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O retrato da mãe narcisista em Lady Susan

Amor, dinheiro, diferenças sociais e a força de suas heroínas, esses são alguns dos motivos que fazem de Jane Austen um dos nomes mais importantes da literatura.

Quem pensa que Jane sempre escreveu suas histórias em um ambiente de romance, com um casal que encontra a superação de dificuldades e um final feliz pode se surpreender com Lady Susan, uma das mais distintas histórias de Austen. Escrita ainda na “juvenília” de Jane – por volta de seus dezenove anos –, essa pequena novela é o único trabalho da autora feito totalmente de forma epistolar e conta a história de uma jovem viúva que não mede esforços para conquistar o que deseja, seguindo sempre as ideias maquiavélicas que possui. 

A narrativa se inicia com a chegada da mesma na casa de seus cunhados no interior. Buscando melhorar de vida após a morte do marido e a inevitável falência que os acometeu, a viúva começa a planejar um casamento entre sua filha e um homem rico – e, quem sabe, um segundo casamento para si – custe o que custar. Enquanto a corte de Sir. James à sua filha Frederica não acontece, Lady Susan começa a viver uma aventura adúltera na cidade, junto de uma série de manipulações dentro do ambiente familiar.

Apesar de ser uma das únicas personagens de Jane a levar seu nome na obra — assim como Emma Woodhouse –, é difícil colocar Lady Susan no posto de heroína. Suas maldades, manipulações e caráter se distanciam muito do que se é esperado de uma personagem da autora. Não é por menos que muitas vezes vemos seu nome atribuído ao título de “primeira vilã de Austen”. A viúva consegue manipular todos à sua volta para conseguir o que deseja de cada um. Além de todas essas artimanhas, um dos pontos principais durante uma análise psicológica dessa obra é a forma como o narcisismo e sua crueldade são explícitos em diversos momentos. 

“Existe um requintado prazer em subjugar um espírito insolente, em fazer com que uma pessoa predeterminada a não gostar reconheça nossa superioridade. […] convencer a sra. Vernon de que suas advertências de irmã foram outorgadas em vão e persuadir Reginald de que ela me difamou de maneira escandalosa. Esse projeto vai servir pelo menos para me divertir.”

A mãe narcisista

Uma pessoa com personalidade narcisista sempre leva essas características em seus relacionamentos, afetando-os de forma severa, principalmente quando são relações com maiores conexões, como um relacionamento amoroso ou familiar. O narcisismo materno tem ganhado bastante pauta nos últimos anos e, infelizmente, há muitas pessoas dando seus relatos sobre mães que encontravam prazer em culpar, atacar e prejudicar seus próprios filhos. No caso de Frederica, sua mãe não foi diferente. 

Nas cartas que escreve para Mrs. Johnson, Lady Susan não esconde que simplesmente detesta a própria filha, chegando a se referir à mesma como o tormento em sua vida e fazendo de tudo para ficar longe da menina. Conforme a história segue seu caminho, se torna notório que a viúva só se sente feliz quando vê sua filha triste ou cedendo aos seus desejos; se isso não acontece, é melhor que Frederica esteja longe. Assim, sua mãe consegue culpar a própria filha por qualquer inconveniente. 

Em diversos momentos vemos a viúva usando da pouca convivência que os familiares tinham com a jovem para instigar alguns a acreditar que ela é uma mãe perfeita e faz de tudo pela filha, enquanto para outros ela jura sentir-se extremamente triste por não receber nenhum afeto ou consideração da mesma – nesse caso, ter a filha fazendo suas vontades sem questionar. Uma das conclusões principais que temos durante a leitura é: para Lady Susan, ou você a ama ou gosta de sua filha, os dois é impossível. 

“Detestarei os dois para sempre. Não é possível que ele tenha qualquer afeto verdadeiro por mim, caso contrário não teria dado ouvidos a Frederica.”

Frederica escreve apenas uma carta, num momento de desespero, logo após chegar à casa dos tios um pouco depois da mãe — uma infeliz coincidência, já que estava fugindo da mesma. Sendo assim, o pouco que sabemos da real situação dela com a mãe é através de sua tia Catherine. 

Lady Susan tenta convencer a cunhada da sua excelente relação com a filha, sem saber que ela não se deixa enganar, pois sabe muito mais da real relação entre as duas do que os outros. Não é difícil ver Catherine elogiando o caráter e modos de Frederica, assim como também a vemos defender a menina com unhas e dentes nas suas cartas para a mãe, Lady De Courcy. São nesses momentos que felizmente temos o outro lado da história e descobrimos as diversas mentiras da protagonista. 

Além de mostrar que Frederica possuí um caráter totalmente diferente do que Lady Susan fala, não tendo nada de mimada ou arrogante, em algumas passagens nas cartas de Catherine descobrimos também fatos que mostram o ambiente familiar em que Lady Susan criava a própria filha. 

“Fala dela com tanta ternura e ansiedade […] sou forçada a recordar as inúmeras primaveras sucessivas que sua senhoria passou na cidade enquanto sua filha era deixada em Staffordshire aos cuidados de criadas, ou de uma preceptora bem pouco melhor.”

Além de ter tido uma mãe ausente e que não respeitava seus desejos, Frederica admite ter noção de que seria mais bem vista pelos outros se não fosse pela sua mãe. Felizmente, Catherine ignora as falas de Lady Susan e se aproxima da sobrinha, acolhendo-a em sua família, os De Courcy, na qual a jovem passa a ser tratada com atenção e carinho, sendo ouvida e tendo maior confiança em si mesma. 

Lady Susan no cinema: vilã ou girlboss

Em 2016, o diretor Whit Stillman levou às telas do cinema o filme Amor e Amizade (Love & Friendship no original), uma adaptação de Lady Susan que ganhou o título de uma outra obra, também de Jane Austen. 

Apesar do filme retratar de forma fiel diversos aspectos da obra, algumas mudanças foram feitas. E se Lady Susan ainda não havia conseguido seu arco de redenção perante o público, no filme ela conseguiu. Suas características, ações e comentários afiados foram mantidos, assim como sua difícil relação com a filha. Numa cena, ela chega a chantagear a mesma a fazer seus desejos através do mandamento de “honrar pai e mãe”, mas o humor em diferentes cenas tornava tudo um pouco mais leve quando se tratava da viúva. 

Porém, diferente do livro, que possuí um final certo a Lady Susan, mas muito aberto perante outras partes da história, no filme todos ganham um final feliz. Lady Susan (Kate Beckinsale) conquistou seu marido rico, e Frederica (Morfydd Clark) acaba se casando com Reginald (Xavier Samuel) e, apesar do jovem possuir uma situação confortável — o casamento dos sonhos para sua mãe –, os dois se unem por um sentimento verdadeiro. 

Também se torna curioso e motivo de muitas pessoas passarem a amar Lady Susan. No filme, sua fala final no casamento de sua filha — “nenhuma Vernon passa fome” — se torna como um arco de redenção para a personagem, como se tudo o que ela tivesse feito fosse em prol da salvação de sua filha tivesse sido sem maldades ou por puro divertimento. 

Se era essa a intenção final de Jane ao livro, nunca saberemos. Mas, querendo ou não, hoje Lady Susan entrou para o hall de personagens fortes que lutam pelo o que desejam num mundo de homens. 

Referências 


Arte em destaque: Mia Sodré

Carolina Pereira
Santista, 20 anos, estudante de psicologia e de filosofia. Amante de idiomas, café, mar e tudo o que Edgar Allan Poe tenha colocado no mundo. De vez em quando tem vontade de fugir e viver como um hobbit.

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