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O Beijo da Mulher Aranha: Molina e o horror hollywoodiano na ditadura argentina


Um clássico da literatura de ficção argentina, O Beijo da Mulher Aranha foi lançado em 1976 pelo escritor Manuel Puig e ganhou uma adaptação cinematográfica bastante conhecida pelo diretor argentino-brasileiro Hector Babenco em 1985.

O Beijo da Mulher Aranha conta a história de um preso político chamado Valentín Arregui e seu companheiro de cela Luís Molina. A narrativa se desenvolve quase exclusivamente por meio de diálogos entre os dois, narrações de filmes hollywoodianos das décadas de 1930 e 1940, folhetins, fluxos de consciência e notas de rodapé com explicações de análises freudianas. 

Nosso “seja bem-vindo” ao livro é a narração de um trecho do filme de 1942, Sangue de Pantera, dirigido por Jacques Touneaur. Molina conta a história como uma forma de se distrair daquele ambiente carcerário e Valentín faz intervenções comentando sobre suas dúvidas e gostos pessoais. É a partir dessa interação que vamos descobrindo um pouco dos dois personagens.

Molina amava, assim como o próprio autor Manuel Puig, folhetins e filmes hollywoodianos das décadas de 1930 e 1940. Já Valentín é um estudioso jovem marxista, integrante da luta armada, que considera as produções audiovisuais uma forma de alienação do que é mais importante, a atuação política.

A face política de O Beijo da Mulher Aranha 


A luta política de Valentín não é por acaso. Ele é membro de uma organização clandestina marxista em Buenos Aires na década de 1970, que vivia em constante tensão com os grupos para-militares anticomunistas, responsáveis por uma série de atentados contra guerrilheiros, sindicalistas, jornalistas e estudantes. Entre os anos de 1973-1976, a Argentina vivia um período de intensa instabilidade social e política, vinda de um período de Ditadura Militar inspirada nas ideais do modelo brasileiro de 1964.

A constante tensão social, inflação beirando os 500-800% e um assassinato político a cada cinco horas contribuíram para uma instabilidade política que culminou em outro golpe instaurado em 1976 e, dessa vez, liderado pelo General Jorge Rafael Videla, sob o pretexto de acabar com o “ciclo vicioso” que havia se instaurado no país e colocá-lo em “ordem”. Nestas condições autoritárias, a Triple A (Aliança AntiComunista Argentina) passou a ameaçar Manuel Puig pela sua homossexualidade e as constantes críticas que fazia contra a ditadura. Essa situação levou o autor a se autoexilar no México em 1974. 

Por outro lado, ao contrário de Manuel Puig, o personagem Molina não se interessa por política, apenas compartilha o fascínio por narrativas cinematográficas clássicas. Molina tinha uma vida bastante pacata com seus amigos e familiares, mas por falsas alegações de corrupção de menores, acabou sendo preso. Uma vez na cadeia, faz um acordo com o diretor do presídio: em troca de sua liberdade, dividiria a cela com o jovem marxista Valentín para extrair informações sobre seus companheiros e o grupo liderado por ele.


Deste acordo inicial, desenvolve-se uma intimidade entre os personagens, que passam a se cuidar mutualmente. Molina oferece o ombro amigo a Valentín nos dias que o envenenavam com a comida oferecida na cadeia, ou quando queria conversar sobre assuntos diversos e contar de sua vida pregressa.  Molina também conta sobre os filmes que gostava para distrair-los daquele ambiente com pouquíssima luz solar, pesado e bastante fétido.

O cinema de horror clássico 


Aa metalinguagem mostra a ousadia literária pela qual Manuel Puig é conhecido. Há diversas referências de filmes clássicos, como o já mencionado Sangue de Pantera, que traz à tona a questão de gênero ao contar a história de um casal, Irena e Oliver Reed, que se conhecem num zoologico e logo se apaixonam. Os problemas começam quando Irena descobre ser descendente de uma linhagem de mulheres-panteras que sofrem transformações ao sentir excitação ou ciúmes, o que a força a reprimir seus desejos para não machucar o amado. 

Outro filme mencionado é Zumbi Branco, de 1932 e dirigido por Victor Hugo Halperin. Conhecido como o primeiro filme com a temática zumbi e mortos-vivos, Zumbi Branco conta a história de Neil e Madeleine, um jovem casal que, a convite do milionário Beaumont, viaja para o Haiti. O anfitrião ama Madeleine, que não retribui o sentimento e, por isso, Beaumont recorre ao feiticeiro da ilha para transformá-la num zumbi, a fim de que ela fique com ele. As coisas se complicam quando o próprio feiticeiro também se apaixona por Madeleine, que é a única mulher branca da ilha.


Finalmente, outro importante filme recuperado por Molina em suas narrativas é A Morta-Viva, de 1943. Assim como Zumbi Branco, os temas de cultura negra, escravidão e questões raciais e de gêneroo estão bastante presentes. A narrativa de A Morta-Viva se passa numa ilha do Caribe, onde a enfermeira Betsy é contratada para cuidar da esposa do proprietário de um engenho, Jessica Holland. Nas tentativas de curar o estado catatônico de sua paciente, Betsy recorre ao vodu e a transforma em zumbi. 

Enquanto orador, Molina habilmente cria ambientes de tensão, horror e romance e, se há fluxos de memória dos personagens durante a narração, é inevitável não tê-los também enquanto leitor, visto que a oralidade de Molina mistura não apenas uma história, mas músicas, sensações e identificações. 

Temas LGBTQIA+ 


Os filmes recuperados e narrados por Molina também se relacionam com sua subjetividade, pois desde o começo Molina diz se identificar como uma mulher e gostar de homens. Por isso, sua predileção por protagonistas trágicas e românticas dos filmes. Em um trecho, enquanto discutem sobre a companheira de Valentín, o jovem marxista e Molina dizem: 

Valentín: [...] Não acredito em casamento, mais precisamente na monogamia.
Molina: Eu acho tão bonito um casal que se ama para o resto da vida.
Valentín: Você gostaria disso?
Molina: É meu sonho.
Valentín: Então por que você gosta de homem?
Molina: Não tem nada a ver… Eu queria me casar com um homem pelo resto da vida.
Valentín: Então, no fundo, você é um senhor burguês?
Molina: Uma senhora burguesa.

Essa questão da performance de gênero e sexualidade é curiosa, pois Molina usa tanto pronomes femininos para se referir a si em algumas ocasiões, quanto pronomes masculinos nas conversas com Valentín. Há no livro uma presença basilar dos binários heterossexualidade/homossexualidade, feminino/ masculino, fragilidade/ força que são reforçadas, de maneira até paródica (e proprositalmente esvaziada) por notas de rodapé que falam sobre a homossexualidade e a psicanálise, citando correntes Freudianas e pós-Freudianas sobre o assunto.


Durante a narrativa, torna-se evidente que, para Molina, o ideal de família é baseado em um padrão heterossexual médio de homem provedor e mulher dona de casa e submissa. Molina é “Carmen, versão de Bizet” (provável citação da ópera Carmen, de Georges Bizet). Carmen é a mulher que vive nesse mundo, quer abraçar seu homem e sentir um pouco de medo. É, de fato, um padrão que Molina busca seguir e onde acha que pode encontrar a felicidade. Apesar do desconforto que tais padrões podem causar ao leitor contemporâneo, são eles que tornam a construção de laço entre Molina e Valentín tão interessante. 

Molina também é Molinita para Valentín, que não entende suas bases a princípio, mas aos poucos e durante longas conversas, vai compreendendo. No final, Valentín tenta mostrar ao amigo que a felicidade não vai ser encontrada na submissão e tampouco na exploração.

O autor brinca com as fronteiras entre política, discursos científico (nas notas de rodapé) e gênero e sexualidade, pois, de maneira geral, é realmente sobre o quanto todos esses aspectos se encontram ao longo da vida. Tudo isso é entremeado pela vida no cárcere, onde duas pessoas se conhecem e criam uma relação de intimidade e que, por sua vez, se encerra como os filmes de Molinita, de maneira trágica e misturando um ideal romântico e político. A Valentín restam seus sonhos bons e curtos.


O ponto que realmente peca é o uso de jeitos e palavras para se referir a pessoas negras, judias e LGBTQIA+ que, na época do livro, já eram ofensivas, estereotipadas e desumanizadoras. Talvez soe anacrônico pensar dessa forma sobre um livro de quase meio século, mas, de qualquer forma, é uma questão importante.

É fascinante a teia da mulher aranha que Manuel Puig vai tecendo e a leitura é uma mistura incrível de diversos recursos narrativos que transpõem o nosso próprio fluxo de pensamento. A questão de ser trabalhado em uma suposta binariedade é um começo estranho, mas o livro conduz bem por essa temática. O contexto histórico da narrativa que foi trabalhado aqui é realmente apenas a pontinha do iceberg e vale muito o tempo de pesquisa, com muito estômago para casos odiosos de ditaduras que a América Latina como um todo passou.

Referências



Arte em destaque: Caroline Cecin

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