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Duna: o filme de 10 nomeações ao Oscar


Em Duna, nada é desperdiçado. A obra do cineasta Denis Villeneuve estreou em 2021, cerca de um ano após a primeira data prevista, finalmente aceitando a ideia de que o cinema hoje mudou. Um filme precisa estar pronto para a tela grande de uma sala de cinema e também para a tela disponível para o público em casa, domínio dos serviços de streaming. Com 10 indicações ao Oscar de 2022, Duna é líder de bilheteria, mas não é apenas mais um blockbuster. É também uma obra que abre espaço para temas como escassez e o papel narrativo do herói, sob os olhos de um público que vive em um mundo pós-colonial.

A linguagem da escassez e a desgastada jornada do herói


Duna traz um tom de cinema clássico no ritmo, mas escolhe adaptar o livro de Frank Herbert mudando a linearidade narrativa nas primeiras cenas. Assim, a história tem a chance de apresentar o árido planeta Arrakis primeiro pelos olhos do povo que o habita, os fremen, para só depois inserir os novos exploradores — originários do úmido e florestado planeta Caladan — em cena. Há um motivo para isso. Com uma narrativa que também coloca os espaços vazios, elementos característicos da obra de Villeneuve, em um lugar tão importante para a história quanto a performance dos atores, tudo nessa película vem com intenção. Há propósito nas paisagens, nas roupas, na posição das coisas, na escolha dos atores, em cada palavra pronunciada e até no movimento dos dedos.


Antes de tudo, é necessário ressaltar: adaptar Duna apresenta uma grande possibilidade de produzir um infodump. A palavra inglesa é usada para analisar obras de ficção científica, caracterizando histórias com uma quantidade absurda de informações novas — o que geralmente atrapalha na introdução ao seu universo. No filme de 2021, o espaçamento entre os diálogos é usado para que se dê tempo de assimilar essas informações, que vêm a conta-gotas pelas conversas simples, em que nenhuma palavra é desperdiçada. E para que se tenha fôlego mental para apreciar as paisagens incríveis que imaginam a humanidade e a exploração do espaço em 10191. Aqui, o cinema não é meramente uma tentativa de reproduzir uma história que pertence à outra mídia, mas uma complementação a obra original, conseguindo andar com suas próprias pernas, com fluidez e autenticidade.


Na abertura do filme, a escolha em introduzir som antes de imagem, com uma voz sussurrante no escuro de uma tela vazia, propõe uma das grandes questões da história: como tratamos o desconhecido. A voz é da personagem Chani, que conta sobre a exploração do seu planeta Arrakis, conhecido como Duna, em uma denúncia clara à imposição da presença de uma família nobre em seu território, os Harkonnen. A escolha de quem interpreta Chani não foi à toa. Há anos a atriz Zendaya tem uma sólida carreira de atuação, mas foi interpretar a protagonista da aclamada série Euphoria, da HBO, que colocou-a com os dois pés no hall das grandes promessas da dramaturgia atual. Em Euphoria, sua personagem é a importante narradora cuja voz se sobrepõe às cenas para contar sobre as personagens da série; em Duna, Villeneuve coloca o talento de Zendaya como uma contadora de histórias para dar vida a essa mulher que apresenta Arrakis para o público. Contudo, a maior parte do tempo de tela não está em Chani e nem nos fremen. Eis aí os primeiros sinais da multitude narrativa que o filme apresenta e aquilo que o diferencia de outras adaptações da mesma história.

“My planet Arrakis is so beautiful when the sun is low. Rolling over the sand, you can see spice in the air.”

“Meu planeta Arrakis é tão lindo quando o sol está baixo. Espiralando pela areia, você pode ver a especiaria no ar.”


Dessa vez, Villeneuve escolheu adaptar apenas a primeira metade do livro, apresentando a origem do taciturno Paul, herdeiro da família Atreides e interpretado pelo estadunidense Timothée Chalamet, em um ritmo lento, dando tempo para que possamos pensar no que estamos vendo. Após a introdução da família de Paul e seu castelo, no planeta Caladan, ficamos sabendo que o imperador ordenou que os Harkonnen retirem-se de Arrakis para que os Atreides tomem seu lugar. Há uma intensa formalidade na assinatura do contrato entre Duque Leto Atreides, pai de Paul, vivido na pele do ator Oscar Isaac, e o arauto que representa a corte do imperador. Essa corte chega em Caladan com toda a pompa que uma corte espacial pode ter na ficção. A voz do arauto projeta-se em um tom retumbante na leitura do documento que passa o controle de Arrakis para os Atreides, em uma representação do poder imenso que o imperador exerce sobre todos. O ator que interpreta esse arauto é o músico e poeta britânico Benjamin Clementine, um dos símbolos avant-garde da cena musical hoje. A obra de Clementine tem um traço anticolonial forte, explorando temas como imigração e pertencimento, em letras acompanhadas por piano e arranjos eletrônicos. O músico não tem outras experiências em atuação, mas brilha na única cena em que aparece em Duna. Essa escolha específica para um papel tão pequeno – o arauto não tem nem nome – é um dos exemplos mais expressivos de que nessa adaptação nada é desperdiçado; nem mesmo as escolhas de elenco para papéis que podem passar despercebidos.


A conversa entre Paul e Leto no cemitério da família toma uma parte considerável do tempo de tela; a solenidade da cena é pontuada por longos silêncios contemplativos. É quando Leto revela ao filho que enfrentarão perigo em Arrakis. O garoto pergunta sobre a ameaça dos fremen, descritos como selvagens pelas fontes de pesquisa que ele consulta para se informar sobre o planeta, mas o pai desfaz a crença de que os fremen são uma ameaça e revela: o perigo é político. Essa escolha simples de contar a maior parte da história pelos olhos do jovem Paul segue os passos do livro, que se encaixa na desgastada jornada do herói clássica. O questionamento que se estabelece com o público do século XXI talvez more nessa escolha. Será essa mais uma história de um salvador branco, o grande escolhido? O filme começa e termina com enquadramentos no povo fremen, criando um contraponto.

Quando os Atreides chegam em Arrakis, Paul é recebido pelos fremen como um messias. Há várias menções anteriores que preveem essa reação do povo local e, de início, parece que essa visão é compartilhada por todos os fremen. Isso é desmistificado no final do filme, quando Paul alcança o primeiro sietch, típica vila fremen do deserto, e por lá eles não o recebem como um messias, mas como um invasor. Com a morte do pai, fruto da trama política entre as casas monárquicas que servem ao imperador, e a tomada da base da casa Atreides no planeta desértico, Paul e sua mãe se tornam sobreviventes. E a única fonte de esperança para eles na imensidão do planeta desconhecido mora nos fremen. O enquadramento final fecha com Paul seguindo Chani, dessa vez em carne e osso na sua frente e não em uma visão de sonho, como na primeira cena do filme.


Um dos modos que a produção encontrou para contar detalhes de cada componente dessa intrincada trama política, sem estender-se por explicações extensas – evitando cair no infodump –, é o figurino. O esforço da equipe rendeu uma nomeação ao prêmio de Melhor Figurino e uma por Melhor Maquiagem pela AMPAS, que realiza a cerimônia do Oscar. Estima-se a criação de cerca de mil figurinos para a adaptação. No mundo de Duna, cada guilda tem suas marcas próprias; seja pelas longas vestes negras das Bene Gesserit, a irmandade de conselheiras diplomáticas e concubinas; seja pelos sinais corporais, como os lábios manchados de tinta dos homens treinados para pensar como computadores, caso de Thufir Hawat (Stephen McKinley Henderson) e Piter de Vries (David Dastmalchian), cujos olhos se tornam brancos quando estão computando dados; e muitos outros exemplos. Assim como os uniformes também cumprem seu papel na trama. Por exemplo, a apresentação dos Sardaukar, o exército do imperador, que em um take de trinta segundos mostra uma estética sombria e gore, dando o tom do fanatismo religioso envolvendo sua cultura, sem precisar pronunciar nenhuma palavra. Diz-se que parte desses figurinos emblemáticos foram inspirados na obra de Francisco Goya e nos trajes típicos de populações de diferentes lugares e períodos históricos, desde beduínos até gregos da antiguidade. Os designers contratados para desenhar tudo isso, Jacqueline West e Bob Morgan, trabalharam em filmes como The Revenant e Inception, buscando inspiração também em especialistas que projetaram trajes para Black Panther.


Essa linguagem de caracterização é empregada com generosidade na retratação da grande casa inimiga, os Harkonnen. Outras adaptações trouxeram para eles uma imagética do que hoje é considerado um típico simbolismo queer usado em vilões. Nos livros, o Barão Harkonnen, Stellan Skarsgård no filme, é o único personagem homossexual; isso nunca é mencionado na adaptação de Villeneuve, que escolhe evidenciar outras dimensões do personagem. Como, por exemplo, seu posicionamento predatório e explorador, pontuado pelo efeito de estranheza de seu traje anormalmente longo. Nos livros, o Barão é descrito como um homem corpulento que usa propulsores acoplados a seu corpo, para ajudá-lo a sustentar-se. Esses propulsores não são exibidos no filme, mas a flutuação é apresentada através desse efeito medonho na composição do figurino.


Outra questão sobre escolhas acerca de mudanças na caracterização de personagens é a respeito das características físicas de Dr. Liet Kyne, na pele da atriz Sharon Duncan-Brewster, a planetologista e ambientalista do imperador que tem um papel crucial na fuga dos Atreides para o deserto. No livro, Kyne é um homem branco, mas no filme é interpretado por uma mulher negra. Essa escolha provocou um comentário do crítico Chris Gore sobre a irrelevância da troca para a composição do personagem, pontuando que essas mudanças de gênero devem ser melhor analisadas. No contexto geral do filme, o gênero desse personagem realmente não importa para a trama em que ela está envolvida, mas talvez exatamente por isso seja uma ótima escolha para um gender-swap — algo que funcionou muito bem em outros títulos de produções do gênero de ficção científica, como a personagem Starbuck de Battlestar Galactica, mas que gerou uma grande repreensão pública na franquia dos filmes Os Caça-Fantasma, por exemplo. A aposta geral é de que essa discussão deve virar um tema cada vez mais recorrente no cinema atual.


A última cena de Liet Kyne na tela mostra um aparelho curioso que, espetado no chão do deserto, faz um som de batida que provoca a aparição de um dos grandes vermes de areia, componentes essenciais da trama. Durante o filme, aprendemos que os gigantescos vermes são perigosos, e quando no deserto aberto deve-se caminhar de forma a não reproduzir um barulho contínuo, pois isso atrairia-os para a origem do barulho. Os sons no mundo de Duna atuam quase como personagens. Muito antes dessa cena, o áudio serve a propósitos narrativos, figurando como um componente técnico impecável. Por exemplo, na troca de cenas de espaços abertos para espaços fechados, é possível notar a mudança de ambiente pelo modo como as vozes e o som dos passos ecoam, mesmo usando equipamentos simples de reprodução para assistir ao filme.


Fora essa parte técnica da sonoplastia em geral, a produção não poderia ter jogado mais seguro com a trilha sonora, outro elemento que está nas nomeações ao Oscar. O responsável pela trilha é o famoso compositor Hans Zimmer, figura conhecida pela produção musical para o cinema. A diferença aqui é que o próprio Zimmer afirmou em entrevistas que enxergou em Duna a chance de se distanciar do lugar-comum da trilha épica com orquestra tipicamente ocidental. Usando o que ele mesmo chama de “anti-groove”, o compositor ousou, misturando flautas indianas, gaitas de fole, sintetizadores e dezenas de outros elementos. Ele fez até uma repaginação da famosa Eclipse, do lendário álbum The Dark Side of the Moon, da banda Pink Floyd, usada em todos os trailers oficiais do filme. No entanto, parece que o melhor da ousadia sonora está mais presente nos detalhes, como a vocalização gutural em forma de mantra que abre o filme, depois repetida na sombria cena do exército Sardaukar.


Outros detalhes técnicos são reconhecidos pela quantidade de nomeações, como, por exemplo, Melhor Adaptação e Melhor Edição. Como produção cinematográfica, Duna mirou numa sobriedade quase contida para contar uma história lendária. Essa característica é ressaltada por uma das mais conhecidas marcas de estilo do diretor, que tende a usar cores com muita moderação, preferindo paletas frias na maior parte da tela, jogando esparsos contrastes para dar foco ao que requer a atenção do público. Villeneuve usou essa técnica em outro de seus títulos de ficção científica, o excelente A Chegada, baseado num conto do autor Ted Chiang. E funcionou bem para ambas adaptações. Os espaços abertos parecem continuar para fora da tela, dando a impressão de imensidão, ou infinito, recurso utilizado há séculos por pintores e desenhistas quando querem trazer uma noção de continuidade. Mesmo nos espaços fechados, a amplitude dos ambientes reverbera a grandiosidade do universo todo. É como se as cores frias e terrosas fonenecessem a linguagem visual necessária para enxergar essa vastidão geográfica.

A atuação dos personagens parece seguir essa mesma estética contida. Mesmo nas cenas de batalha, existe um tom de impessoalidade, em que a emoção vem mais do movimento dos olhos e das expressões faciais. A maior parte das interpretações são solenes. Não há alívio cômico no meio de tanta seriedade, exceto por breves interações entre Paul e o mestre de armas, Duncan Idaho, personagem estrategicamente selecionado para ser vivido por Jason Momoa, um ator que traz consigo o público dos blockbusters do momento. Em Caladan, na presença das Bene Gesserit na casa real, o choro e a consternação de Lady Jessica, interpretada pela sueca Rebecca Ferguson, talvez sejam as expressões mais exacerbadas – ou comuns – de expressão emocional que vemos. Por outro lado, é como se as emoções também viessem numa medida mais branda, para serem usadas com parcimônia. Num mundo em que tudo é escasso, até a “água do corpo” é economizada pelo povo do deserto. E as emoções encontram novos meios de expressão.

Quando Paul caminha por Arrakeen, a cidade do palácio ocupado pela família Atreides em Arrakis, ele observa enormes palmeiras em um pátio externo, onde há um servo fremen derramando uma concha de água meticulosamente na areia em volta de cada árvore. Ele fala para Paul que cada uma das palmeiras “bebe o equivalente a 5 homens”. Então Paul fala para o servo que vai mandar tirar as palmeiras, mas o homem responde “não, elas são sagradas”.


Em Duna, nada é desperdiçado. Seguindo o modelo da relação dos fremen com a água, o filme eleva essa linguagem da escassez para todas as áreas da própria cinematografia. Assim como a ideia de sagrado, que é mencionada a todo tempo, mas nunca explicada claramente. Arrakis, o único planeta produtor de melange, a especiaria mais preciosa, mais importante, a facilitadora de tudo, com a qual até viagens de longa distância entre os planetas se tornam rápidas como um passeio num jardim. Nada disso assegura a qualidade de vida da população local, tampouco poupa os fremen de investidas violentas dos exércitos dos Harkonnen e do imperador.

Talvez, a única coisa abundante no filme, além de areia, seja espaço. Para meditar sobre simbolismos e o que Duna representa para nós, testemunhas de sua história aqui no século XXI. Se vivemos o tempo do acerto de contas com o imperialismo, não há nada mais simbólico do que assistir uma jornada em que essa temática é posta sob o olhar meticuloso de quem prepara a cena para o próximo capítulo. Com Oscar ou sem Oscar, Duna já demarcou território no mundo que aguardava uma adaptação capaz de alcançar novos públicos e novas gerações. Duna agora deixa de ser uma longa promessa, tornando-se uma profecia para novos tempos.

Referências



Arte em destaque: Caroline Cecin
Vanessa Guedes
Escritora de ficção especulativa, editora e tradutora português-inglês na Eita! Magazine, podcaster no Incêndio na Escrivaninha e fluente nas línguas das máquinas. Quando não está de férias no Brasil, toca a vida em Estocolmo, na Suécia.

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