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David Copperfield, o "filho favorito" de Charles Dickens


O livro leva o nome de seu protagonista: David Copperfield. Porém, dentre os mais variados e carismáticos personagens presentes na narrativa de Charles Dickens, é possível dizer que a obra se parece com a tia de David, Betsey Trotwood. Deixe-me explicar o porquê. As quase mil páginas publicadas em 1849 na Inglaterra vitoriana podem parecer intimidadoras. Se adicionarmos a tudo isso o forte cunho social ao qual as histórias de seu autor são associadas, a impressão é que David Copperfield é uma leitura pesada, difícil, cansativa e desafiadora.

Porém, é só dar uma chance e, logo nas primeiras páginas, a história vai te cativar enormemente. Como Betsey Trotwood, carrancuda e austera à primeira vista, o livro se mostra divertidíssimo, leve e engraçado. Há sim algumas partes pesadas, mas elas são muito bem contornadas pelo estilo narrativo do autor. As quase mil páginas continuam lá, portanto a leitura é longa, mas é um compromisso delicioso ir passando pelos breves capítulos, rindo, chorando e se apaixonando por cada personagem e cada história. No final, você vai sentir uma enorme saudades destas figuras tão caricatas e vai ter agradecido de ter se proposto a conhecer David Copperfield e a excêntrica Betsey Trotwood.

Em linhas gerais, David Copperfield é a história de um homem. Narrada em primeira pessoa, é o próprio David Copperfield (ou Daisy, ou David Copperful, ou Trot, ou Doeisy, como é chamado por alguns personagens) que conta sua trajetória de vida, desde seu nascimento até chegar na meia-idade. Nasceu orfão de pai numa região rural da Inglaterra, e viveu sua primeira infância muito feliz com uma mãe amorosa e uma babá querida e amiga. As coisas começam a desandar quando sua mãe casa-se novamente com o Sr. Murdstone (ou Murderer, como diz Betsey Trotwood). Novas figuras surgem na vida de David e suas aventuras – e desventuras – começam.

"Capítulo 1

Nasço

Se serei o herói de minha própria vida, ou se essa posição será ocupada por alguma outra pessoa, é o que estas páginas devem mostrar. Para começar minha vida com o começo de minha vida, registro que nasci (conforme me informaram e acreditei) numa sexta-feira, à meia-noite. Notaram que o relógio começou a bater as horas e comecei a chorar simultaneamente."

David vai para a escola, onde passa por vários apuros. Depois do falecimento de sua mãe, órfão e com 10 anos de idade, é enviado a Londres para trabalhar num depósito de garrafas de vidro. Lá, ele conhece a família Micawber, que lhe alugava um quartinho para dormir. O Sr. e a Sra. Micawber se tornam grandes amigos do pequeno inquilino, mas, infelizmente, afundado em dívidas, o Sr. Micawber é preso. Depois de algumas idas e vindas entre prisão e casa, a família Micawber parte. Completamente sozinho, Copperfield decide procurar sua única parente viva, a quem ele nunca conheceu: sua tia-avó Betsey Trotwood.

Há muitos personagens em David Copperfield e todos são cativantes e memoráveis. No entanto, sobre Betsey Trotwood, é difícil saber por onde começar para explicar o quanto ela é uma personagem genial e como, todos nós, gostaríamos de ter uma tia Betsey na vida. Somos apresentados à tia-avó de David logo no primeiro capítulo, em seu nascimento. Porém, antes mesmo de conhecer o sobrinho-neto, Betsey vai embora correndo quando, decepcionadíssima, ouve do médico que a criança que nasceu era um menino e não a menina, que teoricamente levaria seu próprio nome – Betsey Trotwood –, e que ela tanto havia planejado.

"- Bom, minha senhora - retomou o dr. Chilip assim que teve coragem -, estou feliz de lhe dar os parabéns. Está tudo terminado, senhora, e em bons termos.

Durante os cinco minutos e tanto que o dr. Chilip dedicou a pronunciar essa sentença, minha tia olhava firme para ele.

- Como ela está? - perguntou minha tia, cruzando os braços com o chapéu ainda amarrado a um deles.

- Bom, minha senhora, ela logo estará se sentindo bem, espero - replicou o dr. Chilip. - Tão bem quanto se pode esperar de uma jovem mãe nesta melancólica situação doméstica. Não há nenhuma objeção em ir ver a mãe, minha senhora. Pode fazer bem a ela.

- E ela? Como está ela? - minha tia perguntou, ríspida.

O dr. Chilip inclinou um pouco mais a cabeça para um lado e olhou minha tia como um afável passarinho.

- A bebê! - disse minha tia. - Como ela está?

- Minha senhora - retomou o dr. Chilip -, achei que soubesse. É um menino.

Minha tia não disse nem uma palavra, apenas pegou o chapéu pelas fitas, à maneira de uma atiradeira, e desferiu com ele um golpe na cabeça do dr. Chilip, vestiu o chapéu, saiu e nunca mais voltou. Ela desapareceu como uma fada descontente."

A tia-avó Betsey Trotwood, nada simpática a casamentos e meninos, parte, e só a reencontramos quando David Copperfield chega em sua casa procurando acolhimento. A partir daí, apesar de excêntrica e decisiva, Betsey demonstra ser a tia mais atenciosa, carinhosa e engraçada de toda a literatura. Ela adota o sobrinho e ele passa a viver com ela e seu amigo, o Sr. Dick.

O Sr. Dick é outro personagem tão excepcional que merece algumas linhas. Hoje, 173 anos depois da publicação desta obra, podemos compreender que o Sr. Dick é neuroatípico. Amoroso, atencioso, carinhoso e inteligente à sua própria maneira, a alegria desse senhor de meia idade é empinar pipa e sua principal ocupação é escrever seu memorial. O que, infelizmente, nunca é concretizado porque os pensamentos do rei Carlos I, decapitado em 1649, entraram em sua própria cabeça e o atrapalham de concluir seu projeto. Descobrimos que, em algum momento da vida do Sr. Dick e de Betsey, a família de Dick o renegou e o teria colocado num asilo se Betsey não o tivesse acolhido e se tornado responsável por ele.

Nessa primeira parte do livro, acompanhamos David Copperfield criança. Conhecemos muitos outros personagens que vão fazer parte de toda a vida do protagonista e contribuir para o seu desenvolvimento pessoal. Sua mãe, Clara, sua babá, Pegotty e seu irmão, o Sr. Pegotty, o padrasto, Sr. Murdstone, e sua irmã, Sra. Murdstone, a pequena Emily, o corajoso Ham, o Sr. e a Sra. Micawber, os amigos Tommy Traddles e James Steerforth, a querida Agnes e seu pai, o Sr. Wickfield, o asqueroso Uriah Heep e o Sr. Strong, para mencionar os mais importantes.

Na segunda parte do livro, David torna-se um jovem adulto e todos esses personagens continuam em sua vida com problemas, desafios e alegrias compartilhadas com o nosso protagonista. A narrativa principal é a história de vida de David Copperfield e sua passagem de menino para homem, mas ela é acompanhada por muitas outras subtramas que envolvem os outros personagens que David foi conhecendo em sua jornada. Charles Dickens é um formidável contador de história e consegue envolver a nós, leitores, em toda essa constelação de narrativas menores concentrando-as num único personagem e sua história principal. Por isso é um ótimo romance de entrada para o mundo de Dickens. Ele acaba nos dando esse “ajudinha” na leitura, que se torna uma mão na roda para acompanhar tantos personagens e reviravoltas.

São muitos os temas explorados em David Copperfield, mas alguns merecem destaque pela sensibilidade como são tratados. Família é uma questão muito cara em toda a história e é retratada como algo que vai muito além das relações sanguíneas. As famílias são sempre formadas pelo amor, acolhimento e afinidade, não por sangue e/ou contratos sociais. As famílias em David Copperfield são formadas por crianças órfãs de pai ou de mãe, ou até mesmo dos dois, e são adotadas por tios e tias. Mas também são famílias que se juntam por afinidade para tornar mais fácil as dificuldades da vida, como o Sr. Pegotty que acolhe a viúva Sra. Gummidge e a própria Betsey Trotwood e o Sr. Dick.

"- Nunca seja mesquinho - disse minha tia -, nunca falso, nunca cruel. Evite esses três vícios, Trot, e minha esperança estará sempre com você."


Como estamos falando de Charles Dickens, outro tema caro é a infância. De maneira genial, o autor consegue construir na primeira parte do livro um narrador infantil. Ou seja, quando você lê David Copperfield criança, ele realmente parece ser uma criança, e não um adulto tentando parecer criança. É com um olhar infantil e inocente que David conta os episódios de perda e abuso que sofreu quando ainda era muito menino. Por outro lado, é com curiosidade e empolgação que conhecemos, junto com o David menino, a casa-barco do Sr. Pegotty, sabemos sobre a paixão infantil pela pequena Emily e sua relação com os livros. Charles Dickens nos traz uma narrativa sobre a infância de modo sensível e, ao mesmo tempo, dura. Cruel e também bondosa. E são esses primeiros anos dúbios da vida de David Copperfield que vão moldar seu desenvolvimento como personagem na idade adulta e nos próximos capítulos.

A história de amor em David Copperfield é apenas mais uma das tantas histórias que compõem a trajetória do personagem, mas é no amor que vemos com mais clareza o desenvolvimento de sua maturidade de menino para homem. Quando criança, David apaixona-se infantilmente pela pequena Emily. Depois, jovem adulto, apaixona-se por Dora e, finalmente, mais velho, reconhece que a mulher que ama não está na ordem da paixão obsessiva, mas da segurança, tranquilidade, amizade e companheirismo. Longe de ser um conto de fadas, o casamento em David Copperfield é um tema bastante problemático: às vezes opressivo, ele sufoca as mulheres nas relações domésticas e, não é à toa, que Betsey Trotwood não gosta de homens e tampouco de casamentos.

Há muitas mulheres em David Copperfield e das mais variadas caracterizações: desde a frágil e dócil Dora, a inocente Emily, a angelical Agnes, a amorosa e cuidadora Pegotty, a fiel Sra. Micawber, a assustadora Ms. Dartle, e a extravagante, forte e independente Betsey Trotwood (ou a mulher mais extraordinária do mundo, segundo o Sr. Dick).

Mas outros temas também são ricamente abordados no livro, como o período industrial pelo qual vinha passando a Inglaterra naquele momento, as classes trabalhadoras, os emigrantes, o sistema financeiro, as prisões, a burocracia. Também são explorados temas relacionados à moralidade como ambição, cobiça, inveja, amizade, amor, bondade e compaixão. A riqueza em David Copperfield está justamente no fato de que cada pessoa terá sua própria experiência de leitura e poderá dialogar com a obra de forma individual e única.

David Copperfield foi o oitavo romance publicado por Charles Dickens. Segundo o próprio autor no prefácio da edição de 1867, este era seu "filho favorito". Alguns dizem que é o seu romance mais “autobiográfico”. Assim como o autor, o protagonista, David Copperfield, torna-se um escritor. Desde criança, sua paixão por livros e sua habilidade em contação de história o leva a dedicar-se à escrita e a vir a ser um autor bastante reconhecido. Alguns temas também foram vividos por Dickens e colocados na trama na pele de David, como quando ele, aos 12 anos de idade, trabalhou em uma fábrica de graxa em Londres enquanto seus pais estavam presos por dívidas, assim como os Micawber. Porém, apesar dessas semelhanças, a história não deve ser tratada como uma autobiografia. Trata-se de uma obra ficcional.

Uma outra mão na roda no estilo de Charles Dickens que torna a leitura tão prazerosa é o humor. David Copperfield é engraçadíssimo, apesar dos temas tristes e pesados. Os personagens são caricatos, espalhafatosos e cheios de frases marcantes que são repetidas a torto e a direito ao longo da narrativa, o que torna a leitura cômica e teatral. Imagine que a obra foi publicada em folhetim, ou seja, em forma seriada. Os primeiros capítulos foram lançados em maio de 1849 e os últimos apenas em novembro de 1850. Também imagine que, nessa época, muitos não sabiam ler. Por isso, era comum que, assim que saía um novo folhetim, grupos de pessoas se reunissem em torno de um leitor para ouvir a história. Em voz alta, a repetição de frases características de cada personagem ajudava a acompanhar o desenrolar dos diálogos.

David Copperfield é uma obra de fôlego e, para os parâmetros atuais, muito extensa para nossa rotina agitadíssima e uma cultura que supervaloriza quantidade ao invés de qualidade. Essa é uma obra para quem quer ler sem pressa, com prazer, conhecer mais sobre Charles Dickens e também para quem quer entrar no mundo desse autor. Também é uma obra incrível para se introduzir no mundo da literatura vitoriana.

Finalmente, sobre as adaptações! Ao longo desses mais de cem anos, muitas adaptações têm sido feitas de David Copperfield nas mais variadas formas: cinema, teatro e televisão. A mais recente foi lançada nos cinemas em 2019 sob o título A História Pessoal de David Copperfield, com direção de Armando Iannucci e Dev Patel no papel principal. Recomendo, no entanto, a minissérie de quatro episódios produzida pela rede BBC em 1999, disponível na Amazon Prime. Com Daniel Radcliffe no papel de David Copperfield criança, Maggie Smith interpretando a tia Betsey e Imelda Staunton (a memorável Madam Dolores Umbridge) no papel de Sra. Micawber. É uma adaptação belíssima, delicada, com os cenários mais lindos e um elenco que, para aqueles que se encantaram com Harry Potter na infância, vai ver a Prof. Minerva McGonagall vivendo Betsey Trotwood e ficar feliz com as memórias mais deliciosas.

Podem ver? É por isso que David Copperfield é especial. É uma obra atemporal. Não importa quem, onde e quando será lida, ela sempre trará os melhores sentimentos e memórias ao leitor que lhe der uma chance.


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Giovana Faviano
Historiadora de formação. Interessada em tudo que envolve subjetividade e criatividade humana. Ama ler, escrever e cozinhar. Se não está fazendo uma destas três coisas, então está tomando um cafézinho.

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