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A corajosa e indelével voz de Billie Holiday


Dificilmente há alguém que não tenha ouvido falar em Billie Holiday ou não tenha se sentido tocado por uma das belíssimas canções de Lady Day. Mas há muito mais sobre ela do que seus dois nomes artísticos e algumas músicas consagradas. Sua história começa em 1915, na Filadélfia, quando nasce Eleanora Fagan Gough, mais do que apenas uma diva do jazz e do blues.

Eleanora vivenciou, desde muito cedo, as cruéis marcas que o abandono, o abuso e o racismo podem deixar, a começar por seu pai, o guitarrista Clarence Holiday, que abandonou sua mãe, Sarah Julia Fagan, logo após seu nascimento. Ainda muito jovem, Sarah não tinha condições de criar a filha, deixando-a para ser cuidada por sua bisavó de 90 anos, ex-escrava que trabalhou nas colheitas de algodão durante boa parte da vida. Sofreu violência sexual com apenas 10 anos de idade e, com o falecimento da bisavó, foi levada por sua mãe para viver junto com ela no Harlem, em Nova York, onde esta trabalhava como garçonete em bares e restaurantes. 

Nesse lugar, que foi o berço de muitos artistas do jazz e do blues, Billie trabalhou inicialmente como faxineira em um prostíbulo para se manter, o que acabou por conduzi-la a um período de prostituição, resultando em sua primeira prisão, já que tal atividade se tratava de um crime na época. Após cumprir pena, Eleanora redescobriu a energia pulsante que a atraía aos clubes noturnos e bares do Harlem, onde sua carreira no blues começou oficialmente. Assim que subiu ao palco pela primeira vez para improvisar uma canção a pedido de um dos músicos, nunca mais parou de cantar, e nascia, assim, Billie Holiday.

Com sua voz de cadência marcante, chamou a atenção de muitos músicos de renome na época e passou a fazer turnês dentro e fora do país com várias bandas, como as de Count Basie e de Artie Shaw, sendo a primeira cantora negra a se apresentar com uma orquestra de músicos brancos. Lester Willis Young, o “Prez”, notável saxofonista de uma célebre família de músicos, tornou-se um de seus melhores amigos e apoiadores, consagrando a ela a alcunha de Lady Day. Passou a ser uma grande inspiração para ninguém menos que Frank Sinatra e fez parcerias também com o célebre Louis Armstrong. Destacava-se ainda por sua figura imponente, altiva e elegante, cujo estilo único era definido por belíssimos figurinos coroados pelas grandes flores que usava no cabelo - sua marca registrada. 

Porém, mesmo com toda a aclamação conquistada por Billie, o racismo e a segregação continuavam muito presentes em sua vida, fazendo com que a grande estrela que brilhava nos palcos e lotava casas de espetáculos, como o Carnegie Hall, tivesse de usar entradas reservadas a negros e dormir em hotéis separados.

“Estas experiências me endureciam e me tornavam mais forte e determinada do que nunca, embora não fosse fácil cumprir certos contratos.”

Além disso, Billie ainda sofria com o machismo e o sexismo presentes na indústria musical e em sua vida pessoal, advindos, muitas vezes, de seus próprios empresários e companheiros, que a maltratavam. Sentia-se afetada também com o desprezo de seu pai, a quem, apesar de tudo, ela olhava com admiração. Porém, a única preocupação do guitarrista era que a filha se tornasse mais famosa do que ele na música. E foi o que aconteceu, pois o talento e a fibra de Billie Holiday eram transcendentes.

E diante de todas as adversidades e injustiças que havia enfrentado e presenciado na vida, mais do que cantar, Billie queria ser verdadeiramente ouvida. Além de músicas que falavam puramente de amor ou paixões arrebatadoras, Lady Day queria conferir voz a temas importantes. Ela desejava falar não apenas dos corações partidos pelas desilusões amorosas, como em “I’m a Fool to Want You”, “All of Me”, “Solitude” ou “I’ll Be Seeing You”, mas também das vidas destroçadas e dizimadas pelo racismo e pela violência. 

Então, em 1939, com apenas 24 anos de idade, ela gravou pela primeira vez a música “Strange Fruit”, que lhe consagraria de uma vez por todas. Naquela época, os linchamentos e enforcamentos de negros - uma abominável forma de aterrorizar as comunidades e sustentar a supremacia branca - se tornavam rotina no Sul dos Estados Unidos. Apenas dois anos antes, o senado estadunidense havia rejeitado um projeto de lei que proíbia e criminalizava o linchamento, o que demonstra como o racismo encontrava-se institucionalizado e entranhado naquela nação.

A canção foi escrita por Abel Meeropol, professor judeu e ativista dos direitos civis, que enxergou em Billie a voz certa para disseminar a potente mensagem daquela letra, que viria a se tornar um grande marco, um verdadeiro hino antirracista. 

“Na primeira vez que apresentamos a canção ao vivo, as pessoas da plateia, em sua maioria brancas, emudeceram (...) Ninguém jamais havia ouvido algo assim. Era puro desespero, mas guardava uma nota de esperança.”

Diante da intensidade dos versos que retratavam aquela cruel e aterradora realidade, combinada à voz tocante de Billie, que cantava a música com notória emoção, o público costumava ir às lágrimas, em completo aturdimento. E por dar voz e palco à causa, comprometendo, assim, a  imagem de justiça que o governo estadunidense gostaria de transmitir, Billie passou a ser severamente perseguida. Ela só podia interpretar a canção, que havia sido banida das rádios, em alguns poucos locais seguros, jamais no Sul, sob a ameaça de prisão. 

Tornou-se alvo de um agente federal de narcóticos, que costumava perseguir artistas negros sob a alegação de uma pretensa guerra às drogas e passou a tentar silenciar Billie de qualquer maneira. Tal perseguição é bem retratada no filme The United States vs. Billie Holiday (2021), que mostra, entre outros acontecimentos, como se deu a prisão da cantora em 1947 e a constante perseguição que se seguiu, um dia após cantar "Strange Fruit" em uma de suas apresentações.


“As árvores do Sul estão carregadas com um estranho fruto,
Sangue nas folhas e sangue na raiz,
Um corpo negro balançando na brisa sulista
Um estranho fruto pendurado nos álamos.

Uma cena pastoral no galante Sul,
Os olhos esbugalhados e a boca torcida,
Perfume de magnólia doce e fresca,
Então o repentino cheiro de carne queimada!

Aqui está o fruto para os corvos arrancarem,
Para a chuva recolher, para o vento sugar,
Para o sol apodrecer, para as árvores fazer cair,
Aqui está uma estranha e amarga colheita.”

Mesmo sendo advertida e ameaçada de prisão e sabendo dos riscos que corria, Billie não aceitaria ter sua voz silenciada e se recusava a deixar de usar seu alcance para espalhar aquela importante mensagem. 

Contudo, seu vício em drogas e álcool acabou por enfraquecê-la, dizimando suas conquistas financeiras e seu patrimônio e servindo de subterfúgio para mais um encarceramento. 

A violência e a injustiça, tantas vezes suportadas por Billie, e que agravaram seu vício, contribuíam, cada vez mais, para debilitar sua saúde. Então, em 1959, ela foi internada em decorrência de uma cirrose hepática. Junto à cama do hospital em Nova York, policiais esperavam para levá-la à prisão tão logo recebesse alta. Mas sua voz nunca mais seria ouvida ao vivo. Faleceu por insuficiência cardíaca e edema pulmonar com apenas 44 anos de idade. 

Billie teve sua potente luz apagada cedo demais. Porém, sua voz para sempre reverberará, por meio não só de suas canções inesquecíveis, mas, sobretudo, graças à sua história de coragem e altivez. 

“Existem dois tipos de blues. Pode ser um blues alegre ou triste. [...] Na primeira noite, o ritmo é mais lento. Na noite seguinte, mais veloz. [...] Mas minha voz ecoará para sempre… em qualquer instante, onde quer que eu esteja.”


Referências



Arte em destaque: Caroline Cecin

Vanessa Vieira
Brasiliense, encantada por histórias – reais e inventadas – desde criancinha, sempre encontrou nos livros e nos filmes seus melhores companheiros. Formada em Letras e apaixonada por Literatura e Cinema, tornou-se servidora pública na área da Cultura, sempre acreditando no potencial que esta tem de transformar e salvar vidas.

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