O movimento modernista no Brasil tem início antes dos anos 1920, mas o evento que ficou conhecido como A Semana de 22 foi e ainda é, sem dúvidas, um marco para a historiografia da arte brasileira modernista. Organizada no Teatro Municipal de São Paulo, a Semana de Arte Moderna englobou diversas formas de arte em eventos de música, literatura e artes plásticas.
A necessidade de uma construção artística nacional fixou a semana de 22 na memória do povo brasileiro como a grande inauguração do modernismo no Brasil. Mesmo que o evento original tenha sido criado pela elite e para a elite, nas décadas que se seguiram até os dias de hoje, a memória da semana de 22 e do modernismo no Brasil adquiriu traços mais populares e a construção desta memória foi muito bem sucedida, até mesmo em situações que nunca aconteceram, como Tarsila do Amaral expondo suas obras no evento, fato que não ocorreu. Porém, a imagem da pintora foi tão bem construída por ela mesma e pela história que sua presença se torna obrigatória até mesmo em sua ausência.
Como foi dito por Mário de Andrade, a Semana de Arte Moderna, pelo menos no que diz respeito às artes plásticas, não foi tão moderna assim. Entretanto, causou no público efeito imediato e permanente e abriu a discussão do que é ser moderno no Brasil. Mesmo que isso já tivesse sido feito cinco anos antes, quando uma jovem pintora chamada Anita Malfatti fez sua primeira exposição em 1917.
A exposição de Anita para muitos é vista como o verdadeiro marco inicial do modernismo no Brasil, seja por suas obras altamente autorais e modernas que nunca haviam sido vistas antes ou pela crítica severa de Monteiro Lobato, escritor e crítico de arte. O que nem ele nem Anita poderiam imaginar é que essa crítica criaria uma rede de conexões com pessoas que pensavam diferente de Lobato e viram na exposição de Anita Malfatti algo mais que apenas a estreia de uma talentosa artista. Naquele momento foi criado o grupo dos modernos.
Anita Malfatti
Traçando um caminho incomum a artistas de sua época, que sempre partiam para Paris estudar artes, Anita Malfatti estudou na Alemanha entre 1910-1914 e nos dois anos seguintes partiu para Nova York para finalizar seus estudos. Iria para a França muitos anos depois, após sua grande exposição em São Paulo, em 1917.
A boba (1916) |
Sua experiência na Academia Imperial de Belas Artes em Berlim, durante a grande impulsão do expressionismo alemão, tornou sua produção artística naquela época muito autoral e longe das amarras do tradicionalismo e do academicismo. Sua ida aos Estados Unidos deixou seus traços ainda mais expressionistas e abstratos, e em 1917, Anita estava em pleno amadurecimento artístico. Ao mesmo tempo que suas obras proporcionaram um ar de novidade, surpresa e fascinação, a exposição de Anita, que na época contava com obras como O Homem Amarelo (1915-1916) e A Boba (1916), mais tarde gerou insatisfação, como é possível encontrar nas críticas que Monteiro Lobato fez à exposição da artista:
"[...] seduzida pelas teorias do que ela chama arte moderna, penetrou nos domínios dum impressionismo discutibilíssimo, e põe todo o seu talento a serviço duma nova espécie de caricatura. Sejam sinceros: futurismo, cubismo, impressionismo e tutti quanti não passam de outros tantos ramos da arte caricatural. [...] E tivéssemos na Sra. Malfatti apenas uma "moça que pinta", como há centenas por aí, sem denunciar centelhas de talento, calar-nos-íamos, ou talvez lhe déssemos meia dúzia desses adjetivos "bombons" que a crítica açucarada tem sempre à mão em se tratando de moças."
A dura crítica ao trabalho de Anita feita por Monteiro Lobato possui um grande tom conservador a respeito não apenas dos artistas mas das vanguardas artísticas em geral, que para ele eram apenas figuras distorcidas. Após a publicação da crítica de Lobato, diversos foram os que saíram em defesa de Anita Malfatti, dentre eles vale citar Mário de Andrade, Di Cavalcanti e Oswald de Andrade. Estes partir daquele momento se reconheceram como pessoas que possuíam as mesmas ideias, e foi então que foi criado o grupo dos modernos.
Apesar do importante apoio e reconhecimento de seu trabalho após o fato relatado, duas narrativas começaram a ser criadas. A primeira de que Anita se tornou uma vítima de Lobato, que a pintora jamais se recuperou e por isso, anos mais tarde, afastou-se do modernismo. E a segunda diz que a exposição de Anita serviu apenas para que um grupo de grandes homens se encontrassem e dessem o pontapé inicial para o modernismo no Brasil. Não a exposição de Anita, e sim a união desses homens para defendê-la. Segundo essa narrativa, não foram as obras dela que começaram o movimento, e sim o grupo criado por eles, que anos mais tarde organizaram a Semana de Arte Moderna em 1922.
O homem de sete cores, 1916 |
Anita Malfatti não parou de pintar e muito menos de expor suas obras, como fica claro em cartas de seu grande amigo Mário de Andrade:
"Sou insaciável a respeito de notícias tuas. Quero saber o que fazes os que pensam de ti. Quando algum jornal escrever qualquer coisa sobre a tua arte não te esqueças de que faz questão de ler. É engraçado que a pintura brasileira hoje está dependendo das mulheres e nas mãos delas. Tu,Tarsila e Zina sempre caminhando enquanto os homens decaem."(Mário de Andrade, 1925)
Mesmo assim, a imagem de Anita por muito tempo continuou atrelada à crítica de Lobato, principalmente após sua estadia em Paris entre 1923 e 1928, quando sua produção artística voltou a um lugar mais tradicional e confortável. Atualmente é sabido que Anita não apenas juntou os grandes modernistas, mas que de fato foi a grande precursora do movimento, mas essa imagem de pioneira que Anita Malfatti possui nos dias de hoje levou tempo para ser construída. Principalmente porque logo quando a produção de Anita "dava um passo para trás" ela começou a ser comparada com Tarsila do Amaral, outra artista.
Tarsila do Amaral
Tarsila do Amaral não tinha medo de se expor e possuía uma personalidade forte e uma imagética confiante e glamourosa. Ela não era apenas uma mulher belíssima e esposa do talentoso Oswald de Andrade. Tarsila era inteligente e foi uma artista extremamente talentosa, responsável por radicalizar as normativas artísticas brasileiras, e criou inúmeras obras-primas, assim como construiu ao redor de si mesma a imagem de musa do modernismo brasileiro.
Tarsila estudou a vida inteira no exterior, e em 1918, se formou em Barcelona e voltou para o Brasil. Em um período curto de tempo, Tarsila se casou com seu primeiro marido, André Teixeira Pinto, e teve uma filha. Seu casamento logo chegou ao fim, e em 1921 ela decide se mudar para Paris a fim de estudar artes.
A família de Tarsila sempre foi rica. Por conta disso, a artista nunca teve problemas para fazer viagens, estudar com os mais renomados professores, frequentar as mais influentes academias e expor nas mais disputadas galerias. Anita, por outro lado, teve seu ensino custeado por parentes e bolsas de estudo. Por isso, mesmo que estivessem ao mesmo tempo em Paris e ambas estudando artes, Tarsila e Anita pareciam viver em universos diferentes e apenas se conheceram de fato durante um período em São Paulo.
A negra (1923) |
Em Paris, Tarsila estudou com Fernand Leger, André Lhote e Albert Gleizes, e após ter contato com o expressionismo e o cubismo, começou a modificar sua produção artística radicalmente. Mesmo muito influenciada pelas vanguardas, não deixou de desenvolver seu estilo próprio, não apenas em suas produções mais modernistas, como também em suas obras mais tradicionais. De fato, Tarsila era tão talentosa que conseguia percorrer e produzir ambos os estilos ao mesmo tempo, como é possível notar em duas grandes obras de sua autoria lançadas em 1923. São elas a pintura "A Negra" e seu famoso autorretrato, "Le Manteau Rouge". Este último parece ser muito mais que um simples autorretrato. É o início de uma bem-sucedida construção de imagem da grande musa do Modernismo:
"Tarsila é um emblema nacional. Ela investiu muito nela mesma, na construção de uma musa da arte moderna brasileira. [...] Por que a beleza é uma questão tão poderosa em uma artista? Para as mulheres o corpo sempre é um capital ou uma questão. Mas a beleza da Tarsila é reiterada nessas narrativas e é um capital para ela, uma coisa da qual ela se apropria como importante para se apresentar no circuito francês e também é importante para o marido dela, Oswald de Andrade."(Ana Paula Cavalcanti Simioni, 2019)
No geral, as grandes artistas modernistas faziam questão de romper com a tradição até mesmo quando se autorrepresentavam. Tarsila não. Ao mesmo tempo em que radicalizava e criava obras-primas do modernismo brasileiro com sua famosa fase pau-Brasil, quando se tratava dela mesma, sua imagem nunca pareceu distorcida e tão pouco nacional. Seus belíssimos autorretratos também eram obras-primas, mas retratavam uma mulher elegante e com a imagem milimetricamente construída visando nada menos que a perfeição.
O "Le Manteau Rouge" atualmente faz parte da coleção do Museu de Belas Artes no Rio de Janeiro e mede 73x60 centímetros. O belo casaco vermelho de gola alta que Tarsila veste na pintura foi desenhado pelo estilista Jean Patou, e o quadro passa a imagem de uma Tarsila confiante e elegante. O vermelho do vestido é vibrante e captura a atenção de quem admira a obra. Ele remete à ousadia, mas também à mais alta classe. O fundo da tela, em azul, contrasta com o vermelho vivo do casaco.
Le manteau rouge (1923) |
A posição de sua mão no quadro remete à forma como se segura um pincel, de certa forma deixando claro que ela também era uma artista de sucesso. As pontas dos dedos, propositalmente, são borradas como se fossem mergulhadas em tinta, e se misturam ao vermelho do vestido. Era importante para Tarsila não só cimentar sua elegância e feminilidade como lembrar sua influência como pintora.
A precursora e a musa
Nunca em nenhum país do mundo duas mulheres possuíram tão importante papel na construção de um movimento artístico como no modernismo brasileiro, mesmo que só tardiamente tenha sido de fato reconhecida a real importância de Anita Malfatti e Tarsila do Amaral para a história da arte no Brasil. Ainda hoje, essa centralidade das mulheres na arte brasileira é extremamente incomum. Mesmo que independente do talento e da carreira de sucesso, a história tratou de incluir ambas em campos específicos: a precursora ou vítima e a musa perfeita.
O legado de Anita e Tarsila tem início e centralidade nos anos 1920. Mas é apenas cerca de 50 anos depois que a consagração dessas grandes artistas é de fato concretizada. Ambas permaneceram ativas durante boa parte da vida, mas após a crítica de Lobato, Anita passou a ser vista como uma cola responsável por dar início ao grupo de modernistas. Tarsila, por outro lado, após sua separação de Oswald de Andrade, em 1929, perdeu prestígio. Afinal, na época, quem seria Tarsila do Amaral senão a esposa de Oswald? Hoje temos dimensão da importância que ela teve e ainda tem na arte brasileira, mas até mesmo uma grande artista como Tarsila já foi chamada de "ex-esposa de Oswald de Andrade".
A Era Vargas oficializou o modernismo como um patrimônio nacional e nomes como Cândido Portinari e Oscar Niemeyer foram consagrados, mas Anita e Tarsila sequer foram citadas, mesmo que ambas continuassem em atividade. Apenas entre o 40° e o 50° aniversário da Semana de 22 que isso começa a mudar:
"Entre 62 e 72 o Brasil vive um contexto muito complexo, cultural, econômico, político e complicado no ponto de vista de relações entre entre homens e mulheres. O que foi para essas mulheres reais que viveram esse período receberem a informação de que a história da arte brasileira tem dois nomes femininos como sendo os primeiros nomes em produção e afirmação do modernismo."(Ana Paula Cavalcanti Simioni, 2019)
Tarsila do Amaral e Anita Malfatti se tornaram ícones do modernismo não apenas pela magnífica produção artística que deixaram de legado para a história da arte brasileira, mas também por suas personalidades marcantes, cada uma à sua maneira. Sem a precursora do modernismo não teríamos a famosa e ainda hoje comentada Semana de Arte Moderna, que em 2022 completa seu centenário. Sem a musa do modernismo, a arte moderna não teria a importância que tem hoje. Mesmo que ambas tenham sido encaixadas em campos específicos do feminino por muito tempo, seus legados se tornaram maiores do que rótulos previamente criados.
Referências
- Modernismo moderno: entre a consagração e a consternação (Ana Paula Cavalcanti Simioni)
- Tarsila Popular (Adriano Pedrosa; Fernando Oliva)
- A arte brasileira em 25 quadros (1790-1930) (Rafael Cardoso)
- A crítica de arte no entorno de Anita Malfatti e seu reflexo na história da arte brasileira (Renata Gomes Cardoso)
- Paranoia ou mistificação? (USP)
- Artes Visuais na semana de 22 (Ana Paula Cavalcanti Simioni)
Arte em destaque: Mia Sodré
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