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Um homem só, de Christopher Isherwood: deslocamento, luto, meia-idade e solidão


Alguns livros se revelam uma grande surpresa. É o caso de Um Homem Só, de Christopher Isherwood. A premissa é simples: a vida de um professor universitário homossexual de meia-idade por 24 horas. Acompanhamos George, nosso protagonista, em um dia ordinário: o despertar, o café da manhã, o caminho até a universidade onde trabalha, a aula lecionada, a conversa com os alunos, a visita a uma conhecida enferma no hospital, o exercício físico na musculação, o jantar na casa de uma amiga, a ida ao bar, o retorno para a casa e o ao sono. Nada nos é dado previamente. É preciso viver esse dia com o protagonista para ir conhecendo-o melhor.

O que se coloca nesta jornada de um dia são os inúmeros Georges que, a cada situação social, precisa desempenhar um certo papel. A grande questão que o livro propõe nas suas aproximadamente 160 páginas é o deslocamento entre corpo e subjetividade, identidade e sociabilidade. Como George se vê e como os outros o veem. Tudo isso na Califórnia dos anos 1960, pós-segunda Guerra Mundial, expansão das autoestradas e dos subúrbios, no centro do debate identitário e de direitos civis pelos quais vinham passando os Estados Unidos e o mundo.

O autor


Precisamos começar pelo começo, e não é possível falar de George sem falar de Christopher Isherwood, já que se trata de um livro com fortes elementos autobiográficos e, segundo o próprio autor, George é, de fato, inspirado em si mesmo.

Christopher Isherwood e Don Bachardy no final dos anos 1970

Christopher Isherwood nasceu na Inglaterra em 1904. Muito jovem, nos anos 1930, mudou-se para a capital alemã, e em 1939 publicou seu primeiro grande livro, Adeus a Berlim, que, em 1972, inspirou o musical Cabaret. Aos 35 anos, mudou-se pra os Estados Unidos, onde permaneceu até sua morte, em 1986. Viveu na Califórnia, onde lecionava literatura inglesa moderna na Universidade do Estado da Califórnia, em Los Angeles. Christopher era gay e, aos 48 anos, iniciou um relacionamento polêmico com um rapaz de 18 anos. Apesar de algumas idas e vindas, o casal permaneceu junto até o fim da vida de Isherwood.

Quando Um Homem Só foi publicado, Isherwood tinha 60 anos e, apesar de bastante reconhecido pelas suas obras anteriores, o deslocamento do autor dificultou, por muitos anos, a atenção merecida de sua obra. Enquanto os críticos estadunidenses não viam com bons olhos o que o autor britânico poderia dizer sobre os Estados Unidos, os críticos europeus defendiam que a boa literatura de Isherwood era aquela produzida quando o autor ainda estava na Europa.

Um autor gay britânico falando no e dos Estados Unidos, Christopher Isherwood coloca um olhar “de fora” sobre a cultura estadunidense mainstream e as transformações sociais e econômicas pelas quais vinha passando os Estados Unidos no pós-guerra. Também, pelo seu olhar, consegue discorrer sobre minorias, invisibilidade, solidão e desconforto.

A obra


Durante as 24 horas que acompanhamos George, fica evidente seu desconforto. Desde o momento que acorda, seu corpo lhe é estranho. Observa-se atentamente no espelho do banheiro e, ainda no lento processo fisiológico do despertar do corpo humano, questiona-se que George ele vê. Que George está ali refletido.

Assim como Isherwood, George também é um professor gay de literatura inglesa moderna da Universidade do Estado de California. No entanto, ao contrário do autor, George está em luto. Sofremos com ele a solidão e a tristeza da perda recente e precoce de seu companheiro, Jim, em um acidente.

O desconforto sentido por George é gradual e nós vamos sentindo com ele no decorrer do dia. As várias máscaras, os vários papéis que George tem que performar para atender às expectativas que lhe são esperadas enquanto professor, amigo, ou colega de academia. Ao mesmo tempo, essas performances não são falsas. Tampouco mentirosas. Sua solidão e desconforto encontram-se justamente no fato de que, talvez, seja isso mesmo.

Christopher Isherwood (1938)

Em entrevista, Christopher Isherwood disse que, apesar de alguns chamarem seu livro de “literatura queer”, ele é, na verdade, um livro sobre a meia-idade. O momento no qual o homem já não é mais novo, tampouco é velho. Um desconforto no tempo. É um livro melancólico que lida de maneira sensível e profunda questões como corpo, identidade, solidão, envelhecimento e sexualidade dentro das situações mais ordinárias e mecânicas do dia a dia.

A “mecanicidade” das relações tanto entre George e seu corpo quanto George e os outros estão presentes em todo o romance, mas estão bem evidentes em dois trechos emblemáticos. Primeiro, dirigindo na autoestrada – símbolo da urbanização e “suburbificação” das cidades norte-americanas no pós-guerra – George e o carro, George e a estrada viram um só. Corpo, carro e autoestrada.

E agora, enquanto dirige, é como se uma espécie de auto-hipnose o tomasse. Vemos o rosto relaxar, os ombros se distenderem, o corpo se reacomodar no banco. Os reflexos dominam: o pé esquerdo pisa no pedal da embreagem com uma pressão firme e serena, enquanto o direito controla o acelerador, cauteloso. A mão esquerda está leve no volante; a direita maneja o câmbio com a máxima precisão. Os olhos, voltando-se sem pressa da pista para o espelho, do espelho para a pista, medem calmamente as distâncias à frente, atrás, em relação ao carro mais próximo. [...] Parece apartar-se, mais e mais, tornar-se uma entidade autônoma: a figura de um motorista anônimo impassível com pouca vontade ou personalidade própria, a perfeita encarnação da coordenação muscular, sem ansiedade, num silêncio tático, que leva o patrão ao trabalho.

Mas também as situações sociais são automáticas. Durante a aula na universidade, os alunos estão discutindo Também o cisne morre, romance de A. Huxley, e eventualmente, caem no tema de antisemitismo. George conduz o debate para a questão das minorias e, quando as coisas estavam chegando num nível mais profundo, George percebe, decepcionado, os olhares dos alunos acima de sua cabeça, em direção ao relógio, lhe dizendo que o seu tempo acabou.

Bem, agora, vamos supor que essa minoria seja perseguida, não interessa o porquê – motivos políticos, econômicos, psicológicos – sempre existe motivo, por mais errado que ele seja – é isso que sustento. E, claro, a perseguição em si é sempre errada, tenho certeza de que todos concordamos nisso... Mas o pior é que agora incorremos em outra heresia liberal. Porque a maioria perseguidora é vil, diz o liberal, portanto a minoria perseguida deve ser de uma pureza imaculada. Dá para perceber o contrassenso? [...] E digo mais. Uma minoria tem seu próprio tipo de agressão. Ela desafia a maioria a atacá-la – porque todas as minorias travam uma competição, todas alegam que seus sofrimentos são os piores e as injustiças que lhes fazem são as mais tenebrosas. E quanto mais todas elas odeiam, e quanto mais todas elas são perseguidas, mais sórdidas elas se tornam! [...] E agora George toma ciência de que os olhos de Wally já não estão em seu rosto: estão levantados e focados em algum ponto atrás dele, na parede acima de sua cabeça... E então, ao observar rapidamente a sala inteira, hesitando, perdendo o ímpeto, ele vê todos os outros pares de olhos também levantados – focados na droga do relógio. Não precisa se virar e constatar com os próprios olhos; sabe que deve ter ultrapassado seu horário.

O livro foi publicado em 1964 nos Estados Unidos e sua primeira tradução e edição brasileira saiu apenas em 1985, pela Editora Nova Fronteira. Somente 36 anos depois o livro recebeu uma nova edição brasileira. Em Outubro de 2021, com tradução de Débora Landsberg e prefácio de João Silvério Trevisam, a Companhia das Letras lançou uma nova edição deste clássico de um autor ainda pouco conhecido em terras brasileiras. Em 2009, uma adaptação para o cinema foi lançada, sob a direção de Tom Ford e Colin Firth no papel principal.



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Arte em destaque: Caroline Cecin
Giovana Faviano
Historiadora de formação. Interessada em tudo que envolve subjetividade e criatividade humana. Ama ler, escrever e cozinhar. Se não está fazendo uma destas três coisas, então está tomando um cafézinho.

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