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The Gods We Can Touch: AURORA e a mitologia greco-romana


Aurora Aksnes, mais conhecida simplesmente por AURORA, é uma cantora e compositora indie norueguesa de 25 anos. Teve seu EP de estreia em 2015 com o single Running with the wolves, que também conta com a faixa Runaway, que escreveu quando tinha apenas doze anos de idade, seu primeiro clipe musical. 

Aurora, ao que parece, sempre foi apaixonada pela música e por contar histórias, algo claramente visto em suas composições. Aos seis anos, aprendeu sozinha a tocar piano. Suas inspirações vêm de artistas como Bob Dylan, Leonard Cohen, Enya, Johnny Cash, dentre outros. Em 2016, ela lançou seu primeiro álbum, All My Demons Greeting Me As A Friend, depois em 2018 e 2019 lançou dois álbuns que na verdade são duas partes de um mesmo disco, Infections Of A Different Kind - Step 1 e A Different Kind Of A Human - Step 2, ambos falando muito da temática do meio-ambiente e a relação do homen com a natureza.

Em suas músicas ela conta muitas histórias mais “reais”, não no sentido de terem acontecido de verdade, mas sim de não necessariamente serem contos de fadas felizes. Como dito pela própria cantora, ela possui muitas músicas tristes e melancólicas.


Aurora e os deuses


Em janeiro de 2022, Aurora lançou o disco The Gods We Can Touch, com inspirações principalmente na mitologia greco-romana. Na introdução dada pela artista, ela comenta que gosta bastante da mitologia grega e o fato de que todos os deuses e deusas dessa religião possuem muito mais falhas e habilidades humanas e têm seu próprio “campo” no qual eles são bons (por exemplo, Poseidon sendo o deus dos oceanos e terremotos). E que no início havia uma beleza nesses deuses de religiões mais antigas que eram muito mais humanos, com o tempo tornando-se mais e mais intocáveis, o que a cantora lamenta, pois “é muito claro para mim que as pessoas gostam de se reconhecer em quem quer que seja que elas admiram, e é triste que ninguém pode se reconhecer em alguém tão perfeito, sábio e poderoso como Deus”.

The Gods We Can Touch inicia então com a faixa The forbidden fruits of Eden, uma música para Gaia: a primeira mãe que é também a mãe-terra, uma mera introdução a esse mundo divino idealizado pela mesma, tanto como forma de escapismo quanto de maneira a explorar sentimentos, experiências e vulnerabilidades humanas através da música e dos deuses. Também é um tributo ao amor pela natureza que Aurora possui.

A primeira parte do disco é mais otimista e alegre, e suas melodias são mais dançantes, com Everything matters, Giving in to the love e Cure for me. Aurora inicia seu álbum com um tom mais vibrante e cativante, até mais dançante do que suas músicas costumam ser.

A canção Giving in to the love foi incluída por último no álbum, segundo Aurora. O disco já estava pronto, mas a compositora resolveu que queria adicionar o single. A música tem inspirações no titã grego Prometeu e em seu mito de criação da humanidade a partir do barro. Na composição, é abordado o mito de como ele roubou o fogo por nós e hoje ficamos obcecados com a aparência desse barro - o nosso corpo. Focamos tanto apenas na beleza exterior que acabamos nos esquecendo de todo o resto, de nós mesmos, de nosso próprio fogo interno. Esquecemos que somos seres vivos capazes de fazer tantas coisas belas.


No videoclipe, ela está em um lugar cercado por natureza e estátuas, tanto as de pedra quanto pessoas vestidas como se fossem estátuas. E ela brinca muito com seu próprio reflexo (algo de que a canção fala sobre). Em algumas cenas há reflexos na água, outros são feitos por efeito de câmera ou edição, isso sendo visto especialmente na cena em que ela se faz de Prometeu, dando vida a uma estátua ao tocá-la, e assim uma toca a outra e elas vão se tornando seres vivos. Ali vemos reflexos também da “Aurora Prometeu”. Dando a entender, portanto, que aqueles seres, por serem feitos à imagem de seu criador imperfeito (ou no caso imperfeita), seriam igualmente imperfeitos.

A música fala muito sobre essa auto-imagem (auto-reflexo), e como apesar de ninguém essencialmente ser perfeito vivemos num mundo constantemente obcecado por uma falsa ideia de perfeição e sentimos que temos de seguir essa concepção e ser - ou ao menos parecer para todos - perfeitos. A cantora isso questiona no verso “I never had the world so why change for it?” - se você nunca teve o mundo, então para que mudar por ele? Padrões de perfeição e beleza mudam constantemente, logo, você deveria mesmo mudar partes de você para encaixar-se em algo tão fútil e frágil por pessoas que nem ao menos ligam para quem você é? “Cause everybody cries and nobody comforts.”

Por que não só “Giving in to the love”? No caso, se amar, amar quem te ama, amar a natureza - por que não? Só se entregar ao amor, sem se importar se é belo ou não.

Ainda explorando seu lado romântico, temos a mais lenta, porém linda, Exist for love. Essa é sua primeira música de amor, pois finalmente a cantora se sente pronta em seu coração para ela:

“Eu pensava que não existia nenhuma música de amor dentro de mim, até que um dia, alguns anos atrás, eu percebi o quanto o amor é uma coisa sagrada. Sim, ele nos faz humanos, mas também nos faz divinos. Independentemente de para que ou para quem você destina esse amor. O toque do amor sempre deixa uma marca em nós. Pode ser um amor recém-nascido, pode ser doloroso. Mas nós ainda ousamos amar. De novo e de novo. E quando temos a experiência do amor, acho que entendemos o porquê de existirmos. Nós existimos pelo amor.”

O nascimento de Vênus, de Sandro Botticelli (1486)

O videoclipe é inspirado pela deusa Afrodite/Vênus, a deusa do amor e da beleza, visto pela referência visual ao quadro O nascimento de Vênus e a relação do nascimento da feminilidade dentro de si. A letra é basicamente sobre a necessidade humana de fazer conexões, de amar e se sentir amado. E como, no fim, tudo é sobre amor, nós existimos para ele.

“I know I cannot heal the hurt, but I will hold you here forever if I can…”

“Eu sei que eu não posso curar o machucado, mas eu o abraçarei aqui para sempre se puder...”

O amor pode não curar todas feridas, seu amado pode não salvá-lo de tudo, mas estará para sempre ali contigo se puder.

Além da celebração de todas as formas de amor, a letra também possui outra referência mitológica: no verso “Like white horses on the waves” (“Como cavalos brancos nas ondas”), há referência a pinturas falando da criação de cavalos, já que na mitologia greco-romana Poseidon/Netuno seria o patrono criador de cavalos. De acordo com o mito, cavalos surgem de nuvens. Uma das pinturas mais famosas da cena é “Cavalos de Netuno”, de 1893, do pintor britânico Walter Crane.

Os cavalos de Netuno, de Walter Crane (1893)

Aurora e Eva


Saindo de seu tom mais alegre e romântico, Heathens vem agora com críticas, celebração à primeira mulher, Eva, e suas descendentes - nós, também fazendo paralelos entre o sagrado cristão, pecado e paganismo.

A música bebe da história do livro Gênesis, de como Eva mordeu o fruto da árvore proibida e assim concedeu aos humanos a liberdade de escolha. Aurora queria honrar a ela e a todas as mulheres que por anos foram condenadas e culpadas por existirem pela igreja e pela sociedade, por tentarem viver a vida livremente e conceder a outros essa liberdade. Mulheres, como diz na música, que concederam seu amor, seu dom da vida mas que no fim foram condenadas pelo cristianismo a serem vistas como pagãs, bárbaras, pecadoras, a não ser que sejamos fiéis também, a não ser que sejamos batizadas, e assim livradas dos pecados.

Mas a canção vem então como um conforto para aqueles que não são bem-vindos em outros lugares, uma celebração da liberdade de escolher viver como pagãos, livres por aí, e também uma ode às mulheres de todo o mundo.


Artemis 


Voltando à mitologia grega, temos canções como Artemis, sobre a própria deusa da caça a qual a música é nomeada, e também temos a onírica This could be a dream,  representando o deus do sonho Morfeu. Aurora conta que escreveu essa música no escuro, enquanto pensava nas horas mais escura das pessoas. Sua intenção era fazer uma música para aqueles que nunca aprenderam a dançar e correr, pois estão tentando manter-se de pé ainda. É muito difícil ser humano, e ela lamenta que algumas pessoas nunca exploram seu potencial porque estão constantemente lutando por seu direito de existir. Essa música seria para tais pessoas.

O conjunto das letras com a melodia e a voz da cantora faz tudo parecer como se Morfeu realmente tivesse lhe abençoado com um belo sonho. E sua mensagem, principalmente em tempos tão difíceis como agora, quando estamos isolados e nos sentimos sozinhos, roubados de nossas vidas normais, faz da canção algo ainda mais especial. Talvez não possamos correr agora, às vezes estar vivo demais realmente pode doer muito, mas não estamos sozinhos enquanto passamos por isso tudo. E de vez em quando só cantar para si mesmo, levantar-se, andar, já é um grande ato de esforço - e está tudo bem. Morfeu sempre estará lá nos sonhos.

“So I lift myself and I close my eyes
And I sing sometimes to know I'm alive
I know I should figure this out on my own
But if you come by could you take me home?
I get back up when the wind is strong
But I wish I knew how it felt to run
I know I'm not alone
And if you come by could you take me home?”

“É preciso de tantos músculos para um corpo humano se levantar, então eu consigo entender o porquê algumas pessoas não conseguem achar força para isso.”

(Aurora)
Artemis, Goddess of the Hunt, de Leochares (325 A.C.)

The Gods We Can Touch explora histórias, divindades, realidades diferentes, todas para no fim falar de algo puramente humano. Serve como escapismo para um lugar onde se pode ser amado, aceito e celebrado por simplesmente ser quem você é - com defeitos e tudo. Mas também pode ser um cantinho de reflexão sobre nós mesmos, sobre como estamos vivendo e como poderíamos estar vivendo quer aceitássemos mais o amor, qualquer forma de amor, em nossas vidas. No fim, ao olhar para esses deuses estamos olhamos para partes de nós mesmos, e queremos nos sentir vistos e amados por eles. É isso que o álbum faz: celebra todos as partes humanas de todos os seres, divinos ou mortais, o belo e frágil, o vulnerável e forte, o feio e cheio de defeitos - que ainda contêm sua beleza, em tudo que nos faz ser quem sermos. E seja lá quem você for, que encontre seu refúgio nesse cantinho melancólico e cheio de vida lindamente construído por Aurora. 


Arte em destaque: Mia Sodré

Nicole Hildebrand
2000, carioca de nascença e de coração para sempre (mesmo fora de lá). Universitária cansada. Fã de carteirinha de fantasia e sci-fi desde pequena e sempre fascinada por boas histórias, independente de gênero. Escreve umas coisas por aí nas horas vagas.

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