é o sexo. O estupro é o poder sobre uma pessoa, nesse caso, de maneira sexual, mas que também carrega em si outros tipos de violência. Em filmes de estupro-vingança tal diálogo é explícito especialmente pela tortura psicológica que parte dos agressores. Porém, e é aí que a questão complica mais um pouco, essa mensagem de poder também é mostrada por meio do sexo, sensualidade e assassinato pela vítima do estupro. O sexo figura nesse lugar como um “o que não te mata, te fortalece”. Essa mensagem de quase “empoderamento” (um termo anacrônico para a época, mas que expressa bem a questão hoje em dia) é fonte de crítica e merece uma atenção, pois nesse ponto pouco se considera a centralidade do trauma.


Em Aniversário Macabro, também vale pontuar os marcadores de violência de acordo com o gênero da pessoa que se vinga. No filme, quem comete a vingança são os pais de Mari, porém, enquanto o pai encurrala dois da gangue com socos e uma serra elétrica, a mãe usa do sexo oral para castrar outro deles. Ambos os pais são violentos, mas é curioso notar como isso é mostrado em tela.

Passadas as décadas de 1970 e 1980, filmes pertencentes a esse subgênero ficaram mais escassos, apesar do exploitation e o tropo do estupro e vingança continuarem presentes, mas em outras formas e gêneros do audiovisual, como o drama e filmes policiais. Já na década de 2010, os filmes de estupro e vingança tiveram um “ciclo” de remakes desses clássicos, como A vingança de Jennifer, chamado aqui no Brasil de Doce Vingança (2010), suas duas continuações e um outro remake em 2019, assim como o remake de The last house on the left (2009).

Dois contemporâneos desse tropo (ou subgênero, dependendo de quem o estuda) são os filmes Vingança (Caroline Fargeaut, 2018) e Bela Vingança (Emerauld Fennel, 2021), ambos dirigidos por mulheres. Apesar de considerados melhores do que os dirigidos por homens nesses anos da exploração, talvez seja interessante pensar no porquê ainda fazer filmes que usam dessa narrativa.

Respostas de o porquê filmes de estupro e vingança ainda são feitos ou o quão/se são problemáticos são difícieis de obter devido ao tanto de perspectivas acerca do assunto, mas é justo apontar o quão horrífico, do ponto de vista pessoal, são os filmes desse tipo, podendo gerar gatilhos bastante pesados em pessoas que já sofreram essa violência ou algo similar. Filmes de horror se propõem a gerar incômodo, a horrorizar, mas até onde vai essa linha e onde começa a exploração que é vista como problemática? São perguntas que não se esgotam em si e abrem uma série de outro tópicos para discussão.

Aniversário Macabro é um filme que traz essas discussões e incomoda, o que pode ou não ter sido pensado para ser assim. E, no final, assim como os pais de Mari, saímos desolados por tudo o que aconteceu na narrativa.


Referências

  • Men, Women, and Chain Saws: Gender in the Modern Horror Film (Carol J. Clover)
  • The Monstrous-Feminine: Film, Feminism, Psychoanalysis (Barbara Creed)
  • The New Avengers: Feminism, Femininity and the Rape-Revenge Cycle (Jacinda Read)
  • The Dread of Difference: Gender and the Horror Film (Barry Keith Grant)
  • Watching Rape: Film and Television in Postfeminist Culture (Sarah Projansky)
  • Rape-Revenge Films During the Antirape Movement: 1972-1988 (Elisabeth Miller)


Arte em destaque: Mia Sodré

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