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A poesia na Semana de 22: para além de Mário e Oswald


É senso comum correlacionar Mário e Oswald de Andrade ao evento realizado no Theatro Municipal de São Paulo, quando se deu a Semana de Arte Moderna de 1922. Todavia, hoje as atenções serão distribuídas entre aqueles ali no canto, os nomes mais esquecidos, desprezados ou invisíveis da seção literária que a convenção histórica nos proporcionou. 

Inovações, desejos revolucionários e vaias 


O dia 15 de fevereiro de 1922 foi totalmente destinado à literatura, com declamação de poemas que deixaram seu público escandalizado. Foi o dia em que vaiaram Os Sapos, de Manuel Bandeira, enquanto o poema era recitado por Ronald de Carvalho. O responsável por conduzir a segunda noite de evento foi Menotti del Picchia, poeta e aclamado redator do jornal Correio Paulistano, ao qual escrevia sob o pseudônimo Helios. 

Uma palavra que se pode usar para descrever sua fala no Theatro é "inflamado", espelho da urgência que aqueles tinham por quebrar os ultrapassados paradigmas deixados pelo Parnasianismo e o Simbolismo. Mas por que essas estéticas tinham de ser quebradas? 

Em se tratar do Parnasianismo, era por causa da rigidez teórica canalizada fundamentalmente na estrutura, que devia seguir perfeitamente a um padrão igualmente rigoroso, além da valoração no uso da linguagem rebuscada e culta. O lema “arte pela arte” se encaixa bem com os princípios da escola, que produziam poemas afastados de qualquer expressão exacerbada de sentimentos ou subjetividade. Já sobre o Simbolismo, é estranho considerar a rejeição ao estilo, pois o mesmo é distante de como as obras parnasianas eram construídas, explorando recursos linguísticos para criar um modo diferente de descrever o mundo, embasados em um teor místico e claramente subjetivo. 

Porém, isso denuncia a particularidade dessa primeira fase do movimento modernista, sua completa negação aos estilos consolidados por nomes respeitados pela crítica literária nos anos iniciais do século XX ou membros politicamente engajados com a Academia Brasileira de Letras. Casos como o de Anita Malfatti e sua exposição de 1917, duramente criticada por Monteiro Lobato, foram essenciais para o levante das rédeas “futuristas” que desaguou nas turbulentas águas da Semana de 22. Ou seja, existia uma vontade inigualável de radicalizar, de abandonar preceitos restritivos a fim de trazer uma releitura das tradições literárias e culturais da nação. 

A proposta agora era brincar com a poesia, se divertir com a linguagem sem temores, desconstruir e fragmentar até mesmo as noções de representação, que não quer ser mais uma distante cópia da realidade. A ironia, humor e paródia são liberadas, tudo funcionando como uma revisão crítica do passado enquanto almeja a tão distorcida identidade nacional.

Menotti del Picchia
Menotti del Picchia era um dos seguidores fiéis dessa proposta, escrevendo constantemente sobre em sua coluna Chronica Social. Seu discurso não abandonou o sentimento de revolução que Helios transmitia nas páginas impressas: 

Queremos libertar a poesia do presídio canoro das fórmulas acadêmicas, dar elasticidade e amplitude aos processos técnicos, para que a ideia se transubstancie, sintética e livre na carne fresca do Verbo, sem deitá-la, antes, no leito de Procusto dos tratados de versificação. Queremos exprimir nossa mais livre espontaneidade, dentro da mais espontânea liberdade. [...] sem artificialismos, sem contorcionismos, sem escolas.

Mas, claro, há outros nomes que adviram desses. 

Luís Aranha: uma poética à francesa 


Natural de São Paulo e nascido em 17 de maio de 1901, Luís Aranha Pereira cresceu e acompanhou a construção de uma cidade que se projetava ao futuro e se tornou a promessa do novo. Estudou até os 18 anos no (caro) Colégio Marista, chamado anteriormente de Colégio Diocesano. Seu passaporte para a moderna frente literária foi no contato mais próximo com Mário de Andrade em meados de 1921. Não tardou para que se aproximasse de outros futuristas (nomeação temporária do grupo e que reflete bem as essências vanguardistas que desejavam alcançar com essa arte). 

Mário de Andrade defendia que a poética daquele tempo seguia uma metodologia simples, mas libertadora: “[...] verso livre, rima livre, vitória do dicionário, e, esteticamente, substituição da ordem intelectual pela ordem subsconsciente, rapidez e síntese, polifonismo”. Luís Aranha sabia seguir tais convenções, porém algo que chama a atenção é sua inspiração explícita à vanguarda francesa. Blaise Cendrars, Guillaume Apollinaire, Jean Cocteau e Charles Vildrac são apenas alguns nomes daqueles que direcionaram e alimentaram muito do que foi sua poesia. 

Um poema que propõe o rompimento da estética padronizada à perfeição é Drogaria de Éter e de Sombra, composto por 450 versos que narram os devaneios de um jovem empregado, que sonha com grandes aventuras enquanto receita medicamentos aos clientes: 

Amo-te como amo a primavera / [...] O espelho corrente do regato / A flor do cacto / O aroma verde dos matos / Carbonato / Fosfato / Citrato / Azotato / Acetato / Nitrato / Sulfato / Clorato / Tartrato / Silicato / E o poder colossal de um sindicato / De drogas! [...]

Essa configuração de versos não linear e sobreposições entre os espaços e narração eram o estilo canônico do poeta, que possui uma bibliografia curta. 

Na colmeia dos pulmões o/
[enxame de ar zumbe/
Bandeira de pó agitada quando/
[passo/
Os patos voam/

A verdade é que poderia ter mais de seu trabalho impresso na Revista Klaxon, célebre periódico dedicado a produção modernista, porém, a história que se conta é que Mário e Luís revisavam as obras um do outro e, em uma dessas ocasiões, quatro textos originais que seriam publicados na Klaxon se perderam após a edição de Andrade e o encaminhamento para os responsáveis pela impressão.

 
Então, o que nos restou do autor, que pouco após a Semana de Arte Moderna abandonou o ofício e se dedicou ao cargo de diplomata, foi uma publicação póstuma de seu livro de poesias, Cocktails (1984). Luís Aranha atendeu bem aos aspectos lúdicos para destruir a forma e a linguagem, que foge ao senso comum sacralizado do que seria um poema, mas o frenesi modernista acaba. 

Tácito de Almeida: o modernismo crepuscular


Nascido em 14 de julho de 1899, Tácito de Almeida era natural de Campinas, foi poeta e fortemente ocultado pelo sucesso do irmão mais velho, Guilherme de Almeida, futuro membro da Academia Brasileira de Letras.

Assim como Luís Aranha, sua obra é pequena, cerca de 40 poemas publicados na carreira até voltar para o ramo da advocacia. Sua aproximação com o grupo modernista proporcionou também a experiência na Revista Klaxon, na qual, ao lado de Guilherme, elaborou o projeto gráfico das nove edições mensais que circularam em 1922 e 1923. Um detalhe que deve ser lembrado é que, na aparição de seus poemas no periódico, a autoria era depositada ao pseudônimo de Carlos Alberto de Araújo. 

Um dos pontos que se destacam na produção poética de Tácito é seu modo impactante de fabricar imagens em versos com quebras dos moldes clássicos de representação, algo que hipnotizou até mesmo Mário de Andrade. Enfim, no poema A mesma tempestade, é possível enxergar um esboço dessa capacidade do autor: 

A chuva já passou. / A noite límpida é um menino / Saindo detrás das montanhas. [...] Os homens assombrados, / Julgando-o perdido, / Estavam já desanimados. // Mas ele vem correndo, vem correndo / [...] E, quando encontra / Os homens cheio de olhares, / Ele para e estende os braços úmidos, / E vai espalhando pelo céu, / Cheio de orgulho, / Os mil pedaços ainda móveis / Da verde cobra fosforescente / Que matou na floresta, atrás das montanhas...

Tácito soube bem inserir sua escrita ao estilo do período, transitando por elementos de uma estética mais preocupada com a elegância estrutural de um poema enquanto utiliza das possibilidades mais imprevisíveis de se produzir uma leitura sobre fatos do dia-a-dia (em um literatura que passou anos nas grades da objetividade ao extremo). Além disso, soube muito bem se aproveitar de uma outra peça distinta, a “sensibilidade crepuscular” própria do Penumbrismo. 

Mas o que foi o Penumbrismo? Temas intimistas e sobre o cotidiano, volúpia ambígua, ritmo solto e versos fluído são algumas palavras-chave que podem resumir um estilo focado na captação sensorial e psíquica de seu leitor para trazer a sensação ora de paz, suavidade e contemplação, ora de melancolia e cansaço, com os devidos fins de atenua-lo. Ou seja, há uma busca do prazer pelas sensações suaves ou paralisantes. 

Uma das coisas que chamam a atenção foi o esforço de lapidar a musicalidade do poema com a função de provocar um sentimento que se aproxime do sussurro humano. Mais uma vez, é perceptível o quanto a poesia de Tácito é transpassada pelo hibridismo, quase como um teste ousado. Esse é o traço único de sua escrita, um composto marcado pela heterogeneidade. Isso se prova pelo poema O Túnel:

Túnel... /
A treva dos sonos, /
a treva dos túmulos, /
a treva que foi feita para a imobilidade! / [...]
Trevas úmidas, para revelar as fotografias /
das paisagens anteriores! //
Luz vermelha dos corações, /
luz que não fere!... 


Tácito de Almeida apostou em uma convergência, rastreando involuntariamente quais os melhores acessórios de diferentes estilos poderiam acrescentar em suas obras. Mas esse apelo ao híbrido suporta o título de modernistas? Para além disso temos uma verdade: a década de 1920 datou os primeiros e últimos sussurros de Tácito autor. O frenesi moderno também se esvai dele. 

Agenor Barbosa: uma simbólica produção


Mineiros também fizeram parte da Semana de Arte Moderna. Os dois representantes de Minas Gerais foram a pintora Zina Aita e o poeta e jornalista Agenor Fernandes Barbosa. Natural de Montes Claros, Agenor nasceu em 21 de outubro de 1896, e suas publicações se dividiram em duas fases, em território mineiro e paulista, no qual a maioria das produções fizeram parte das páginas de jornais. 

Já em 1913, com seus 17 anos, é registrado seu nome como autor na Revista Vita. Ao contrário daqueles falados anteriormente, Agenor foi extremamente engajado em sua escrita nos anos prévios à Semana de 1922. Em 1917, em São Paulo, seu contato com o mundo modernista foi direto com o autor Menotti del Picchia, aquele que proferiu o discurso de abertura no dia 15. Seus laços se estreitaram quando ambos compunham a equipe editorial do jornal Correio Paulistano, e não foram poucas as vezes em que Picchia trouxe seus elogios à escrita de Agenor, dando-lhe a chance de ser ainda mais conhecido ao expor os mais notáveis trabalhos do mineiro em sua coluna. 

Barbosa também foi responsável por redigir seções e artigos na gazeta, como o Reuniões Literárias do dia 15/03/1921, edição 20727, ao qual assinou um texto em que defende os pressupostos de surgimento da nova arte: 

“A evolução do senso esthetico da nossa gente é um indicio claro desse esforço intelectual e um seu natural quociente [...] essas manifestações se observam na pintura, na esculptura, na musica e na poesia. Ha por ahi uma boa pletade [parcela] de nobres artistas de todas as artes, que se esforçam para aperfeiçoar e renovar os velhos e imperfeitos moldes estheticos.”

O passado de Agenor denuncia sua conexão com o estilo simbolista, já que em Minas Gerais houve uma frente pequena de poetas que se dedicaram às características da escola em seus trabalhos, o que impactou a forma de Barbosa fazer arte em São Paulo, como defende Rebello: “[...] as ligações dos simbolistas mineiros com os modernistas podem ser percebidas, de maneira muito clara, na perspectiva de uma continuidade em forma de rede”

O poema Pássaros de Aço nos entrega uma boa visão do que era a poética de Barbosa, tanto que fez parte do roteiro de leitura da Semana de 22: 

No aeródromo, o aeroplano / Subiu, triunfal, na tarde clara, / Grande e sonoro, como o Sonho humano! [...] Da Terra que a ambição dos Paulistas povoara / De catedrais e fábricas imensas / Que, por áreas extensas, / Se centimultiplicavam em garras e tentáculos, / A Cidade assistia indiferente, [...] O seu belo brasão heráldico e minúsculo. // À ascensão maravilhosa do crepúsculo

O que se pode observar com esse trecho quase completo é a presença de personagens comuns à modernidade do século XX, o avião que cruza os céus da Pauliceia e se coloca dominante, acima de um cenário que não para de se modificar. Ao mesmo tempo, manifesta características bem fortes do Simbolismo com sua forma de arquitetar imagens mentais e sua subjetividade, que lê São Paulo de uma maneira mais intimista afora com uma métrica bem parecida com aquelas que as rédeas do Parnasianismo ditou. 

É possível questionar se não era isso que o Modernismo tentou combater frente a frente, ou como ele é considerado modernista. Estamos à frente do conflito cerne dessas poesias, não por elas em si ou qualquer coisa que inviabilize suas qualidades. Essas análises rompem diretamente com a proposta original na qual se estruturou o movimento e sua entrada no Theatro Municipal de São Paulo em 15 de fevereiro.

A poética híbrida 


O radicalismo e a revolta contra os ultrapassados modelos acadêmicos fez surgir a grande inconsistência: é plausível levar o título de modernista e utilizar de recursos práticos das escolas que cercearam as produções artísticas por tanto tempo? Ou, uma pergunta melhor, é possível um escritor nascido entre os séculos XIX e XX se despender de técnicas que formaram o que ele conhece como poesia?

Os casos de Luís Aranha, Tácito de Almeida e Agenor Barbosa desenham esse problema de maneira explícita. Todavia, é possível citar outro caso, o de Mário de Andrade e sua Paulicéia Desvairada (1922). Mário foi um dos maiores críticos do modernismo, não poupando nem mesmo suas produções, já que em relatos afirmou que não compreendia como Paulicéia fora aclamado pelos artistas do grupo por ferir o lema fundamental de se desprender das correntes acadêmicas que os parnasianos e simbolistas vieram a representar. 


Sua resposta implica na afirmação de que o livro de poemas não passava de um produto que convergia os três lados de estilos que, a princípio, pareciam ser completamente distintos, por isso não deveria ser considerado um ícone desse modernismo recém-nascido. E assim é possível retomar o questionamento: um grupo de artistas revolucionários conseguiriam a proeza de dissolver as bases nas quais forjaram sua poesia em um período tão curto de tempo? A resposta já está diante de nós. 
 
A empreitada modernista colocou seus alicerces sobre uma utopia em prol de uma nova visão do que a arte viria a ser. Entretanto, foi um equívoco pensar que seriam capazes de desmanchar raízes muito bem fecundas. Em um espaço curto de tempo a tarefa era impossível, mas deve ter sido hilário ouvir os burburinhos, vaias e a aversão daqueles que se acostumaram ao comodismo de uma literatura puramente formal. 

O que se conclui disso é que o hibridismo entregue involuntariamente por Luís, Tácito, Agenor e Mário trilhou um caminho que se tornaria a chave para a criação de uma poética inteiramente nacional, como afirma Pasini:

“O resultado é a internalização, pela poesia brasileira, de uma dinâmica própria, em que as contradições da poesia internacional se tornam parte de um debate artístico coletivo e público sobre a sociedade e o país, que, por sua vez, se tornam temas de experimentação poética.”

No fim, é engraçado constatar que aquilo de que muitos queriam se desviar e acreditavam ser a causa da destruição de toda a poesia se tornou um objeto para repensar até onde a construção poética pode chegar. O pilar original da Semana não deveria ter sido uma tentativa de pulverizar suas bases, e sim um instante para refletir sobre maneiras menos óbvias de utilizá-las, com o intuito de ir além de moldes europeus e transformá-las em um ser que se autorregula, com um método que extrapola definições enrijecidas de escolas literárias. 

A poesia precisou desse recomeço, e a Semana de Arte Moderna pode ser tratada como um laboratório de testes para esses escritores, mesmo aqueles que hoje estão ocultos dessa história. A Semana de 22 sempre foi mais densa do que dois nomes famosos, e a heterogeneidade do grupo fez com que a discussão deste artigo se realizasse. Talvez, só precisemos olhar para o lado, para variar. Talvez, um novo nos espera na omissão. 

Todo o poder aos poetas esquecidos! 

Referências 



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