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As cartas de Mário de Andrade

Um dos grandes protagonistas do Modernismo e da Semana de 22 foi Mário de Andrade (1893-1945). O intelectual paulista contribuiu para os rumos da Arte Moderna Brasileira em muitas frentes como poeta, musicólogo, romancista, ensaísta e crítico de arte. Ainda em vida, Mário de Andrade publicou livros e numerosos textos em jornais e revistas, sempre opinando sobre as mais variadas formas artísticas. Sua atenção voltava-se à música, artes plásticas, literatura e, até mesmo, para o patrimônio histórico brasileiro e a institucionalização da arte – advogando pela criação de institutos que promovessem a educação de jovens artistas brasileiros e a preservação da nossa cultura. Porém, se durante o dia Mário era este incansável paladino da arte e cultura brasileiras, à noite ele era um missivista, ou seja, um dedicado escritor de cartas. 

Mário de Andrade transformou a atividade epistolar entre a elite intelectual e a classe artística brasileiras. Depois do autor de Macunaíma, a prática de escrever e trocar cartas nunca mais foi a mesma. Pensando nos rumos de uma arte nacional, que unisse este país de dimensões continentais que é o Brasil, Mário de Andrade viu na carta um propósito que ia além da comunicação: um projeto pedagógico. Essa ideia é defendida por um grande estudioso das cartas marioandradianas, o professor Marcos Antonio de Moraes que, desde a abertura destes documentos, dedica-se ao estudo desse precioso material. De acordo com o professor, carregadas de formalidade, as cartas serviam ao propósito de trocas de informações, negócios e burocracia. Mário de Andrade quebra toda essa rigidez e formalismo e, utilizando-se de uma linguagem informal e assiduidade de escrita, ele incentiva “amizades epistolares”. Através da oralidade, as cartas de Mário não apenas transmitem notícias, mas aproximam os interlocutores e, consequentemente, diminuem as distâncias. 

Abandona Paris! Tarsila! Tarsila! Vem para a mata-virgem, onde não há arte negra, onde não há também arroios gentis. Há MATA VIRGEM. Criei o matavirgismo. Sou matavirgista. Disso é que o mundo, a arte, o Brasil e minha queridíssima Tarsila precisam.

(Carta de Mário de Andrade a Tarsila do Amaral, de 15 de novembro de 1923)

Com o tempo, artistas plásticos, poetas, romancistas, musicólogos, compositores, intelectuais e até funcionários públicos estariam se comunicando por cartas com Mário de Andrade, enviando-lhe textos para saber sua opinião, pedindo conselhos, discutindo teoria e contando as novidades do mundo artístico. Havia também uma intensa troca de revistas, discos e livros. Sem saber, os carteiros estavam fazendo história levando, para lá e para cá, todo esse imenso tesouro para a cultura e história brasileira. A consciência que vinha revolucionando a atividade epistolar e suas consequências para os rumos da arte e literatura brasileiras foi expressa pelo próprio autor, em 1939, no texto Amadeu Amaral, e publicado na coletânea O Empalhador de Passarinhos

Eu sempre afirmo que a literatura brasileira só principiou escrevendo realmente cartas, com o movimento modernista. Antes, com alguma rara exceção, os escritores brasileiros só faziam ‘estilo epistolar’, oh primores de estilo! As cartas com assunto, falando mal dos outros, xingando, contando coisas, dizendo palavrões, discutindo problemas estéticos e sociais, cartas de pijama, onde as vidas se vivem, sem mandar respeitos à exma. esposa do próximo nem descrever crepúsculos, sem danças minuetos sobre eleições acadêmicas e doenças do fígado: só mesmo com o modernismo se tornaram uma forma espiritual de vida em nossa literatura.

São muitos os interlocutores de Mário de Andrade; dentre os principais, podemos citar: Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti, Oswald de Andrade, Sergio Milliet, Yan de Almeida Prado, Villa-Lobos, Paulo Prado, Manuel Bandeira, Luís da Câmara Cascudo, Henriqueta Lisboa, Cândido Portinari, Murilo Rubião, Oneyda Alvarenga, Carlos Drummond de Andrade, Otto Lara Rezende, Fernando Sabino, Lygia Fagundes Telles, Murilo Miranda, Paulo Mendes Campos e muitos outros.  

Mário de Andrade faleceu aos 51 anos em 1945. Um ano após sua morte, o professor Antonio Candido afirmou que as cartas marioandradianas constituíam um “monumento” sem parâmetros na literatura brasileira. De fato, o próprio missivista já antecipava isso e, sabendo do valor da intimidade tão características às cartas pessoais, Mário de Andrade já havia determinado em seu testamento que suas cartas deviam permanecer lacradas por 50 anos. 

Nesse meio tempo, seu legado arquivístico, junto com sua biblioteca e coleção de artes visuais, foi transferido para o Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo. Obedecendo ao desejo do autor, o baú onde estavam guardadas as cartas permaneceu lacrado até 1995, quando só então, sob grandes expectativas, pôde ser aberto. Depois de dois anos durante os quais os documentos foram higienizados, identificados e catalogados, chegou, enfim, a etapa da pesquisa. Desde 1997, quando a consulta foi aberta ao público, muitas teses, dissertações e livros vêm sendo publicados a partir dos estudos que têm sido feitos com esse belíssimo material que Mário de Andrade nos deixou. 

Finalmente hoje, após ser mantida em segredo por 52 anos, a correspondência recebida pelo escritor Mário de Andrade (1893-1945) estará aberta para consulta pública no IEB (Instituto de Estudos Brasileiros), na Cidade Universitária da USP (Universidade de São Paulo). São cartas inéditas de Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Villa-Lobos, Pedro Nava, Murilo Rubião, Fernando Sabino, Prudente de Moraes e Érico Veríssimo, entre outros, endereçadas ao autor de "Macunaíma". A correspondência foi lacrada após a morte de Mário, em 1945, respeitando pedido feito em testamento. Há dois anos, terminou o prazo estipulado pelo escritor para que o sigilo fosse mantido.

(Reportagem de 21 de Julho de 1997, por Patricia Decia. Folha Ilustrada, Folha de S. Paulo)

O sigilo imposto por Mário de Andrade, mais o fato de o próprio nunca ter se casado e, ainda em vida, ter sido alvo de muitos boatos sobre sua sexualidade, criou uma áurea de expectativa enorme sobre suas cartas. Esperava-se que essas “fofocas” fossem reveladas. No entanto, o que se revelou foi o grande intelectual, amigo e professor, que amava o Brasil e esperava colocar no grande patamar da arte e cultura mundial seu país tão amado, belo e, ao mesmo tempo, tão judiado e esquecido pelas classes políticas e dominantes. 

Após 70 anos da morte do autor, graças aos avanços da digitalização e à lei de direitos autorais, as cartas de Mário têm entrado em domínio público e mais e mais pessoas agora podem ter acesso a esse rico material com mais facilidade. Na intimidade e silêncio de sua sala, Mário de Andrade preenchia uma série de papéis em branco, com data e destinatários. No dia seguinte, os colocava no correio. Esses papéis, então, percorriam todo o país nas mãos dos carteiros que, em seguida, traziam as respectivas respostas em suas bolsas para a residência do autor de Macunaíma, o importante ponto de origem de toda essa história. Cuidadosamente guardadas em um baú – como o tesouro de Ali Babá –, lá descansaram. Após 50 anos, foram abertas, lidas, cuidadas e, agora, mais de 70 anos depois, muitas já foram publicadas em coletâneas, jornais e, aos poucos, sendo divulgadas pela internet. 

As cartas de Mário de Andrade foram definitivas para os rumos que a Arte Moderna Brasileira tomou após a Semana de 22. Termino este texto citando o próprio autor que, em carta para Carlos Drummond de Andrade, teoriza sobre sua prática e estilo epistolar: 

Aquela pergunta desgraçada “não estarei fazendo literatura”? , “não estarei posando”?, me martiriza também a cada imagem que brota, a cada frase que ficou mais bem-feitinha, e o que é pior, a cada sentimento ou ideia mais nobre e mais intenso. É detestável, e muita coisa que prejudicará a naturalidade das minhas cartas, sobretudo sentimentos sequestrados, discrições estúpidas e processos, exageros, tudo vem de uma naturalidade falsa, criada sem pensar ao léu da escrita para amainar o ímpeto da sinceridade, da paixão, do amor

(Carta de Mário de Andrade para Carlos Drummond de Andrade, de 29 de março de 1926)

Referências

Giovana Faviano
Historiadora de formação. Interessada em tudo que envolve subjetividade e criatividade humana. Ama ler, escrever e cozinhar. Se não está fazendo uma destas três coisas, então está tomando um cafézinho.

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