A forma de produção literária até o fim do século XVIII baseava-se ainda em muitos princípios clássicos; o arcadismo valorizava a mimese do mundo à sua volta e o resgate de uma antiguidade clássica em suas poesias. Com o fim do século e as mudanças contextuais que o mundo enfrentava, as ideias iluministas, a Revolução Francesa e a ascensão de uma burguesia que valorizava o status do homem em sua sociedade acima da natureza, os pensamentos voltavam-se para o eu e também para a condição subjetiva interna. Cercada por essas novas representações de mundo, a poesia neoclássica passou por um momento de transição, chegando então ao que conhecemos como romantismo.
As barreiras entre um movimento literário e o próximo não são rígidas; em determinados momentos eles se aglutinam, introduzindo os ideais sobressalentes da estética que está por vir. Nesse contexto de quebra de tradições e valores do século, Almeida Garrett traz da Alemanha e da Escócia uma nova forma de produzir literatura para Portugal. Com seu poema Camões, ele levou para a terra lusitana os novos preceitos valorizados pelos românticos ao redor da Europa. Já instaurado o movimento, este passou por processos de transição. Sua primeira fase ainda tinha reminiscências neoclássicas; a segunda, por seu caráter demasiado subjetivo, ficou conhecida como fase ultrarromântica, e por fim teve-se o momento de trânsito para o realismo.
Inserido na segunda fase da estética, Camilo Castelo Branco foi um dos grandes nomes do ultrarromantismo no país. Com uma existência conturbada, encontrou-se na vida boêmia e entre descobertas amorosas, até que a vida despreocupada dá início à sua vida literária. Em 1862, escreve o romance Amor de perdição, responsável por grande parte de sua notoriedade. O livro tece uma trama trágica com sentimentos exagerados e um pessimismo que ronda toda a obra; muito disso pode ser entendido como inspiração tirada da sua própria vida do autor, que foi regada a incidentes.
No prefácio da segunda edição de seu livro, Camilo aborda um tema que é central durante a narrativa romântica: as peripécias. “A rapidez das peripécias, a derivação concisa do diálogo para os pontos essenciais do enredo, a ausência de divagações filosóficas…” A história se movimenta e muda a todo tempo, as cenas não são maçantes, o que traz à tona mais uma característica dos românticos, a linguagem; esta tinha o objetivo de ser mais livre e atender a diversas camadas da sociedade portuguesa da época. Massaud Moisés comenta sobre essa característica acerca de uma outra obra do autor: “embora modelar por seu casticismo e propriedade, o estilo que serve à história é acessível ao leitor mais desatento:estilo coloquial, direto, 'popular'”.
A leitura de Amor de perdição resgata no leitor outras memórias literárias, como Romeu e Julieta, de William Shakespeare. Em ambos os escritos temos um amor proibido, ou como Bárbara Heliodora traz em sua introdução para Romeu e Julieta, “Um casal de amantes infelizes, que foi escravizado pelo desejo desonesto, desrespeitando a autoridade e o conselho de pais e amigos”. Esse clima de infelicidade e desesperança ronda a narrativa de Simão Botelho e de Teresa. Um sentimento que se mostra no romance é a presença de uma morbidez excessiva, típica do ultrarromantismo; o amor passível de morte.
Pode-se perceber esse traço em uma das primeiras cartas de Teresa para o seu amado após ser confinada em um convento pelo próprio pai. “Sofrerei tudo por amor a ti”, ou mais à frente, quando Teresa liga o amor ao sofrimento, “Ama-me assim desgraçada, porque me parece que os desgraçados são os que mais precisam de amor”. As personagens secundárias da trama também demonstram esse caráter mórbido ultrarromântico, como é o caso de Mariana, que ama desmedidamente, mas não é correspondida: “Mariana o amava até o extremo de morrer”. Mariana dá vida, então, à mais pura forma de mulher romântica, a que de tudo faz, mas nunca alcança seus desejos mais profundos, e prefere acompanhar seu amado - mesmo que platônico - até a morte certa.
Pode-se ponderar também a questão da crítica religiosa no livro. Assim como Julieta, Teresa apoia-se no auxílio da igreja para manter contato com seu amante passional. Entretanto, Camilo traz na narrativa a figura das freiras do convento, que demonstram contradições com as crenças católicas, as quais podem ser vistas no seguinte fragmento: “Más línguas é coisa que a menina não há de achar aqui, nem intriguistas, nem murmurações de soalheiro”. A fala da prioresa serve pra trazer essa crítica logo abaixo, com a quebra de expectativa da fala da organista e das noviças: “- Que impostora! - E que estúpida! (...) A menina não se fie nesta trapalhona (...) a prioresa é a maior intriguista do convento”.
A crítica aqui não tem um papel como no realismo ou um determinismo como no naturalismo, pois tanto a estética romântica quanto o autor Camilo Castelo Branco criticavam-a abertamente. Tal crítica se mostra ferrenha no romance e pode ser percebida no seguinte trecho: “Um romance que estriba na verdade o seu merecimento, é frio, é impertinente, é uma coisa que não sacode os nervos”. Isso suscita mais um acontecimento na estrutura de todo o romance, a liberdade do autor em inserir-se na história dando opiniões abertamente. “A desgraça afervora ou quebranta o amor? Isso é que eu submeto à decisão do leitor inteligente.” Ou quando o narrador suspende o relato de uma carta: “Suspendemos aqui o extrato da carta para não anteciparmos a narrativa de sucessos”.
O amor não concretizado tanto de Teresa e Simão quanto de Romeu e Julieta são retratos puros do amor romântico passional, que é ideal enquanto não concretiza-se. Esse amor desmedido leva à realização de crimes - Simão mata o primo de Teresa, que representa na trama o nosso Baltazar do bardo -, ao desespero, ao exílio, à doença, mas nunca ao toque dos corpos ou à exploração da própria sexualidade das personagens. Dessa forma, esses tipos de romances românticos constituem um público fiel, sem escandalizar ou, melhor dizendo, arrumam uma forma de redimir-se.
No decorrer do romance, muitos paralelos puderam ser traçados a respeito de outras obras como Romeu e Julieta, do bardo já mencionado, e aos que dizem respeito à sociedade da época e aos valores empregados pelos românticos. O romance tem um fim trágico, assim como a peça usada para comparação. A protagonista, por ser impedida de ficar com seu amado por conta do exílio, escolhe a morte: “É já o meu espírito que te fala, Simão. A tua amiga morreu. A tua pobre Teresa”. E, escolhendo a morte, crê que se juntará ao amado em outro plano. O sofrimento de Teresa é tanto que ela declara em sua carta: “A morte é mais que uma necessidade, é uma misericórdia divina”. Essa morbidez que permeia todo o livro é o que estampa o movimento da sociedade portuguesa da metade do século XIX.
Referências
- Amor de Perdição: memórias duma família (Camilo Castelo Branco)
- A Literatura Portuguêsa Através dos Textos (Massaud Moisés)
- Grandes Obras de Shakespeare: volume 1: tragédias (William Shakespeare)
Arte em destaque: Caroline Cecin
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